O ENTRE-MUNDOS DE UMA HISTÓRIA SEM FIM

Felipe Forain

Bacharelando em letras: português-literaturas

UFRJ

 

A “História sem Fim” de Michael Ende é uma profunda obra que, desde o título, nos instiga a pensar. Pois é no mínimo instigante pensar numa história sem fim, ou seja, que nunca termine, que seja perpétua. O livro possui a capa cor de cobre e, ao lado do título, a imagem de duas serpentes que, devorando uma a cauda da outra, desenham um círculo perfeito. Por tratar-se de uma obra dita de ficção, pode-se considerar que o título refere-se à história como estória, ou seja, conto, narrativa. Porém, é devido lembrar que a palavra história é ambígua, e possui dois sentidos opostos: um, relato de ficção, ou um relato do real. Trata-se, então, de diferenciar o que seja real do que seja ficcional, do que seja fato para o que seja invenção. O que, contudo, se mantém presente nas duas é o fato de serem um relato, ou seja, sejam manifestos pela palavra. Ambos os entendimentos levam a pensar a história como um trazer ao conhecimento, um revelar-se, pela palavra, a partir da memória. Nesse âmbito, o que seja um revelar do Real ou de Ficção parece confundir-se, e é nessa confusão que se estrutura a própria história sem fim da obra. Porque, é natural constatar que, numa relação de oposição, tal qual entre real e ficção, para que a oposição possa ser estabelecida, é preciso que haja entre ambos um comum que os permite sequer serem postos em contraposição. É justamente neste entre constante que a obra irá se posicionar, a partir sempre da inter-relação inevitável entre os contrários.

A obra conta de um garoto que, no comum de sua vida “real”, descobre um livro mágico em cuja história acaba por adentrar e participar, o que finda por fazer dessa história fantástica a sua própria história também. Chama-se Bastian Baltasar Bux. É um menino gorducho, pequeno, que é constantemente tornado alvo das pilhérias dos colegas e não tem amigos. A mãe faleceu e o pai, vitimado pela perda da esposa, fechou-se num ensimesmamento frio e indiferente, inclusive ao filho, o que lhe causa muitas mágoas. Bastian possui, contudo, uma grande paixão: os livros e as histórias, as que lê e as que inventa. Bastian é, acima de tudo um inventor de histórias.

Um dia, ao esconder-se numa loja de alfarrábios, descobre um exemplar de um livro chamado “A História Sem fim” cuja capa é a mesma do livro que nós, leitores reais, estamos lendo. Instigado pelo título magnífico do livro, na surpresa de ter descoberto uma história que nunca chegasse ao desfecho, Bastian rouba-o e foge para o sótão do colégio para dedicar-se à leitura. Numa primeira e superficial análise, pode-se dizer que a obra se divide em duas narrativas: uma passada no mundo real, no qual vive Bastian, e uma no fantástico, contida no livro que lê.

Isolado no sótão escuro, Bastian começa a acompanhar as aventuras de um herói, Atreiú, na sua busca desesperada para encontrar uma solução que combata o mal que aflige seu mundo: o Nada. O universo em que se passa essa história chama-se Fantasia, uma terra em que permanecem todas as histórias sempre inventadas, narradas, entoadas, cantadas, versadas, inspiradas ou pensadas pelo homem. Por este nome, Fantasia, se estabelece a indicação direta de que esse mundo trata do universo da ficção. Neste mundo todas as idéias e his(es)tórias se originam; todas permanecem e fundam aquilo que, no mundo real, constituirá uma história, um livro, um mito. Fantasia está sendo corroída pelo Nada, um elemento estranho, a completa nulidão, um vazio negro que vai se alastrando aos poucos, por todos os recônditos e cidades, anulando tudo o que existe nessa terra mágica. O destino fatal de Fantasia parece ser sua extinção, não fosse, como já mencionado, os esforços de Atreiú. A ele foi dado, para que empreendesse a busca, um medalhão chamado AURIN, que possuía o exato aspecto das duas serpentes ilustradas na capa dô livro. A questão que permanece aqui é: o que é esse Nada?

