POR UM MUNDO DE PALAVRAS VIVAS:

OS JORNALISTAS E O IMPERATIVO DA NEUTRALIDADE

 

Fernanda Cupolillo Miana de Faria
Mestranda em Comunicação Social
Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense

 

 

RESUMO

O presente artigo pretende fazer uma reflexão, a partir de Gramsci e de Sartre, sobre como as práticas do intelectual e do jornalista, formados em um mesmo locus social, como “técnicos do saber prático”, distanciam-se em virtude dos diferentes compromissos assumidos socialmente. De que forma isso se reflete no modo de se dirigirem ao mundo e buscarem uma interlocução com a sociedade? De que forma isso se reflete no uso dos seus instrumentos de trabalho, a “palavra”? O artigo pretende expor, portanto, alguns dos motivos, a partir da prática do jornalista, que o levam a se afastar da noção de intelectual, embora, muitas vezes, ele reivindique esse status. Argumenta-se sobre como a incorporação da retórica da neutralidade pelos jornalistas, derivada do racionalismo de que a classe burguesa se tornou representante, constituiu um dos braços para a construção dos pressupostos jornalísticos da imparcialidade e da objetividade, estreitando a possibilidade de apropriação criativa da palavra. Por fim, argumenta-se, a partir das revistas semanais de informação Época, Veja e Istoé, sobretudo nas reportagens de comportamento, sobre como essa retórica instaura uma falsa arena de discussão pluralista nesses semanários, sustentada por uma visão naturalizadora das relações humanas, valores, práticas culturais e do próprio ser humano.

 

Palavras-chave: intelectual, neutralidade, especialista;

 

 

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

“Enquanto cada um persegue sua felicidade, o resultado não é (exceto em teoria) uma sociedade mais equilibrada ou mais feliz” (Beatriz Sarlo).

 

Há em suas palavras uma estranha pressa. Um atrevimento. Uma vontade de partir. Se as olhamos de perto, à procura de respostas, mostram-nos, sob suas delicadas dobras, um minúsculo esqueleto, de vento e vazio. E se ainda mais perto chegamos, a ponto de sentirmos a música que dança de seu corpo, temos a certeza: é mar o que trazem.

Essa é apenas uma das muitas formas possíveis de se descrever um intelectual e sua matéria-prima, as palavras. É por meio delas, mais do que por qualquer outro veículo, que o intelectual estabelece um compromisso com algo que está para além de si. Representam, portanto, o seu vínculo com o mundo e o instrumento para transformá-lo. Por mais que gestadas sob penumbras e solidões, essas palavras possuem uma natureza coletiva. Só se realizam como tais se conseguem vencer a barreira que as separa dos homens. Se podem ser tocadas, apanhadas; se são livres para reinventarem-se permanentemente. E é exatamente esse o seu aspecto mais mal compreendido. Liberdade?, alguns poderiam questionar. De que espécie? Se são feitas de um barro invisível, e se infiltram em todos os nossos minúsculos silêncios, já não são naturalmente livres?

Para essas palavras tudo é mundo. Possibilidade. Não há nada pronto ou natural. Nem mesmo a liberdade, que, como todas as suas outras qualidades, é diariamente inventada. O fato de serem livres não se deve à natureza de sua matéria, à sua textura branca, transparente, à sua agilidade e destreza para segurar o escuro, mas ao peso do pensamento que as atravessa. Não um peso de quem carrega âncoras, mas de quem sabe andar sobre águas. Esse pensamento não teme mirar-se. É aberto. E avança, independentemente das montanhas de areia que irrompem de dentro de seu próprio corpo, espreitando o recuar da correnteza. No fundo, ele sabe: o que costura a montanha é espaço vazio.

Ignorando a condição de existência dessas palavras, a liberdade, e a verdadeira dimensão dessa liberdade, a flexibilidade de pensamento, muitos as tomam como pura forma, como instrumento neutro, receptáculo de quaisquer tipos de discursos. Mas essa palavra, mesmo desfazendo-se continuamente de seu corpo, é sempre uma palavra contaminada. Isso não impede, contudo, que muitos se façam passar por seus donos e busquem ocupar um determinado lugar social por supostamente delas fazer uso.

