O concerto das correspondências na poesia de Machado de Assis

(Flávia Vieira da Silva do Amparo

doutoranda do curso de Literatura Brasileira da UFRJ)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

RESUMO

 

 

 

Estudo da ironia na poesia machadiana e de suas implicações na construção de sentidos de sua obra, seguindo uma tradição irônica. Como autores distantes no tempo e no espaço se inserem numa mesma tradição através do “Concerto das correspondências”- terminologia empregada pelo crítico Octavio Paz - e dialogam entre si.

 

Palavras-chave: Machado de Assis, poesia, ironia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A morte é um verme, de duas espécies, conforme se introduz no corpo ou na alma.(...) Em mim não penetrou no corpo; o corpo geme porque a doença reflete nele; mas o verme está na alma. Nela é que eu o sinto a roer todos os dias.”

 

 

 

 

Uma das marcas da ironia poética de Machado se revela no poema em francês Un vieux pays , de Falenas , que possui uma epígrafe de Camões: “... juntamente choro e riso”. Curiosamente essa composição vem, nas Poesias completas, entre os poemas “O verme” e “Luz entre sombras”. O drama tragicômico machadiano toma a forma de versos. O poema traduzido vem mostrar ao leitor o universo de “um velho lugar” , que é ao mesmo tempo cheio de sombra e luz, dúvida e esperança, blasfêmia e oração, aborrecimento e delírio. Um espaço onde as contradições coexistem lado a lado. A imagem mais marcante é criada no verso onde o poeta diz não existir no local flor sem verme. A tradução, literal, resulta no seguinte texto:

É um velho lugar pleno de sombra e de luz

Onde sonha-se de dia, onde chora-se à noite;

Um lugar de blasfêmia, tanto quanto oração;

Nascido para a dúvida e para a esperança.

 

 

Lá não se vê flores sem um verme a lhe corroer,

Ou um ponto do mar sem tempestade, ou de sol sem noite;

A felicidade lá aparece algumas vezes em sonho

Entre os braços da angustiante sombra.

 

 

O amor vai lá sempre, mas é tudo um delírio,

Um desespero sem fim, um enigma sem palavras;

Às vezes ele ri alegremente, mas deste riso pavoroso

Que é talvez somente um soluçar.

 

 

Segue-se neste lugar de miséria e embriaguez,

Mas vendo-o mal, alguns, com medo, afastam-se dele ;

Eu vivo aqui, no entanto, e nele estou passando minha juventude...

Infelizmente! este lugar é o meu coração.

 

Nas notas do original, Machado de Assis nos dá uma tradução adaptada pelo poeta Joaquim Serra e se desculpa por ter escrito em outra língua:

 

Perdoem-me estes versos em francês; e para que de todo em todo não fique a página perdida aqui lhes dou a tradução que fez dos meus versos o talentoso maranhense Joaquim Serra:

 

É um velho país, de luz e sombras,

Onde o dia traz o pranto, e a noite a cisma;

Um país de orações e de blasfêmia,

Nele a crença na dúvida se abisma.

 

Aí mal nasce a flor o verme corta,

O mar é um escarcéu, e o sol sombrio;

Se a ventura num sonho transparece

A sufoca em seus braços o fastio.

 

Quando o amor, qual esfinge indecifrável,

Aí vai a bramir, perdido o siso...

Às vezes ri alegre, e outras vezes

É um triste soluço esse sorriso...

 

Vive-se nesse país com a mágoa e o riso;

Quem dele se ausentou treme e maldiz;

Mas aí, eu nele passo a mocidade,

Pois é meu coração esse país!