Uma criatura persegue Atreiú desde o início de sua jornada, criatura esta saída do Nada, com aspecto de lobo e temperamento terrível. Quando finalmente se encontram, a criatura explica ao herói o que é o Nada: é a decadência de Fantasia, causada pela abstinência dos homens em imaginar e criar. Sua excessiva seriedade leva à auto-destruição de fantasia. E algo ainda mais grave ocorre: cada ser devorado pelo nada torna-se, na passagem, uma mentira na mente dos homens; a partir dessas mentiras, os homens, cada vez mais, se convencem da falsidade de Fantasia e se afastam dela. Quanto mais se afastam, mais o nada toma conta de Fantasia. Estabelece-se um ciclo vicioso, e aparentemente sem escapatória. Porém, algo aqui se esclarece também: Fantasia e o mundo real possuem uma interligação muito sutil. Quanto mais o nada se projeta, mais mentiras intervém entre os homens, e quanto mais afastados se fazem, mais guerras e crimes começam a cometer. A saúde de um mundo dependo da saúde do outro. Fantasia, ao que parece, não é apenas o habitar do fantástico e falso: é o habitar de toda e qualquer invenção do homem, onde se resguarda e sustenta toda sua faculdade de criar e inventar. Nisto que o homem perde sua ligação com o seu fundamento originário, torna-se incautamente um seguidor mecânico do senso comum, das vaidades e dos interesses mundanos, criando guerras, misérias e crimes. O homem, a partir disso, torna-se um escravo do ver, ou seja da persuasão empobrecedora da pura razão e da instituição do dito real. Com isso, mais o mundo da Fantasia se desfaz no nadificar do homem.

Atreiú retorna enfim para revelar que não encontrou solução para o problema de Fantasia. Essa notícia quem recebe é a Imperatriz Criança, a grande imperatriz que governa toda Fantasia. Para a surpresa de Atreyu, porém, ela revela que, desde o momento que o expediu à busca, conhecia a única solução possível para combater o nada. Revela, no entanto, que sua busca não foi em vão, que todos os feitos de Atreyu tinham a única meta de despertar a atenção de um homem, o único capaz de reverter a aniquilação de Fantasia, o Salvador. Para isso, era preciso que esse homem desse à Imperatriz um novo nome. Após circunstâncias que o levam a acreditar que esse homem é ele, Bastian exclama o novo nome da Imperatriz Criança, por ele dado: Filha da Lua. E ao faze-lo, um clarão o envolve e Bastian se descobre dentro da própria História que lê. É encaminhado, por um jorro misterioso, para dentro de Fantasia.

O que se viu até agora é um enredo que parece meramente brincar com a percepção conceitual de haver um mundo real e um das idéias, baseado no pensamento moderno de que existe uma realidade de fato “real”, em oposição a um universo da ficção: É escolhida uma explicação mágica e miraculosa para que Bastian adentre o mundo mágico que, no entanto, ainda é o mundo mágico, em oposição ao mundo real. Essa é uma leitura possível, mas que, no entanto, não parece abarcar plenamente o fundamento da obra. É preciso afastar o olhar de uma separação metafísica da verdade para que se compreenda o que sucede. Somente assim se poderá compreender a História sem Fim com a profundidade que perpassa o livro que, de outro modo, parecerá uma história infantil. Torna-se necessário compreender que a História Sem Fim é, na verdade, (e também) a história de Bastian. E mais ainda: que a História sem Fim é também o livro que nós, leitores, temos nas mãos, e, com isso, é a nossa própria história. Mas de que modo isso se dá?

Bastian hesita no que respeita ser ele o salvador de Fantasia clamado pela Imperatriz Criança, e enquanto não se decide por dar-lhe o nome que pede, a Imperatriz decide procurar a criatura mais antiga de Fantasia para que a ajude a convencer Bastian de sua inevitável tarefa. Encontra-o no interior de um grande ovo, flutuando sobre as montanhas, escrevendo sem cessar um livro, que revela ser o livro da história de Fantasia, intitulado a História Sem Fim. O lugar onde velho escritor vive e escreve incessantemente o livroé um ovo: O ovo é o embrião que vai tornar-se um ser completo de vida. O Velho escreve sem cessar a história sem fim de Fantasia, desde o princípio: é onde se fecunda tudo o que é e há em Fantasia. Se acontece em Fantasia o que ele escreve, ou se ele só pode escrever porque aconteceu, é um mistério. Como o Salvador não lhe desse seu novo nome o tempo passasse, ela sugere que o velho torne a escrever o livro desde o princípio. A História, contada desde o início, novamente, principia, no exato momento em que um garoto gorducho lê o vitral de uma loja de alfarrábios, do lado de dentro. São os mesmos termos que iniciam o livro que temos nas mãos: a história de Bastian é a história de Fantasia, e a história de fantasia é a história de Bastian. É impossível separar uma da outra. O sem fim da história sem fim, contudo, ainda permanece em suspenso.