 

•  O JORNALISTA E A PALAVRA

Em diversas passagens da história, por exemplo, os jornalistas, profissionais cujo instrumento de trabalho é a palavra, reivindicaram um determinado status social e, conseqüentemente, um lugar de intelectuais, por supostamente estarem de posse delas. De fato, em muitos momentos, quando a palavra não era vista unicamente como uma posse ou como um signo distintivo ou não esteve submissa a rígidas regras de conduta, os jornalistas foram intelectuais. A literatura, por exemplo, durante um longo período, constituiu um agente facilitador desse diálogo entre o jornalista e a palavra, entre o jornalista e o seu mundo, entre o jornalista e o mundo, conferindo uma dimensão crítica e criativa à fala. Humanizava a sua voz e, portanto, potencializava a sua capacidade transformadora. Embora, é preciso ressaltar, nem todos os que faziam um uso supostamente mais livre da palavra pudessem de fato ser considerados intelectuais.

Antônio Gramsci, estudando o processo de formação dos intelectuais, dedicou algumas palavras para ironizar a reivindicação desse status pelos jornalistas e a vaidade (um elemento que contraria os projetos universalistas dos intelectuais) que, por vezes, os acometia por se julgarem detentores de um determinado saber. “O tipo tradicional e vulgarizado do intelectual é fornecido pelo literato, pelo filósofo, pelo artista. Por isso, os jornalistas – que crêem ser literatos, filósofos, artistas – crêem também ser os ‘verdadeiros' intelectuais” (GRAMSCI, 1991, p. 8).

 

1.1 - O lugar social do jornalista

Gramsci, contudo, também esteve atento à produção de camadas de intelectuais dentro dos grupos sociais que possuíam uma função específica no mundo, a exemplo dos jornalistas. Diferentemente dos intelectuais “tradicionais” (categoria preexistente, representante de uma continuidade histórica), os nascidos de grupos sociais com papel econômico bem definido eram denominados “orgânicos”. Gramsci não ignorava, portanto, o fato de os jornalistas desempenharem, em alguns espaços sociais, a função de intelectuais. Ainda mais se fossem levadas em conta as camadas sociais a partir das quais se originaram; segundo ele, camadas que, historicamente, “especializaram-se na poupança”:

Deve-se notar que a elaboração das camadas intelectuais na realidade concreta não ocorre num terreno democrático abstrato, mas de acordo com processos históricos tradicionais muito concretos. Formaram-se camadas que, tradicionalmente, ‘produzem' intelectuais (...), isto é, a pequena e média burguesia fundiária e alguns estratos da pequena e média burguesia das cidades (GRAMSCI, 1991, p. 10).

Jean Paul Sartre, definindo o lugar de origem do intelectual, também aponta, como Gramsci, para a burguesia. Sartre procura entender o processo de produção de um tipo específico de trabalhador, o técnico do saber prático, responsável por estudar os meios cujos fins “são definidos pela classe dominante e realizados pelas classes trabalhadoras”. Segundo ele, o intelectual é recrutado entre o conjunto desses técnicos:

Nascido em geral, na camada média das classes médias, onde lhe é inculcada desde a mais tenra infância a ideologia particularista da classe dominante, seu trabalho coloca-o de qualquer maneira na classe média. (...) Seu ser social e seu destino lhe vêm de fora: é o homem dos meios, o homem médio (...); os fins gerais aos quais se referem suas atividades não são seus fins (SARTRE, 1994, p. 24).

O jornalista, portanto, constitui um exemplo desse conjunto de técnicos do saber prático. E, a menos que tome consciência de sua função e das contradições entre a natureza universalista de sua atividade (já que o fruto de seu trabalho é supostamente distribuído de forma igualitária entre os indivíduos) e a ideologia dominante (que, através do discurso da neutralidade, mascara conflitos de classe), nunca será - na acepção de Sartre - um verdadeiro intelectual¹ Por mais que os próprios jornalistas reivindiquem o status de intelectuais, em virtude de fazerem uso da palavra e de se dirigirem a um grande número de pessoas, essa atribuição não lhes garante um legítimo papel de intelectuais. Diferentemente de grande parte dos jornalistas que dizem ocupá-lo, o intelectual luta a todo o tempo contra a ideologia dominante por meio de uma “autocrítica perpétua” e de “uma ação concreta e sem reservas em favor das classes desfavorecidas”.