 

O tradutor suavizou bastante a idéia presente no poema de Machado, transformando a confissão do poeta em uma simples exposição de quadros e idéias. O poema original faz referência a um lugar que pode ser identificado tanto como um espaço fora de si, região onde se vive, quanto a um lugar recôndito, dentro de si. Contraditório em sua essência, esse ambiente só pode ser definido na oposição de figuras, no paradoxo. Quando o “eu lírico” diz: “este lugar é o meu coração”, imprime nos versos uma ambigüidade, afinal, está se referindo a um lugar de sua apreciação, como seu país, ou está dizendo que seu coração é este lugar? A tradução de Joaquim Serra desfaz a indefinição do poeta ao optar por uma única interpretação da palavra “pays”.

Essa ambigüidade, marcada pelo confronto entre exterior e interior também foi assunto de um poema de Ocidentais , “Mundo interior”, onde o poeta “mergulha” no abismo de sua alma. A ironia presente na descrição revela a manifestação de duas naturezas, opostas entre si, mas que se complementam no interior do homem. Esse pensamento machadiano, que jamais se traduz numa expressão maniqueísta, concentra a dualidade Bem/ Mal , presente em toda a sua obra.

Um parecer sobre “Un vieux pays” foi proferido por Maria Eugênia Celso que descobriu nesses versos em francês alguns traços biográficos de Machado: “Era o seu coração, em verdade, tão complexo, tão recatado e tão oculto sob a armadura da ironia, esse coração de tão controladas palpitações pela exigência soberana do cérebro” . A autora do artigo ainda acrescenta que a tradução de Joaquim Serra empobrece o sentido desejado por Machado.

Um outro aspecto a ser destacado no texto é a figura da flor corroída pelo verme. A imagem delicada e doce da flor remete à instância do sublime, enquanto a do verme assume a posição do grotesco. Esta metáfora pode ser considerada um topos universal, irônico, ligado a uma tradição poética, na qual Machado acaba por se inserir. Em todas as suas variações, a temática da flor e do verme vai ser reiterada na poesia e, posteriormente, na prosa machadiana. As duas figuras, podemos dizer, são a representação da alma do homem, marcada pelos contrários, significando a eterna inconstância humana entre o Bem e o Mal, entre o princípio da harmonia - flor - e o da destruição - verme ; vida e morte, início e fim.

Remontando à tradição, notamos que as figuras também aparecem em Shakespeare, tanto nos sonetos quanto no teatro. No soneto de número XXXV, o poeta inglês vale-se da metáfora da seguinte forma:

 

Não chores mais o erro cometido;
Na fonte, há lama; a rosa tem espinho;
O sol no eclipse é sol obscurecido;
Na flor também o verme faz seu ninho ; (grifo nosso)

 

 

O poema traz à tona a questão do erro e da culpa, não na visão cristã de mundo, mas na acepção de que todas as coisas na natureza guardam em si o positivo e o negativo, não podendo ser diferente com o homem. A lei da complementaridade dos contrários se revela poeticamente na imagem do verme aninhado na flor, ou seja, a corrupção da alma é inerente à sua bondade.

Muitos estudiosos já demonstraram a influência de Shakespeare na prosa de Machado, a poesia não fica atrás. No poema das Falenas, intitulado “La Marchesa de Miramar” , lemos a repetição da famosa frase: “Tu serás rei, Macbeth” , relacionada à profecia de uma das bruxas da peça de Shakespeare. As imagens machadianas, não apenas as do legado cultural de suas leituras, são rejuvenescidas “pela alteração de seus constituintes formais, pela nova ordem dos termos, pelo jogo habilidoso das palavras” Não se trata aqui da citação vazia, com o intuito de causar um efeito no leitor ou dar mostras de erudição, mas uma apropriação criativa da imagem, gerando algo novo.