É importante repensar algumas das questões levantadas para compreendermos o que vem a seguir. Muita coisa já foi posta em questão, porém, nem tanta coisa foi propriamente questionada. A estreita relação entre o acontecer do nada e o acontecer das mentiras humanas tem uma implicação muito mais profunda do que uma mera imbricação de dois mundos separados por uma relação metafísica. Assim pensado, os dois mundos se assemelham a um corpo que, doente, adoece também a mente do doente, num processo de adoecimento sem fim. Não há separação corpo x mente, Real x fantasia, porque trata-se inextricavelmente do mesmo. O acontecer em fantasia é o acontecer direto do Real. Muito mais do que um símbolo da imaginação humana, Fantasia é o próprio homem eclodindo para si no que tem de mais profundo e verdadeiramente humano. Fantasia é o que de mais próprio possui, o que o define como humano, em oposição a toda a natureza. É o que lhe confere a existência como aquele que possui consciência de sua condição de ser encaminhado por Eros rumo a Thanatos, e caminhando nesse entre busca prover-se do que é próprio enquanto se dá numa relação de identidade e diferença com todos aqueles que, junto dele, caminham para a morte. Fantasia é o que o humano é, e do que o homem não pode afastar-se, com o risco de aprisionar-se na esfera do homem; mas que, ainda assim, se afasta. É Fantasia o eclodir do extraordinário no ordinário do existir humano. No que o homem se afasta disso que é seu, apaga-se em esquecimento e nulidão, e, dessa forma, consome Fantasia no nada de sua violência e desmazelo. O desapego de Fantasia torna-o surdo ao auscultar o que há de mistério no mundo, tornando-o passivo do cotidiano e da pusilanimidade. Fantasia é, portanto, muito mais do que uma ambientação dentro da história: é o caminho no qual nós nos movemos e em que a nossa história se constrói. Mas, para que se a construa, é preciso despertar.

Bastian precisou despertar para o apelo de sua vida, até então adormecido na distração do ordinário comum. O salvamento de Fantasia faz-se através de uma nomeação: Filha da Lua é o nome eleito para a Imparatriz Criança. Mas por que mulher, por que criança? A mulher gesta; é aquela de quem o feto toma todos os nutrientes para se desenvolver como um ser completo de vida. A mulher é aquela que tirando de si, doa ao mundo a vida. E criança, porque é na criança que existe aquele olhar curioso que se espanta com tudo do mundo que, no olhar viciado e impregnado de conceitos de um adulto, parece ordinário e sem apelo. A criança mantém viva em si a chama do extraordinário, do constantemente novo, do novo onde não parece haver novidade. A criança está sempre inaugurando o mundo sem nunca esgotá-lo. A Imperatriz Criança, pois, é a geradora que nunca se esgota, que sempre se inaugura e renova quanto mais doa. Por isso do ovo em que o velho se encontra: no ovo vemos o encontro da criança com o velho: nela o constante gerar e doar-se Fantasia, o choque entre tudo o que há e o que permanece no porvir. O velho é a memória de Fantasia: aquele que guarda em seu livro tudo o que foi e cujo futuro não há. O que aparece é a própria vida na sua totalidade. É então que Bastian escolhe o nome.

No ato da nomeação, temos enfim a conclusão do entre o ser e o não ser. Nomeando, trazemos, até mesmo para o pensar mais abstrato, uma capacidade inteligível do objeto como algo real. Dar nome é faculdade da liberdade do homem. Portanto, ao nomeá-la, Bastian traz de volta Fantasia ao existir com o homem, este não como seu sujeito manipulador ou proprietário, mas como aquele que nela e com ela e para ela encontra o que funda seu existir. Esse nomear revela ainda mais. O nome Filha da Lua não é por acaso. É aqui que se revela o caráter mítico-originário da obra. Vamos ao mito.