A palavra para o jornalista, como técnico do saber prático, portanto, não constitui instrumento de transformação radical da estrutura social; pelo contrário, atua como mantenedora da ordem e, mais, de uma suposta ordem universal e pluralista. Essa palavra está presa ao exercício contínuo da naturalização: reinvonca permanentemente os mitos fundantes da sociedade burguesa, sem que os possamos visualizar como mitos, mas como aquilo que existe, a verdade das coisas, a lógica do universo, e deslegitima a fala ou o lugar de fala de indivíduos que se opõem aos caminhos naturais dessa vida. Nesse sentido, a palavra ocupa uma função defensiva. Protege uma determinada estrutura de pensamento dos próprios indivíduos por supostamente conferir um sentido coerente e humanamente apreensível à vida. Em vez de ser reinventado, o pensamento passa a ser reverenciado, impossibilitando que a palavra o materialize como expressão de sua complexidade, incompletude e imperfeição.

Quando não consciente de si e amarrada a um pensamento cristalizado, a palavra – segundo Bakhtin, sempre “carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial” (BAKHTIN, 1999, p. 95) – enfraquece a sua dimensão reflexiva e passa a servir como instrumento de perpetuação de uma ideologia que os indivíduos, muitas vezes, nem julgam existir. É por meio dela, portanto, que a ideologia dominante circula socialmente. E quem se responsabiliza por veiculá-las é justamente o técnico do saber prático; conseqüentemente, o próprio jornalista.

 

1.2 – A emergência do racionalismo e a retórica da neutralidade

Voltando-nos ao cenário de eclosão da ideologia burguesa, no século XVII - como estratégia para melhor compreender parte da herança das construções de saber do universo jornalístico e, conseqüentemente, as funções, os papéis e os ‘lugares sociais' a serem assumidos por esses profissionais -, faz-se necessário destacar o caráter supostamente universal e universalizante dos propósitos da classe então emergente. A ideologia burguesa, de acordo com Sartre, foi fundada como supostamente universal; estabelecia-se como contraponto à noção de que a existência de um Deus explicaria a existência humana - conferindo a ela um sentido – assim como de toda a espécie de vida. Por meio da figura dos filósofos, e não mais dos clérigos, a sabedoria transmuta-se em razão²:

Além dos trabalhos especializados dos filósofos, trata-se de criar uma concepção racional do Universo que o englobe e justifique as ações e as reivindicações da burguesia. Eles usarão o método analítico, que é apenas o método de pesquisa provado nas ciências e nas técnicas da época. Vão aplicá-la aos problemas da história e da sociedade: é a melhor arma contra as tradições, os privilégios e os mitos da aristocracia, fundada num sincretismo sem racionalidade (SARTRE, 1994, p. 19).

Constrói-se, entre os técnicos do saber prático, a idéia de que é necessário, em primeiro lugar, manter um olhar neutro com relação ao objeto em torno do qual se estrutura o seu trabalho, para que, em última instância, a ordem das coisas se faça ouvir, as leis que organizam esse estar do objeto no mundo se tornem humanamente apreensíveis. Nesse sentido, a neutralidade figura-se como método de análise, como uma forma institucionalizada de inquirir. Repetem-se os caminhos para se chegar ao objeto, para dissecá-lo e validar o conhecimento que se constrói a partir desse ritual investigativo. Estimula-se, portanto, uma determinada passividade do olhar, localizado para além do espaço material onde as leis que regulam o mundo se encontram ativas, e limitado à burocrática atividade de relatá-las. Em segundo lugar, constrói-se a idéia de que, uma vez descobertas e nomeadas, tais leis instauram um campo de produção de discursos, supostamente ilimitado, em torno do objeto; levantam debates e estimulam a troca de idéias. Perde-se de vista o fato de esses discursos terem uma dimensão proporcional às leis que concebem como universais; ao contrário do que defendem, sua validade é limitada, sua voz, situada e o que se julga descoberta, não passa de invenção. Em suma: “(...) os técnicos do saber prático fazem passar por leis científicas o que de fato é apenas a ideologia dominante” (SARTRE, 1994, p. 23). O emprego de uma palavra supostamente limpa, livre de toda a sorte de obscurantismos, maneirismos e pré-conceitos, constitui, portanto, o princípio fundante de uma retórica da neutralidade que falsamente estimula a pluralidade de pensamentos e concede a todos o direito à fala. E é justamente essa a retórica que o jornalismo parece repetir, guardada a importância do processo histórico que culminou na adoção desse modelo, que se propunha fazer frente ao partidarismo e ao sensacionalismo, entre outras coisas³. A idéia da imparcialidade, reforçada com a noção da objetividade, embora posta em xeque pelos próprios jornalistas - que, muitas vezes, admitem a impossibilidade de se relacionar assepticamente com os acontecimentos -, ainda é utilizada retoricamente para validar o discurso e a prática jornalística.