Ao falar das citações na poesia de Machado, Jamil Haddad mostra o papel que essas referências desempenham no poema. Sobre o poeta, o crítico afirma:

 

É dos poetas em quem às leituras pode corresponder o papel de impacto desencadeador da emoção e da inspiração. Leitura que muitas vezes é confessada nos poemas sob a forma de epígrafes. Citações estas que não vêm apenas com o sentido de ornamentação erudita, mais ou menos supérflua, mas representam núcleo de que o vindouro poema irradiará por desdobramentos sucessivos”

 

Esses desdobramentos, como uma teia de informações, são essenciais para a compreensão da poesia machadiana. A leitura, não apenas das epígrafes, mas principalmente das imagens retomadas de outros autores, pode contribuir na construção da identidade do poeta e de sua filiação. As metáforas, presentes em Shakespeare e Machado, da flor e do verme, também aparecem em William Blake no poema “The Sick Rose”:

 

Oh! rosa estás enferma!

O verme invisível

Que voa na noite

Na tempestade que ruge,

 

Encontrou tua cama

De carmesim e alegria

E seu escuro amor secreto

Destrói a tua vida.

 

Machado de Assis dialoga com uma tradição poética, passada de uma geração irônica à outra, cujas raízes se estendem pelos séculos: “[a ironia], esse movimento ao canto da boca, cheio de mistérios, inventado por algum grego da decadência, contraído por Luciano, transmitido a Swift e Voltaire, feição própria dos céticos e desabusados.”

Seguindo a tradição encontramos traços de afinidade indiscutíveis entre “The Sick Rose” e um outro poema de Falenas , “O verme”:

 

Existe uma flor que encerra

Celeste orvalho e perfume.

Plantou-a em fecunda terra

Mão benéfica de um nume.

 

Um verme asqueroso e feio,

Gerado em lodo mortal,

Busca esta flor virginal

E vai dormir-lhe no seio

 

Morde, sangra, rasga e mina,

Suga-lhe a vida e o alento;

A flor o cálix inclina;

As folhas, leva-as o vento.

 

A flor, logo associada à delicadeza e à suavidade, tem o seio invadido pelo verme escarninho; é uma imagem perfeita para definir a poesia de Machado e a tradição na qual se insere: um verme em botão de flor. Isso porque jamais abriram a flor poética machadiana para ver o que havia por dentro. Nunca rasparam a casca de seus versos para encontrar neles um miolo irônico, representado pela figura do verme. A corrosão causada pela figura denuncia não apenas o vazio do interior, a corrupção do Bem sem torná-lo de todo mau, mas o abismo existente entre o interior e o exterior, entre aparência e essência.

A relativização dos conceitos gera a quebra de uma harmonia: não é possível estabelecer o equilíbrio, é no conflito que o poeta torna-se capaz de criar algo; é da faísca produzida que brota a força. Não admira que Machado retome a metáfora em Ocidentais , nos poemas “Uma criatura” e “Mundo interior”. No primeiro, Machado fala de uma criatura inominada, que vai se revelando a cada verso. Pela descrição do seu poder destrutivo, o leitor pode concluir que se trata da Morte, mas o poeta, contraditoriamente, afirma que é a Vida.

 

Sei de uma criatura antiga e formidável,

Que a si mesma devora os membros e as entranhas

Com a sofreguidão da fome insaciável.

...

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;

Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,

Parece uma expansão de amor e de egoísmo.

 

A relação de amor e egoísmo também está presente no poema de Blake, nos versos “e seu escuro amor secreto/ destrói sua vida”, dois sentimentos unidos para perecer, já que a rosa está corrompida, enferma. Ainda no poema “Uma criatura”, temos uma seqüência de versos que enfatiza as antíteses entre desespero e gozo, sublime e grotesco:

 

Friamente contempla o desespero e o gozo,

Gosta do colibri como gosta do verme,

E cinge ao coração o belo e o monstruoso.

...

Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo

Vem a folha, que lento e lento se desdobra,

Depois a flor, depois o suspirado pomo.

Pois esta criatura está em toda obra:

Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;

E é nesse destruir que as suas forças dobra.