No que se dá o mito, eclode o homem no que é. O que isso quer dizer? Com o surgimento da filosofia, a metafísica cindiu do homem sua relação fundamental com a natureza e o experienciar o mundo. A partir de então o mito, como força fundadora, tornou-se acontecer intelectualizador da natureza. O mito passou a ser visto como objeto de estudo histórico e literário, como objeto de cunho poético-ficcional. A separação Real x Ficcional veio a tornar-se cada vez mais imperante, resultando na atual hipervalorização do ver das coisas objetivas e úteis, em desprezo dos valores poéticos e artísticos do criar do homem. Se voltarmos aos pensadores originários, contudo, veremos que, neles, o pensamento filosófico e mítico se encontram unidos e indiferenciáveis. Os mitos são as próprias questões revelando-se como imagem, como acontecer. São o próprio mistério da vida inextinguível. É como nos pensadores originários que Fantasia, então, ao invés de mundo Ficcional, apresenta-se como o mito do próprio fazer e caminhar humanos. Filha da lua é a filha daquela que ilumina a escuridão total. Filha da Lua é aquela que, no âmago da dor de ser do homem, revela a ele, não como agente, mas como o próprio ser do homem, o despertar na escuridão, para aquilo que lhe é inevitável. E assim, na escuridão em que mergulha, Bastian escuta, envolvida em blandícia, a voz de Filha da Lua, despertando-o para a grande novidade que lhe espera.

A primeira criatura que Bastian conhece nas terras de Fantasia é Graograman, a morte multicor, que é aquele que vai revelar a ele que, nessas terras em que caminha, não haverá respostas para sua pergunta, apenas se acirrarão os mistérios. Por dia Graograman percorre as areias do deserto de Goab, onde habita alheio a qualquer outro tipo de vida, porque o simples contato com ele é capaz de aniquilar qualquer ser vivo. Ele é o Deserto, porque sua presença aniquila tudo, que se torna deserto. À noite, porém, Graograman transforma-se numa grande estátua de mármore, e só então, donde havia o deserto, brotam as sementes que se transformam na floresta de Perelim. Graograman morre todas as noites, e retorna à vida no amanhecer seguinte, para que, da sua morte, a vida possa eclodir novamente na floresta. Graograman é aquele que se recolhe para que o mundo possa surgir. Heráclito diz, no seu fragmento 123, que Fysis kriptestai Filei : a fýsis ama velar-se. Sua morte como deserto é que permite seu eclodir como floresta. A grande criatura não é mais deserto do que floresta: é a morte de um que engendra a vida do outro, num ciclo interminável que é o próprio ciclo da vida: toda a vida começa e se alimenta da morte. Essa é a grande lição ensinada por ele a Bastian: que, para tudo que a gente se torne, há muito que a gente deve velar. Naquilo dele que a partir de sua experiência eclode como parte dele, parte do que é deverá encobrir-se. Não é à toa que Graograman será o primeiro encontro de Bastian em Fantasia. É o introdutor vivo da experiência radical que Bastian deverá enfrentar, e que é uma questão central do livro: o experienciar o descobrir da identidade.

Em Fantasia Bastian é presenteado com o AURIN, o mesmo símbolo que Atreiú, antes dele, carregara. Lá lhe é conferida a liberdade para desejar tudo o que quiser, sem restrições. É seu prêmio como Salvador. Porém, uma vez que Fantasia fora quase inteira destruída, é seu dever recriar o mundo, a partir de seus desejos. Essa percepção se deve manter presente a partir de agora: houve uma destruição dolorosa e complicada, agora haverá toda uma tentativa, igualmente dolorosa e dramática, de reconstrução, de um novo nascer. Se de Bastian ou Fantasia, por enquanto, deixo em suspeita.

Para cada desejo de Bastian, um aspecto de sua vida anterior haveria de ser esquecido. Para vir a ser, precisava romper-se. Este Bastian que aqui está é uma imagem de uma grande questão: do homem em busca de sua identidade. Aquela que ele conserva está em crise: já sua aparência se modificou, agora parece um príncipe oriental, forte, belo e esbelto, e sua antiga aparência esvaiu-se de sua memória. As constricções que o prendiam a um indivíduo limitado e satisfeito se desfizeram: ele pode tudo o que quiser. E a partir disso, começa a desejar em função de seus interesses. Há, contudo, um pequeno agravante, já exposto a ele por Graograman: tudo o que Bastian deseja, é fruto unicamente de seu desejo, ou Bastian o deseja porque é levado a isso pelas próprias exigências do que vige eclodir? A resposta é o silêncio. Não há resposta para o mistério, a única resposta é viver e aceitar o mistério. O que eclodir disso, é ainda mistério. E é nesse contato com o mistério que Bastian, cada vez mais, se acirra em seus desejos, e a cada vez desfaz-se daquilo que era. Aquilo que cada um é, é dado, não como um presente oferecido, mas como o que desde a origem permanece e do qual não se pode escapar. O livre do ser humano é o âmbito que lhe é dado para errar: só se pode errar porque se é livre para escolher o caminho do erro. Erro, aqui, deve ser entendido não por um julgamento moral de valores, mas como o não predispor-se àquilo que é fundamentador do humano e do próprio, dentro do humano. Pode-se dizer, apensar disso, que Bastian erra? Também, se se considerar que errar é predispor-se à caminhada, e no caminhar, a descobrir-se. Aquele que é desde sempre inclinado para seguir uma única via sem sujeitar-se a outros caminhos, torna-se um mero autômato do estabelecido. Para que se tenha por escolha própria o caminho pela vontade, é preciso errar, no sentido de deparar-se também com o desafio que incita à descoberta do próprio. É nisto que se afirma a identidade: na experimentação daquilo tudo que se mostra diferente do igual que pertence a quem experimenta, para que o que lhe pertence, revele-se; para que não lhe permaneça velado, como autômato. Sob este aspecto é exato dizer que Bastian erra. Porque, quanto mais ele se torna um dentro de Fantasia, mais ele abandona o antigo, do mundo Real. A memória se lhe desfaz. Porém, é importante questionar: o que é a memória?