A título de exemplo, elegemos uma fala representativa desse mecanismo de validação retórica das convenções narrativas jornalísticas. Durante uma entrevista feita pela Associação Nacional de Editores de Revistas com o empresário Juan Ocerin, que está à frente da Revista Época, uma das três revistas semanais de informação mais vendidas no Brasil (as outras duas, Veja e Istoé), é possível perceber uma incorporação desse discurso no sentido de, supostamente, como já dito num momento anterior, viabilizar um profícuo campo de debates no e através do suporte:

(...) A imparcialidade é muito importante e tem a ver com dar a notícia sem excessos. (...) Somos vistos como uma revista menos preconceituosa justamente porque queremos dar a informação de uma maneira mais imparcial. Damos elementos ao leitor para que ele tome sua decisão. Não fazemos questão de fazer a opinião dele (OCERIN, 2004).

É interessante notar como, apesar de a imparcialidade ser invocada, na fala de Ocerin, como um valor, a sua incorporação à práxis jornalística parece ser relativizada. Em nenhum momento, Ocerin diz que o jornalista é totalmente neutro na cobertura das reportagens. Prefere associar à imparcialidade “uma notícia sem excessos” e afirmar que a informação é transmitida de “uma maneira mais imparcial”. A partir do momento em que Ocerin faz menção a uma escala de uso da imparcialidade, que varia, de acordo com o que a sua fala sugere, de uma conduta menos neutra a uma conduta mais neutra, ele acaba por admitir que não há neutralidade. Essa não parece ser, contudo, a idéia que Ocerin deseja associar à Época. No momento em que afirma que a revista confere elementos ao leitor para que tome sua decisão, reafirma, a despeito de todas as mínimas transgressões dos jornalistas, a prevalência no veículo de uma cobertura imparcial.

 

1.3 – As revistas semanais de informação: os especialistas nas reportagens de comportamento

Nas revistas semanais de informação, diferentemente dos jornais diários, a elaboração das reportagens está submetida a uma dinâmica temporal, menos contraída, que confere ao jornalista a possibilidade de investigar mais profundamente os acontecimentos. Com o intuito de adequar a temporalidade das revistas semanais às “leis” jornalísticas de fornecimento de informações sobre o mundo de modo objetivo e neutro (já que os jornais diários parecem fornecer o modelo paradigmático de fazer jornalístico aos outros suportes), pode-se verificar nesses veículos o emprego de estratégias discursivas que, em última instância, visam reforçar esses ideais da neutralidade e da objetividade.

Tais estratégias mostram-se ainda mais evidentes num tipo específico de reportagem produzido pelas revistas, as de comportamento, que, num primeiro momento, em função do repertório temático abordado, parecem descaracterizar a imagem de ‘seriedade' almejada tanto pela instituição jornalística de um modo geral, como pelas revistas semanais de informação pesquisadas nesse trabalho (Veja, Época e Istoé). Pode-se dizer que as reportagens de comportamento constituem o terreno por excelência dos especialistas. Diferentemente das reportagens de economia, política, esportes, entre outras, em que a notícia se constrói a partir de acontecimentos específicos, de ações muito bem demarcadas temporalmente, a notícia das reportagens de comportamento, em grande parte das vezes, constrói-se a partir da fala dos especialistas entrevistados, que delimitam e dão forma aos acontecimentos que, supostamente, preexistem às suas considerações.