 

 

O destruir torna-se um movimento necessário para sobreviver, caos e cosmo, autocriação e auto-aniquilamento. Nas palavras de Schlegel: “Ironia é claro caos em atividade, intuição intelectual de um caos eterno, de um caos infinitamente pleno, genial, eternamente cíclico.” O cíclico pode nos remeter tanto ao processo cosmogônico e escatológico, como também à própria obra em sua concepção estrutural, isto é, em Machado o cíclico também está presente no retorno ao objeto de análise e na reformulação da metáfora do verme e da flor. Não podemos nos esquecer que há uma distância de trinta e três anos entre Falenas e Ocidentais , mas, no seu percurso literário, Machado escreve inúmeros textos em prosa que retomam o mesmo assunto.

O segundo poema que destacamos em Ocidentais , “Mundo interior”, não fala diretamente do verme, mas traz de volta a discussão entre o exterior e o interior, que não deixa de ter um sentido semelhante. Quando o poeta retrata a figura da hidra de Lerna entre as flores, está associando as duas instâncias: a do sublime e a do grotesco:

 

Ouço que a natureza é uma lauda eterna

De pompa, de fulgor, de movimento e lida,

Uma escala de luz, uma escala de vida

De sol à ínfima luzerna.

 

Ouço que a natureza, - a natureza externa, -

Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida

Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna

Entre as flores da bela Armida.

E contudo se fecho os olhos, e mergulho

Dentro de mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo

Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho

 

Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,

E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,

Um segredo que atrai, que desafia - e dorme.

 

 

Encontramos no poema a presença de dois níveis de significação: o primeiro se cerca de uma aparente beleza, ilusória e sedutora; o segundo poderia ser o oposto, mas é igualmente abismo. Nem a natureza, mãe e inimiga, nem a alma do homem, são salvação, mas eterno cataclismo.

A analogia entre os três poetas é o reflexo da tradição irônica que se propaga no futuro, reformulando ou reafirmando os ecos do passado. O mito se repete na posteridade atestando que essa tradição jamais se desgasta, mas “dobra as suas forças” cada vez que é retomada. Nas palavras de Octávio Paz, podemos compreender a estreita afinidade dos poetas através dos tempos, mostrando a relação irreconciliável entre ironia e analogia:

 

Ironia e analogia são irreconciliáveis. A primeira é a filha do tempo linear, sucessivo e irrepetível; a segunda é a manifestação do tempo cíclico: o futuro está no passado e ambos estão no presente. A analogia se insere no tempo do mito, e mais ainda: é seu fundamento; a ironia pertence ao tempo histórico, é a conseqüência (e a consciência) da história.

 

Este vínculo se estabelece até mesmo entre figuras aparentemente opostas. Quando Machado de Assis nos fala da teoria do “fio secreto”, está mostrando como a ironia interliga elementos díspares e é capaz de associar personagens e pensamentos de épocas distintas. Em crônica de 15 de janeiro de 1877, Machado fala dessa teoria ao relacionar quatro heróis épicos e romanescos: Aquiles, Enéias, Dom Quixote e Rocambole.

 

Estes quatro heróis, por menos que o leitor os ligue, ligam-se naturalmente como os elos de um cadeia. Cada tempo tem a sua Ilíada ; as várias Ilíadas formam a epopéia do espírito humano.Veja o leitor se não há um fio secreto que liga os quatro heróis. É certo que é grande a distância entre o herói de Homero e o de Ponson du Terrail, entre a Tróia e o xilindró.Mas é questão de ponto de vista. Os olhos são outros; outro é o quadro; mas a admiração é a mesma e igualmente merecida.(grifo nosso)

 

Este fio secreto, no caso da poesia, parece formar uma verdadeira teia onde se entrecruzam informações e pontos de vista. O sujeito multiperspectivado reúne em si a ironia, fio tênue, que sutilmente vai costurando diversos sentidos e falas no tecido poético. Assim, a poesia machadiana, coberta de uma ingenuidade de rosa, guarda em si uma enciclopédia de referências, um labirinto de informações onde o leitor não é guiado pelo fio de Ariadne, mas pelo fio secreto machadiano, que precisa ser desenredado. A tradição se difunde pela apropriação do alheio e pela sua constante reformulação. Nas lacunas do passado, o presente se inscreve, e escreve novos capítulos.