Memória não é mera faculdade cerebral de mantimento de informações. O ser humano, como ser histórico, habita na memória como linguagem: é a partir dela que ele pode, no guardar-se, fundamentar o que lhe compete. Memória não é lembrança. Lembrança diz respeito a fatos que se fixaram como o que, constituído como o passado, pode ser trazido pela memória. Mas a memória é, até mesmo, o âmbito que permite que se conduza a lembrança. O humano, como ser historial, vige na memória. O que isso quer dizer? Historial não quer dizer historiográfico, submetido a um período temporal. O passado não é o que findou, o que passou. O passado é aquilo que presentifica o homem no que ele é presente. Só pode haver um presente porque o homem se firma a partir do que tornou-se em suas experiências. O passado, nesse sentido, é o que presentifica o presente e portanto, vige como presente também, no choque do presente, como o que acontece, com o porvir. É no presentificado vigente que se pode deliberar o que se dá por futuro, como presentificável. O presentificado se torna passível e real porque vive na memória. Quando Bastian descobre a cidade dos antigos imperadores, o macaco Argax lhe explica: “(...) estes que estão aqui esgotaram todas as suas recordações. Quem não tem passado também não tem futuro”. Por isso, é a memória que permite ao homem a (re)descoberta constante de sua identidade.

O ser humano, como ser historial, pode se firmar na história a partir da memória. O que isso quer dizer? O ser humano é um ser que habita o entre, que vagueia pela permanência constante, porém sempre renovadora, de ser e não ser. Em ser alguém historial, quer-se dizer que o ser humano beira um limite, sempre presente que, porém, não o limita, instiga-o a ilimitar-se. O homem como historial é este que busca o seu ser no acontecer. No limite perscrute essa parte do homem que não é e que, por não ser, torna-se o único caminho disposto. O homem, nesse sentido, movimenta-se sempre para tornar-se aquilo que não é. A memória dispõe o homem em tudo o que é para, como ser histórico, transformar-se. Somente porque é, o ser humano pode dispor-se a caminhar; da mesma forma, só pode faze-lo porque se abre para buscar o que não é.

À frente de Bastian está aberta uma miríade de possibilidades que sua vida normal não poderia propor-lhe e, com o intuito de tornar-se o que gostaria de ser, adianta-se desejando. Aos poucos, contudo, sua memória pretérita vai se tornando cada vez mais escassa, a ponto de começar a se deixar tragar por uma nova personalidade que vai, aos poucos, se afigurando. E então a pergunta: Este ainda é Bastian? Tornemos ao princípio. Quem há é um garoto que se encontra movido num caminho pela paixão, por um páthos . Seu caminho é a leitura que, de certo modo, o angaria na vivência de quem é. Há um outro páthos também: justamente, esse pathos pelo não-ser. Porém, um páthos encaminhado por um destino- moira , dentro do seu ser mnemônico, dentro da vigência de ser Bastian Balthasar Bux. Essa vigência, contudo, se perdeu. Aquele que se tornou o Salvador criador de Fantasia já não é o mesmo Bastian, porque sua vigência, sua relação com a memória do que é, desfigurou-se. Aquilo que vivera Graograman, também torna-se experiência de Bastian: para tornar-se sustentador do que desejava, foi preciso aos poucos matar-se como Bastian. No que não pode mais vigir como ser Mnemônico, Bastian torna-se simples fluxo do presente tempo-espacial, como servo das necessidades e das vaidades. E é então que o grande rompimento acontece.