Beatriz Sarlo argumenta que, por trás da recorrência constante dos jornalistas à opinião dos especialistas, há um movimento de retro-alimentação que os faz depender um do outro, e que os impede de fazer uma crítica mútua. Nenhuma das duas esferas de produção de idéias, portanto, mostra-se capaz de responder às “tarefas do presente”:

Apoiados na credibilidade da ciência e da técnica (que talvez sejam hoje, juntamente com as neo-religiões, as principais fontes de fé no sistema linfático da mídia), os especialistas, em primeiro lugar, acreditam na própria neutralidade frente aos valores e, portanto, em que um aspecto central de sua tarefa é justamente preservar essa neutralidade. Opinam como especialistas, a partir de bases acadêmicas ou das repartições do governo, e sua opinião obtém uma aura de objetividade, já que é justamente a opinião de um especialista, que se considera acima da disputa de interesses. Os meios de comunicação de massa (em particular o jornalismo escrito) acrescentam outro fio a essa trama, sobre a qual os especialistas fazem com que seus juízos pareçam objetivos, atribuindo objetividade à prática tecno-científica (SARLO, 2000, p. 168).

Nas reportagens de comportamento é constante a referência ao universo de saber dos especialistas, ao campo das tecno-ciências como um universo produtor de discursos a partir dos quais os outros se estruturam. Ou seja, a voz originária do universo dos especialistas é a que confere legitimidade a todas as outras vozes; valida ou nega as visões, opiniões e os saberes que circulam no espaço de uma reportagem. Em duas reportagens de comportamento sobre medicina alternativa, mais recentemente denominada “complementar”, das revistas Veja e Istoé, é possível perceber uma recorrência à voz da ciência como estratégia de legitimação dos discursos:

Pesquisas recentes dão respaldo científico a uma crença que, divulgada no Ocidente pelo pessoal do paz-e-amor, está na base de filosofias orientais milenares – a de que uma mente apaziguada ajuda a prevenir doenças, acelera a recuperação física e até a cura (BUCHALLA -VEJA, 2003, p. 79).

O limite entre o bem e o mal das terapias complementares começa a ser averiguado ainda em outro nível – o científico. Diversas universidades estão pesquisando os efeitos das práticas. A eficácia da meditação e da ioga, por exemplo, como coadjuvantes em tratamentos, foi comprovada por dezenas de estudos. Calcadas nessas evidências, várias instituições estão investindo na convivência entre a medicina convencional e as diversas terapias (TARANTINO - ISTOÉ, 2003, p. 50).

Ambas as reportagens validam a voz da ciência, de domínio dos especialistas, como a única capaz de assegurar o grau de verdade das terapias ditas alternativas. Enquanto que Veja faz uso de um tom de deboche como estratégia para deslegitimar um determinado lugar de fala (“crença divulgada pelo pessoal do paz-e-amor”), Istoé atribui juízos de valor à prática das terapias complementares, polarizando-a entre as noções de bem e de mal (“limite entre o bem e o mal das terapias complementares”). Tais reportagens também constituem um exemplo, através da figura do especialista, das qualidades do tipo de discurso considerado universalmente válido: praticidade, clareza e eficiência. Os especialistas são consultados não para suscitar dúvidas, levantar questões, mas para dar respostas, esclarecer, apontar o caminho. Um saber autoritário se coloca entre o especialista e o leitor. Em todo o seu excesso de direção, empobrece o corpo da palavra, tornada monocórdia. Suas mil camadas de memória se condensam numa só. Como se automóvel em grande velocidade, encolhe as asas e diminui a superfície de contato com o vento para chegar mais rapidamente ao destino.

Para Marco Aurélio Nogueira a emergência e a multiplicação dos especialistas em âmbito macroscópico representa a instauração de uma nova forma de olhar - que vem se tornando hegemônica - e de encarar os problemas sociais de nosso tempo:

Os especialistas proliferam aos borbotões, colados à lógica mesma da racionalização instrumental que nos domina. Tendem a empurrar para os bastidores os ideólogos, a estigmatizá-los como dinossauros, sobretudo quando associados a qualquer perspectiva anti-sistêmica. Os ideólogos ‘oficiais' – os que sabem pensar o mercado e o indivíduo liberal (...) – são convertidos em intelectuais de outro tipo: ideólogos que se querem sem ideologia, técnicos em princípios gerais, em ‘soluções', em normas e lições moralizantes. Numa época de decisionismo, rapidez e resultados, tende-se a cobrar do intelectual uma mudança de postura: menos idéias e mais conhecimentos, menos opinião e mais interesse, menos valores e mais ‘objetividade' (NOGUEIRA, 2004, p. 362).