Nas palavras de Octavio Paz, este “fio secreto” recebe o nome de “concerto das correspondências” ao afirmar que: “A ironia mostra que, se o universo é uma escrita, cada tradução dessa escrita é diferente, e que o concerto das correspondências é um galimatias babélico (...) a ironia não é a palavra nem um discurso, mas o reverso da palavra, a não-comunicação (grifo nosso).”

Ainda falando de influência, não podíamos deixar de mostrar a ligação de Machado com a tradição clássica. Aproximando Machado de Assis do mundo grego, Jacyntho Lins Brandão procura rastrear tal influência na obra machadiana. Procura também compreender, de forma geral, como ocorrem as apropriações literárias no discurso ficcional, tanto da poesia quanto da prosa. Podemos acrescentar que não é apenas com a cultura clássica que Machado dialoga, mas com todos os seus mestres e suas leituras, ou seja, com a cultura que adquiriu no decorrer de sua vida.

 

Se nos recordarmos da “metafísica do estilo”, então sim, concluiremos que nada é direto, tudo deve ser mediatizado, como se a própria tradição se formasse no “desvão imenso do espírito” de cada cultura que é - eu diria - a inconsciência coletiva onde sempre haverá múltiplos entenderes. Por outro lado, saliente-se que é justamente essa fluidez da tradição, essa possibilidade de circular e desviar-se que a torna produtiva, já que disponível para as apropriações que convêm a cada tempo, lugar, pessoa.

 

Seguindo esse “fio secreto” através do “concerto das correspondências” realizado pela “inconsciência coletiva”, chegamos, enfim, ao lugar de afluência da tradição: a metáfora irônica. A metáfora, aqui estudada, já carrega em si um diálogo entre, pelo menos, três poetas: Shakespeare, Blake e Machado, sendo exemplo de plurivocalismo na poesia. São várias vozes, dentro e fora do contexto poético, que constroem o significado dos versos. A interpretação da poesia não se esgota na leitura, sendo necessárias novas leituras capazes de acrescentar sentidos.

Inevitavelmente, se estendemos o campo de análise, iremos encontrar outros poetas e prosadores que reconstruíram a figura da flor e do verme. Para entendermos a validade deste discurso, que não se esgota nem envelhece, podemos tomar como exemplo um poeta contemporâneo, Bruno Tolentino, que, inspirado em Blake, faz referência à mesma imagem poética no poema “O espectro”:

 

Ninguém notava aquele rosto idêntico

à corola da rosa corroída

em que Blake encarnava o sofrimento.

...

quando quer à estação miraculosa,

mas por causa do olhar que não quer ver

e abisma-se em si mesmo, como a rosa

 

amada pelo verme e sem poder

de o recusar, tentando resignar-se

não te resignes mais a conceber.

 

Para o poeta contemporâneo, a figura de Blake está mais presente, até porque a poesia de Machado ainda não foi adequadamente descoberta. Tolentino torna-se um mais um elo desta cadeia analógica, deste topos universal. Há “fios” que se revelam, outros que se ocultam; este parece ser o caso machadiano.

O Machado prosador também dialoga com o Machado poeta. Nas Memórias póstumas , é ao verme que ele dedica o livro; em Dom Casmurro o verme novamente se faz presente, dessa vez num capítulo inteiro. Lendo o capítulo XVII, “Os vermes”, de Dom Casmurro , podemos falar da pequena criatura como a metáfora da apropriação irônica de outros textos, roendo os significados antigos, destruindo-os para reconstruí-los. Enriquecendo-o de sentidos, o escritor vai cevando o texto para devorá-lo, mais adiante, num banquete simbólico. Para tornar-se um autor, o escritor precisa assumir o papel do verme que se alimenta da tradição, roendo-a constantemente, primeiro para se autorizar e depois para tornar-se de fato o criador, o dono da idéia original.