Tal é a ignorância de Bastian que faz encobrir sua identidade. Atreyú, porém, seu fiel amigo, mantém sempre vigente sua memória, buscando incitá-lo a não perder-se, porém, Bastian não escuta, e se enfurece contra o amigo, terminando por feri-lo. A ferida, contudo, fere os dois: ao que desfere o golpe, e ao ferido. Só então Bastian toma consciência de que ele não podia fugir a seu destino- moira e que, todos os seus desejos, tudo o que conquistou, representou cada vez mais seu afastamento daquilo que ele era. Quanto mais buscou o que aparentemente era e queria, menos se fez clara sua identidade. O mais próximo que então se descobriu de tudo o que pudera desejar ser, era, agora, tudo o que ele não era, e que, numa clareza breve de entendimento, nem mesmo queria ser. O mais próximo que sempre estivera de tudo o que buscara, era o mais distante do que ele mesmo era. Para isso emite o rompimento brutal com as conquistas dos desejos. Porém, grande parte de sua memória está esvaída e, portanto, com a renúncia de suas conquistas recentes, vê –se flutuando num terrível abismo.

A partir daí Bastian, agora sozinho, começa a vagar pelas terras sem fim de Fantasia. Por fim, encontra-se com apenas uma lembrança: seu nome. Justamente as duas. Escavando no fosse das memórias, contudo, encontra uma imagem que o preenche de uma imensa e terna saudade, e essa lembrança o leva a fazer um último desejo: ir embora de Fantasia. A imagem, porém, tornada sua única guia para fora de Fantasia, se quebra; então, Bastian, sem a menor recordação de quem é, tendo abdicado dos seus desejos, não tem memória, e portanto, perde também qualquer percepção do futuro. Torna-se um hiato.

Bastian é salvo da última ameaça por Atreiú e Fuchur, o dragão da sorte. Quando entrega AURIN para Atreiú, são os três, então, carregados a um estranho aposento, em que não há mais que uma fonte e, atrás dela, as duas cobras, uma mordendo a cauda da outra, em frente ao que se percebe ser a saída de Fantasia. Bastian, completamente sem memória, assemelha-se agora a uma criança que acaba de nascer, descobrindo o mundo. O que isso quer dizer? É neste momento da obra que muitas questões se aprofundam. Aqui é anunciado a Atreyu pela voz da fonte que Bastian não poderia voltar a seu mundo, porque ele deixou muitas histórias para serem completadas em Fantasia. Os guardas da porta para o mundo dos homens são as duas cobras, mordendo a cauda uma da outra. A presença dos dois animais é tão forte, e tão violenta e fatal a mútua investida, que a impressão que se tem é que elas precisam segurar uma à outra, pois se se libertam, isso causaria a destruição do mundo. A imagem dessas cobras leva à relação com Ouroboros . Trata-se da imagem de uma serpente que mordia a própria cauda, formando, nesse movimento, um círculo. Representava o eterno ciclo da natureza, que se renova de sua própria destruição: a cobra se alimenta de si mesma para se generar. Representa também, com isso, o infinito. Mas, o que isso significa na História Sem fim?

É importante lembrar que Ouroboros encontra-se também na capa da história sem fim. Quer dizer que essa é uma questão que permeia toda a história. Essa informação não pode ser ignorada. Ouroboros em si significa uma história sem fim: uma história do que é eterno, e toda a história de renovação e destruição do mundo. Porque a história do mundo, e do homem com o mudo, não se extingue. Nada que haja na natureza se perde. E, mais importante, a destruição é fundamental para que aconteça a renovação. O que se vê de Bastian durante todo o decorrer da obra é a renúncia para que enfim, a partir da destruição, (re)construa sua identidade. Quanto mais se aproxima do que deseja, mais perde o que é seu, fundamentado pela memória. Alguém que busca o que não é, como Bastian, se encontra quedo sobre o abismo da ausência do que é. Há um porém. O que nos somos nunca somos completamente. Como seres historiais, estamos sempre nos construindo, a partir da presentificação do que vige como memória, no presente caminhante ao presentificavel. Sendo, caminhamos para o que não-somos. No que não somos, afirmamos e descobrimos o que somos. Só podemos nos conhecer no momento em que podemos experienciar as possibilidades de uma mesma coisa. Tudo o que se conhece por ser a única possibilidade apresentada torna-se autômato e permanece constante nos erros. O mundo para se transformar precisa sofrer um conflito harmônico entre os lados contrários. Quanto a isso já nos dizia Heráclito no fragmento 51: “Não compreendem, como concorda o que de si difere: harmonia de movimentos contrários (...)”. Os antigos sempre tiveram preocupação com a conjunção dos contrários, e aqui, na obra, essa preocupação se mostra também vigente. No modo como a personagem só encontra sua identidade quando experimenta caminhar para aquilo que ele não é.