O especialista constitui, portanto, a própria materialização da retórica da neutralidade; juntamente com os jornalistas, anunciam, por meio de palavras supostamente nuas , a natureza do mundo, as coisas como elas são, o caminho a percorrer e os manuais a consultar para fazer com que esse mundo permaneça o mesmo. Pois na medida em que os especialistas se referem a uma natureza, a uma estrutura pré-organizada dos objetos e dos seres, a uma genética das relações entre os diversos elementos que compõem o mundo, fadada a reescrever-se perpetuamente, perde-se de vista o caráter transitório de tudo aquilo que tem vida. Se alguém ousasse falar em natureza das coisas, ela não poderia se caracterizar por uma dureza ou completude, mas pelo caráter passageiro.

Nesse sentido, as coisas não são, mas estão. Isso também vale para as palavras que, a todo instante, atravessando a confusa escuridão dos homens, suas infinitas camadas de pele e memória, contraem vida. Ao contrário do que o uso feito das palavras pelos especialistas parece sugerir, elas possuem vida. E assim como tudo aquilo que respira, também morrem. Diferentemente das palavras dos especialistas, as dos intelectuais têm consciência do tempo, da finitude; renovam-se em vez de se repetir; abrem-se em vez de se encolher; e são, como os homens que a manipulam, ambíguas, comportam sempre outras dentro de seu corpo sem limite.

A retórica da neutralidade de que os especialistas, com o auxílio dos jornalistas, lançam mão, como já dito num momento anterior, supostamente abre a possibilidade de se instaurar uma arena de discussão pluralista, em que todos os atores sociais são impelidos a falar, e mais, em condições iguais entre si. De acordo com essa retórica, não se associa nenhum juízo de valor às idéias que circulam nesse espaço, que, presunçosamente, parecem esgotar a multiplicidade possível das idéias no mundo. Nas reportagens de comportamento, por exemplo, que tematizam situações e preocupações do cotidiano supostamente compartilhadas por todos os indivíduos, independentemente da classe social a que pertencem, é possível perceber como essa retórica não se sustenta, a começar pelo discurso dos editores das revistas, que unifica e dá coerência, ou seja, uma identidade, ao veículo.

Em entrevista à Associação Nacional de Editores de Revistas, Domingo Alzugaray, editor chefe de Istoé, relata algumas restrições a que as publicações estão sujeitas (embora argumente que tais restrições não possuam validade para Istoé), contrariando a idéia, à qual elas costumam se associar, de liberdade irrestrita na elaboração das reportagens.

Istoé foi lançada em 1976, em sociedade com Mino Carta. Uma revista mais ousada, mais independente, mais investigativa, no fundo é a linha que mantemos até hoje. Porque nosso nível de compromisso é muito menor que o dos outros editores. (...) Vou dar um exemplo para explicar melhor: a revista Época não pode levantar um assunto com ponto de vista contrário ao que levantou o Jornal Nacional. Há uma unidade. Então, eles não são independentes. Têm de seguir a linha dos grandes canais de comunicação que o grupo tem (ALZUGARAY, 2003).

Contrariando a expectativa gerada pelo seu depoimento de independência de Istoé, Alzugaray, num momento posterior, afirma que:

Mas se você tem um grande anunciante que considera Istoé como um veículo muito certo para seus produtos, você não pode atacar os produtos dele de maneira leviana. Tem de ter um negócio realmente muito sério para você ir contra os interesses desse anunciante que está considerando você um bom parceiro. Eu acredito em parcerias comerciais (ALZUGARAY, 2003).

Ao mesmo tempo em que Alzugaray afirma ser Istoé uma publicação mais independente do que as demais, constata que interesses comerciais impedem que algumas coisas sejam ditas na revista. Assim como Ocerin, que, muito provavelmente, não gostaria de sugerir que a imparcialidade é ilusória, ou seja, que não existe de fato, Alzugaray não parece querer dizer que a independência é ilusória. Isso é o que, no entanto, ele afirma nas entrelinhas.