Nas palavras de Bentinho, de Dom Casmurro , percebemos que há um intuito de criar algo grandioso, aproveitando a idéia de outrem, estabelecendo relações entre o texto cristão da Bíblia e o pagão da antiga Grécia, ou seja, com duas tradições de raízes profundas e ao mesmo tempo distintas.

 

Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita. Catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia no texto roído por eles (...) Talvez esse discreto silêncio sobre os textos roídos fosse ainda um modo de roer o roído.

 

 

Esse roer retoma a idéia, expressa no poema “Uma criatura”, de que a destruição é também a partícula criadora; no destruir, a vida dobra suas forças. Os livros podem demonstrar uma aparente perenidade, mas não escapam ao verme, ao tempo que dilui e transforma tudo. A idéia também se apresenta nos contos machadianos. Em “Papéis velhos” o protagonista se acha diante de antigas cartas de amor e de palavras que se foram no vazio do tempo.

 

Nada faltava a essas cartas; lá estava o infinito, o abismo, o eterno. Um dos eternos , escrito na dobra do papel, não se chegara a ler, mas supunha-se. A frase era esta: “Um só minuto do teu amor, e estou pronto a padecer um suplício et...” Uma traça bifara o resto da palavra; comeu o eterno e deixou o minuto.

 

Retomar um texto pode ser roê-lo, mas também uma forma de fazê-lo reviver. Entre o eterno e o minuto, tradição e modernidade, fluidez e permanência, percebe-se a mão da natureza, mãe e inimiga, no impiedoso fluxo existencial “que a si mesma devora os membros e as entranhas/ Com a sofreguidão da fome insaciável”, versos do poema “Uma criatura”.

Como num ritual antropofágico, ao se alimentar do outro, tanto a natureza como o homem, aqui entendido como o escritor, estão perpetuando as virtudes daquele em si mesmos. Assimilando o caráter desejado, o escritor reproduz a tradição, só que digerida pelo seu próprio estômago. Talvez a teoria machadiana do leitor ruminante, presente no Esaú e Jacó , se encaixe perfeitamente nesse processo de assimilação do outro: “O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estômagos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos, até que deduz a verdade que estava, ou parecia estar escondida.”

Essa forma de roer o roído, de ruminar as idéias de outrem, parece ser uma proposta de leitura e releitura. Mais do que isso, percebemos o quanto a leitura superficial não é capaz de deduzir verdade alguma. Precisamos passar e repassar em nosso pensamento as produções de Machado de Assis, como ele fez com seus mestres, para só assim captarmos a alma dos seus textos, aparentemente escondida.

O verme também é o paradoxo da vida do homem, corroída pelo tempo. Percebe-se que a vida não passa de uma morte adiada ou um eterno morrer a partir de cada instante vivido. Em Shakespeare, por exemplo, mais precisamente em Hamlet , o verme está no limite da vida e da morte, é o que se percebe no diálogo entre duas personagens: o rei e Hamlet. O rei pergunta onde está Polônio e, ironicamente, Hamlet responde que Polônio está “a cear”, “não onde come, senão onde é comido”. E completa a frase com a seguinte proposição:

 

Certa assembléia de vermes políticos está agora com ele. O verme é o único imperador da dieta (...) nós engordamos a nós mesmos para cevar os vermes. O rei gordo e o mendigo esquálido, não são mais que serviços distintos, dois pratos, porém, de uma mesma mesa; eis aqui o fim de tudo.