Bastian encontra-se numa fonte, onde brinca com as águas como se fosse uma criança. Não pode voltar porque deixou muitas histórias a serem completadas em Fantasia e a condição dada pela fonte é que ele as completasse todas. É então que Atreyu se propõe a, ele mesmo, completar, em lugar de Bastian, as historias inconclusas de Fantasia. Assim se dá o ciclo da vida; nós, seres historiais, somos nados num mundo que tem uma história acontecente, e surgimos parte desse caminhar, cada um é uma parte do que se presentifica, dando-se numa busca pelo presentificavel. Não somos donos de uma história conclusa em nós. Somos dados de uma história que nos dispões naquilo que somos, e nela nos posicionamos como constituintes dessa história. E a história nunca termina porque o fim é sempre um novo começo: a saída, a fronteira de Fantasia é uma fonte, o princípio, o começo. É onde termina Fantasia e começa o mundo Real. E aquelas são as águas da vida, as águas que transformam e retornam à vida aqueles que a perderam e feneceram em amargura. Posicionando-se Atreiú como também vigente na história de Bastian, O guardião de Fantasia dá-se por satisfeito com sua resposta e permite que Bastian retorne a seu mundo. A memória retornada, Bastian tenta segurar entre suas mãos um punhado das águas da vida para levar a seu pai; porém, no que é brutalmente atirado de volta ao mundo Real, sente que as águas da vida se esvaíram de suas mãos, e percebe, que as perdeu e não poderá mais levar.

Quando deixa o sótão do colégio, Havia se passado um dia desde que Bastian começara a ler o livro, em diferença dos vários dias que viveu em Fantasia. O livro, porém, havia desaparecido no momento em que ele deixara a história. Ao chegar em casa, surpreende-se de ver o pai atônito e angustiado pelo sumiço do filho. Havia acionado até mesmo a polícia e, ao vê-lo, corre assustado e lhe dá um grande abraço, perguntando tudo o que lhe acontecera. O filho então lhe conta toda a história que viveu, desde o roubo do livro, toda a sua estranha aventura, até o presente momento, distraído e entusiasmado com a narração. Quando enfim, olha para o pai, percebe que de seus olhos jorram lágrimas e então, finalmente compreende: apesar de todos os revezes, tinha conseguido trazer as águas da vida ao pai. Ali estavam elas. As lágrimas do pai não são uma representação das águas da vida: são as próprias águas acontecendo, brotando dos olhos como brotavam da fonte de Fantasia. Pois que Fantasia e o mundo Real não se opõe nem diferem. As águas da vida são a potência máxima da vida: Eros, o amor. Não amor de uma relação, tampouco uma relação de pai e filho. Mas Eros do amor que nos proporciona a buscar aquilo que nos é próprio desde sempre e, ainda assim, nos parece sempre ausente e distante. É o Eros que se opõe ao Thanatos da morte, do extinguir, e que, conflitando com ele, proporciona ao ser humano o viver sua vida como humano no qual, a partir de Eros, encaminha-se para Thanatos. É nesse despertar de Eros que o pai se reconhece como pai e reconhece Bastian como filho, a partir da experiência de Bastian. Por isso Fantasia surge não como uma estância subposta ao real: surge num eclodir criador-mitológico, na medida em que não representa, mas funda e se faz fundada no seu permanecer originário com o mundo dos homens.

Era isto o que significava o símbolo de Ourobolos: mais comumente apresentada como uma única serpente devorando sua própria cauda, na obra aparece como duas. Isso condiz com a mensagem da obra no todo: os opostos engendram-se mutuamente no qual se alimentam e renovam a partir um do outro. Fantasia e o mundo Real são necessários um ao outro para que, nesse conflito harmônico de mundos opostos, o homem possa existir como homem, como história e como renovação de si mesmo. Fantasia não é o imaginário, é a própria Poesia, POIESIS, movimento em que as coisas se transformam e se criam. Bastian, agora que retornou, não é mais o mesmo. Toda a sua experiência POIETICA o transformou num rapaz diferente, amadurecido. O que Bastian leu foi um livro, ou foi sua própria história como indivíduo que se lhe afirmou? AUrin estivera o tempo todo em seu pescoço, e era o medalhão a saída de Fantasia. Trazer o vigor de Fantaia consigo para o mundo Real fora sempre seu objetivo, sempre próximo dele, e óbvio, porém nunca observado e preterido em função dos desejos ordinários. Tomar apenas o mundo dos homens como o Real é destruir aquilo que fundamenta o homem; afundar-se, porém, em Fantasia, é igualmente alienante e ilusório, pois aliena o homem de sua participação na história do mundo. É preciso conhecer Fantasia par a que se possa, assim através dela, conhecer, enfim, seu próprio mundo.