 

2 - O MOVIMENTO CIRCULAR DA MEMÓRIA

Tais constrições macroscópicas a que os jornalistas estão sujeitos, as chamadas políticas editoriais, não constituem fatores que, isoladamente, no entanto, determinam a sua forma de se dirigir ao mundo, de elaborar as reportagens e de buscar uma interlocução possível com o leitor. Inúmeros fatores são responsáveis por modelar o olhar do jornalista, fazendo com que, mesmo que só sob a forma de uma retórica, eles incorporem o ideal da objetividade e da neutralidade. Dentre esses fatores, pode-se citar, em termos macroscópicos, a memória social, e, em termos microscópicos, a memória da comunidade jornalística. Ambas as memórias, como repertórios compartilhados de idéias, funcionam como espécies de guias de ação para os jornalistas; na ausência de explicações, argumentos e fundamentações para a sua fala, recorrem às ideais prontas que estão disponíveis nessas memórias.

O circuito de reprodução de idéias prontas (mascarado pelo pressuposto da novidade que orienta a construção das reportagens) que se origina a partir dessa prática acaba por impedir, ou melhor, dificultar um posicionamento crítico do jornalista. Lançando mão de parâmetros fixos de análise, de formas cristalizadas para entender o mundo, como se o mundo e ele próprio não se modificassem, o jornalista dá início a um movimento de naturalização das coisas, que é o extremo oposto daquele que um intelectual, na acepção de Sartre, deve possuir. Para Sartre: “o intelectual deve lutar o tempo todo contra a ideologia, que renasce, todo o tempo, ressuscitada perpetuamente sob formas novas por sua situação original e por sua formação” (SARTRE, 1994, p. 47).

Tanto o jornalista quanto o intelectual estão presos a uma formação humanista que ensina que todos os homens são iguais e têm os mesmos direitos. Ao longo da vida, no entanto, percebem a contradição de um tal discurso em virtude de o caráter universal dos conhecimentos por eles construídos enquanto técnicos do saber prático se mostrar, na verdade, muito pouco plural: nem todos os indivíduos têm acesso a esse conhecimento, e quando têm, nunca é em condições iguais. Mas grande parte dos jornalistas, ao contrário dos intelectuais, recorre à sua formação, ou seja, à sua memória e à memória da sociedade, para esquecer. As contradições sociais são amansadas internamente, postas de lado; embora muitos tenham a expectativa de intervir de alguma forma no plano social, acabam, por diversos motivos, não suportando a angústia que um ininterrupto processo de luta reivindica, além da reacomodação das forças e dos replanejamentos constantes.

As revistas semanais de informação, por exemplo, constituem um artigo de luxo para a maior parte dos indivíduos, assim como também suas versões virtuais, a que só os assinantes têm acesso irrestrito. As revistas não falam em nome de todos e não abrem um espaço de discussão plural. São feitas por técnicos do saber prático, oriundos das classes médias, e falam, sobretudo, para essas mesmas classes médias, seu público-alvo. Pelo menos quanto ao público a que se dirigem as revistas, os jornalistas parecem estar conscientes, como constata Domingo Alzugaray:

Com 180 milhões de pessoas no Brasil, só um terço da população lê revistas. Você vende para cada família e o Brasil tem de 10 a 12 milhões de unidades familiares, com 50 a 60 milhões de habitantes, que são alfabetizados, têm condições econômicas, consomem bem. Outro terço eventualmente interessado não tem condições econômicas para isso. Esses 10 a 12 milhões estão à espera única e exclusivamente de um pouco de renda para comprar revista. E o último terço não tem interesse porque não sabe ler (ALZUGARAY, 2003).

A fala dos jornalistas que escrevem para essas revistas semanais de informação é, portanto, circular. Voltam para o mesmo lugar de onde saíram. Sustentando as visões de homens e mulheres formados por um processo educacional historicamente engendrado - desde a construção da burguesia enquanto classe –, que apesar de conferir a possibilidade, dependendo dos caminhos seguidos e das escolhas tomadas, de que os indivíduos visualizem por si sós a contradição entre os valores burgueses e a realidade, não estimula um rompimento com tais valores, um processo revolucionário que culmine na construção de uma sociedade mais ética, mais consciente de si e de suas possibilidades transformadoras.