 

O verme como “imperador da dieta” mostra-nos também o paradoxo da Natureza. O homem domina todos os animais, comanda todos os seres com a sua inteligência, mas no fim, ironicamente, é devorado por um ser inferior. Essa “teoria do verme”, de igual modo, pode ser associada ao pensamento socrático, principalmente porque utiliza como artifício a pergunta corrosiva. Os diálogos socráticos não têm como objetivo a delimitação de um ponto de vista. A pergunta não possui a intenção da resposta, mas sonda o interlocutor num movimento duplo que tanto pode corroer a resposta como devolvê-la. Não é à toa que no capítulo de Dom Casmurro e na peça de Shakespeare há uma interrogação lançada ao interlocutor. Bentinho chega à conclusão de que o silêncio é uma forma de “roer o roído”. A pergunta sem resposta é corrosiva, tal como o verme, pois testa o homem em sua relação com o exterior e, muitas vezes, prova o vazio do seu interior.

 

O diálogo é igualmente necessário para ambos os pontos de vista . Com efeito, ele indica o eu e sua relação para com o mundo, mas no primeiro caso trata-se do eu que constantemente devora o mundo, e no segundo, do eu que quer assumir o mundo; no primeiro caso, seus discursos o afastam constantemente do mundo, e no segundo, o introduzem constantemente nele; no primeiro ponto de vista ele é uma pergunta que consome a resposta; no segundo, uma pergunta que devolve a resposta.

 

Esse duplo movimento é desempenhado pelo sujeito irônico, que ora está envolvido emocionalmente, ora distanciado criticamente e exige que o seu objeto de análise cumpra o mesmo percurso, correndo o risco de chegar ao vazio, ao silêncio, que é a forma de “roer o roído”.

Existe um verme machadiano que saudosamente rói o passado, para revivê-lo no presente. Se de fato o eterno se esfacela na corrente dos anos, resta o minuto, leve e momentâneo, prazerosamente digerido pelo pensamento, transformando-se num minuto eternamente revivido.

Ler Machado de Assis constitui um movimento reflexivo, uma constante interrogação sobre a existência, tanto a nossa quanto a das “verdades” produzidas pela ciência e pelo pensamento humano. O verme desmente a flor? A flor, de fato, rejeita o verme? As duas figuras não são apenas alegorias poéticas em Machado, mas compõem a metáfora da apropriação estética. Seguindo esta teoria da apropriação, mencionamos aqui as palavras de Goethe: “Todas as realizações dos antecessores e contemporâneos de um poeta não pertencem por direito a ele? Por que deveria ele esquivar-se de colher flores onde as encontra? Só tornando nossas as riquezas dos outros damos existência a alguma coisa grande.”

Machado não colhe as flores, mas se apropria das sementes para cultivá-las a seu modo. Pretende mantê-las vivas, transformadas é certo, em obra de seu canteiro. Assume o papel do jardineiro, que propicia o florescimento das rosas, mas de forma alguma é o seu criador primordial, o autor da semente. Invertendo o previsível panorama de criação, Machado, em sua Metafísica das rosas , concede ao Jardineiro a autoria da invenção. Ele faz esta transposição assimilando o texto bíblico, para validar o seu próprio discurso:

 

No princípio era o Jardineiro. E o Jardineiro criou as Rosas. E tendo criado as Rosas, criou a chácara e o jardim, com todas as coisas que neles vivem para a glória e contemplação das Rosas. Criou a palmeira, a grama. Criou as folhas, os galhos, os troncos e botões. Criou a terra e o estrume. (...) Criou as borboletas e os vermes. Criou o sol, as brisas, o orvalho e as chuvas.

 

Outra inversão mostrada no texto é a da superioridade do homem e da missão dos pequenos seres, todos criados para o louvor das Rosas e não do Jardineiro. Logicamente, o texto fala de uma mudança de ponto de vista, como se a criação do mundo fosse vista pela ótica das Rosas.