Bastian resolve enfim ir relatar ao velho alfarrabista que roubara e perdera o livro, e pagar pelo prejuízo causado. Mas o velho Koreander, ao invés de se aborrecer, se surpreende e diz que jamais tivera um livro como aquele, e pede que Bastian conte-lhe tudo sobre esse acontecimento curioso. Se o livro existiu ou não, não importa: o que existe é Bastian e com ele, a história sem fim de Fantasia. Com ele e com todos mais que se proporcionem experienciar o movimentar-se do mundo como poeisis. Na junção conflitante de quem era, como Real, e de quem não era, como Fantasia, é que Bastian pôde se aproximar do que, desde sempre, o era seu, sua Moira, seu Destino. Tal qual tudo no mundo se opõe em disputa criadora. Assim somos nós. A História é sem fim também porque nossa história é sem fim; como seres históricos, estamos construindo constantemente aquilo que somos, buscando encontrar nossa identidade, ou seja, aquilo que nos é próprio, reconstruindo a partir da nossa própria morte como passado, e, da morte fazendo a vida. O velho diz para Bastian que para se entrar em Fantasia não é preciso aquele livro. A história sem fim já é parte da nossa história e a estamos vivendo ininterruptamente: sem-fim. E nosso fim é também continuidade, pois de nosso resto se alimentará a terra para disso originar novamente a vida. Somos em nosso construir historial Real e Fantasia e nenhum dos dois. Não é preciso do livro, é preciso estar disposto a viver a vida, e atentar para o apelo e escuta do que somos.

O mundo social e desenvolvido em que nos encontramos nos leva a distrairmos de nosso apelo de escuta para nos afixarmos em uma consciência de ver, simplesmente. O Real parece se sobrepor àquilo que nos parece ficcional e fantástico. O que não pode ser explicado, que nos parece mítico ou incerto é descartado. Porém, é nisso que nos retemos de místico e misterioso que permite brotar toda a nossa criatividade como seres historiais e criadores. Para criar é preciso auscultar a poiesis, deixar-nos experienciar pelo sagrado. Mas isto parece já um mito, para quem necessita ater-se a comprovações técnicas. E é um mito. Mas o mito daquilo que somos e que nos faz ser. Por isso que o nada se alastre em Fantasia, porque o homem se esquece de auscultar a Poiesis, Fantasia. Como diz Heráclito no fragmento 50: Tudo é um. O homem, ao cindir-se, perde-se na ignorância.

Encerra a obra com o velho referindo a Bastian que, muito certamente, ele ainda levaria muitas pessoas para conhecer Fantasia. E ele Não estava errado. Levou-nos, todos, a passear por lá. E qual o resultado disso? Que eu não sou o mesmo após a leitura da obra, o mergulho em Fantasia. E ninguém que se dê à tarefa de buscar uma obra literária com madureza e sinceridade, será o mesmo quando terminar. Na obra de arte vige a poesis, a força motriz do criar e recriar. Mergulhar na história sem fim é conhecer e reconhecer a minha própria se dando e revelando como obra de arte, para que, desse encontro eu possa encontrar-me naquilo que sou. É meu destino como ser historial.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Bibliografia:

 

Os Pensadores originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito / introdução Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, Vozes. 1991.

 

CASTRO, Manuel Antônio de. O acontecer poético. Rio de Janeiro: Antares. 1982.

 

ENDE, Michael. A história sem fim. São Paulo: Martins Fontes. 2000

 

JARDIM, Antônio. Música: vigência do pensar poético . Rio de Janeiro: 7Letras, 2005

 

HEIDEGGER, Martin. Sobre a essência da verdade. Martin Heidegger, Os Pensadores. São Paulo, Nova Cultural. 1989.

 

HEIDEGGER, Martin. O princípio da identidade. Martin Heidegger, Os Pensadores. São Paulo, Nova Cultural. 1989.

 

LAO-TSÉ. Tao-te king . São Paulo , Círculo do livro.

 

 

.

 

 

 

 

 

[VOLTAR]