Em certo sentido, pode-se dizer que a memória social de nosso tempo está atravessada por um movimento de cinismo, que a todo tempo, e de inúmeras formas, ensaia novas maneiras de se infiltrar em nossas práticas e discursos. Sim, há algo estranho que passa diante de nós. Na esquina, do outro lado da rua, dentro de nosso próprio corpo. Mas há certas coisas contra as quais não valha a pena lutar. Demandam mais força do que as que dispomos. Pedem um tempo impossível de ser compartilhado. Um tempo nosso. Só nosso. Além do irremediável encontro com o espelho, cujo intuito não é ordem contemplativa, mas invasiva. Para colocar diante de nossos olhos tudo aquilo que um dia, por não termos conseguido suportar em presença, foi guardado nos mais secretos esconderijos do corpo. Teremos, enfim, que doar. Um tempo não cifrado. Longe de nós. E isso é tudo o que pode haver de mais assustador. Durante toda a nossa vida, nunca nos impulsionaram a viver esse gesto; nunca, tampouco, ousamos aprendê-lo por conta própria.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

COM A PALAVRA, OS INTELECTUAIS

Talvez seja tempo de retomarmos as palavras de alguns dos mais sábios intelectuais de nosso mundo, a exemplo de Gramsci e de Sartre. Ambos nos ensinam o peso que as palavras devem ter. Canoas solitárias em alto-mar. Ambos nos ensinam da força que nos faz buscar o escuro e os ventos farpados. Entre a torrente de dúvidas que os acompanha, há uma certeza. Para eles, é possível (e urgente) reescrever o mundo dos homens em palavras-marinhas. Em água-viva. Em corpos humanos lúcidos, a um só tempo, de seus mais estreitos lagos e de seus infinitos e inalcançáveis oceanos.

Notas:

[1] Há que se fazer uma ressalva com relação às categorizações feitas por Jean Paul Sartre em torno da figura do ‘verdadeiro' intelectual. Não constituem preocupações do presente trabalho uma ‘filiação' integral à visão exposta pelo autor, nem uma valorização da figura do intelectual em detrimento da do jornalista. A intenção é a de, somente, desconstruir alguns dos papéis geralmente atribuídos aos jornalistas e reivindicados por eles, desmistificar a ‘aura' de intelectual que ainda ronda a figura do jornalista em função, sobretudo, da história de atuação desse profissional no Jornalismo brasileiro e da forma como se construiu socialmente a sua identidade.

 

[2] “Não podemos negar certas implicações mais ou menos diretamente anti-religiosas acompanhando esse movimento ideológico, cujo primeiro gesto consiste na anulação da diferença entre o Céu e a Terra. Estes dois elementos se dissolvem na infinidade de um espaço euclidiano. E Deus fica expulso do mundo da ciência. Esta se liberta da tutela teológica. Mas houve uma segunda implicação, não menos essencial: a linguagem matemática, através da qual se produz a ciência moderna, bem como o espaço geométrico (infinito, homogêneo e não-orientado), no qual a ciência passa a construir sua cosmologia, vão provocar, como uma espécie de contrapartida, o eclipse do sujeito, quer ele seja considerado no nível vital, no psicológico ou no epistemológico. É por isso que se diz que a ciência moderna veio substituir a antiga oposição homem/Deus pela simples oposição sujeito/objeto”. JAPIASSU, Hilton. A Revolução Científica Moderna . Rio de Janeiro: Imago, 1984, p.11.

 

[3] Faz-se necessário ressaltar que a incorporação de uma retórica da neutralidade não vai de encontro aos vários processos históricos que motivaram transformações no fazer jornalístico e que culminaram na adoção dos pressupostos da imparcialidade e, posteriormente, objetividade. Não nos interessa, neste momento, no entanto, estudar tais processos, mas pensar nas imbricações possíveis entre os pressupostos jornalísticos e a retórica da neutralidade derivada do racionalismo.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

•  ALZUGARAY, Domingos. In: Em revista . Ed. 2 março/2003. Disponível em: www.aner.org.br .

 

 

•  BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem . São Paulo: Hucitec, 1999.

 

 

•  BUCHALLA, Anna Paula. “O corpo é o espelho da mente”. In: Revista Veja. Ed. 1804. ano. 36. nº 21. maio/2003.

 

 

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•  NOGUEIRA, Marco Aurélio. “Os intelectuais, a política e a vida”. In: MORAES, Denis (org). Combates e utopias . Rio de Janeiro: Record, 2004.

 

 

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