A realidade, portanto, pode ser vista de acordo com a perspectiva de cada um. A realidade sempre se constitui através de um ato personalista, aquele que a formula entende que o mundo ali está para servi-lo. O escritor, do mesmo modo, não apenas colhe a tradição, mas se torna o verdadeiro autor, ao processar, em seus pensamentos, as idéias (rosas) que desabrocham em seu canteiro:

Elas brilham, elas cheiram, elas dão as cores mais lindas da terra. Sem elas nada haveria na terra, nem o sol, nem o jardim, nem a chácara, nem os ventos, nem as chuvas, nem os homens, nem as mulheres, nada mais que o Jardineiro, que as tirou do seu cérebro, porque elas são os pensamentos do Jardineiro, desabrochadas no ar e postas na terra, criada para elas e para glória delas. Grande é o Jardineiro! Grande e eterno é o pai sublime das rosas sublimes.

 

A poesia de Machado, no canteiro de suas idéias, desabrochada no ar, gradativamente é posta na terra. Apesar de colher as sementes da tradição, como um leitor ruminante, é na “caverna de seu cérebro” que o processo de criação se desencadeia.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

NOTAS

 

 

ASSIS. Obra completa . Vol. II. p.105.

Tradução de Maria de Fátima Horta. No original:  «  Il est um vieux pays, plein d'ombre et de lumière,/ Où l'on rêve le jour, où l'on pleure le soir ;/ Un pays de blasphème, autant que de prière,/ Né pour la doute et pour l'espoir.// On n'y voit point de fleurs sans un ver qui les ronge,/ Point de mer sans tempête, ou de soleil sans nuit ;/Le bonheur y paraît quelquefois dans un songe/ Entre les bras du sombre ennui.// L'amour y va souvent, mais c'est tout un dèlire,/ Un désespoir sans fin, une énigme sans mot ;/ Parfois il rit gaîment, mais cet affreux rire/ Qui n'est peut-être qu'un sanglot.// On va dans ce pays de misère et d'ivresse,/ Mais on le voit à peine, on en sort, on a peur ;/ Je l'habit pourtant, j'y passe na jeunesse... ? Hèlas ! ce pays, c'est mon coeur. »

 

CELSO, Maria Eugênia . Um poema do Mestre. Jornal do Brasil, 20 de junho de 1939.

SHAKESPEARE, William. Sonetos. Trad. Maria do Céu Saraiva Jorge. Lisboa: s/e, 1962.p.42.

No original: “ No more be grieved at that wich thou hast done./Roses have thorns, and silver fountains mud;/ Clouds and eclipses stain both moon and sun,/And loathsome canker lives in sweetest bud.”

CASTRO, Walter de. Metáforas machadianas: estruturas e funções. .p. 7

HADDAD (org.). Poemas de amor de Machado de Assis. p.7-8.

BLAKE, William. Complete Writings. London : Oxford University Press, 1966. p. 175.

No original: O Rose, thou art sick;/The invisible worm,/That flies in the night,/In the howling storm,/

Hath found out thy bed/Of crimson joy;/O, dark secret love/Doth life destroy/And her dark secret love/ Does thy life destroy.

ASSIS. Obras Completas . Vol. II. p. 294.

Idem. Vol. III. p.52

SCHLEGEL, Friedrich. O dialeto dos fragmentos. p. 210.

PAZ, Octavio. Os filhos do barro . p.100-101.

ASSIS. O.C . vol III. p. 358

PAZ.Op.cit. p. 101.

BRANDÃO, Jacyntho Lins. “A Grécia de Machado de Assis”. p. 370

TOLENTINO, Bruno. “O espectro”. Revista da Academia Brasileira de Letras nº 35. Poesia. Disponível via http://www.academia.org.br.

ASSIS. O.C.Vol. I. p.827

Idem. Vol. II. p. 623.

Idem. Vol. I . p.1.019.

SHAKESPEARE, William. Hamlet. p.171.

KIERKEGAARD, S.A. O conceito de ironia. p.105.

GOETHE, Johann Wolfgang. Apud: BLOOM, Harold. A angústia da influência. p.100

ASSIS. OC. vol. III. p 1004.

Idem. p.1.006.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Referências BIBLIOGRáficas

 

 

 

 

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979. 3 vol.

 

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