A REPRESENTAÇÃO DA DANÇA NA HISTÓRIA JUDAICO-CRISTÃ
Fabiana Pereira do Amaral
Bacharelanda em Dança pela UFRJ
O presente estudo tem por finalidade estabelecer as bases para uma pesquisa mais abrangente, acerca da visão do corpo ao longo da história cristã, e, especialmente, as implicações dessa visão na dança, e seu uso – ou proibição – durante as celebrações.
Inicialmente, cabe ressaltar o fato de Cristianismo ser uma nomenclatura dada aos seguidores de Jesus, conhecido como Cristo. O que sabemos de Jesus é basicamente o que nos informa a Bíblia, exceto pela breve menção feita a ele na obra Antiguidades Judaicas , de Flavio Josefo, embora essa referência seja considerada uma interpolação posterior por grande parte dos estudiosos. Segundo o que sabemos, Jesus foi um hebreu nascido em Belém, uma cidade da Judéia. Como hebreu, comparecia ao Templo em Jerusalém no mínimo três vezes por ano – nas festas obrigatórias para o povo hebraico, Pésach (Páscoa) Shavuot (Pentecostes) e Sucot (Tabernáculos) –, e conviveu com todas as escolas de pensamento judaico de seus dias: fariseus, saduceus, essênios, sicários, zelotes, etc, mas desenvolveu sua própria pregação, proclamando-se filho de Deus e Salvador da humanidade. Tendo desafiado as autoridades eclesiásticas hebraicas, foi levado por elas a julgamento diante de Pôncio Pilatos, procurador romano da província da Judéia. Condenado à morte por aclamação pública, foi crucificado numa sexta-feira, ressuscitando domingo, segundo a tradição cristã.
Onde encontramos elementos para estudar a dança nessa história, tão tradicionalmente contada e recontada pela sociedade ocidental? Ora, dentro da realidade judaica da época, podemos deduzir que Jesus freqüentava inúmeras festas, e a dança estava presente na grande maioria delas. Judeus dançam em seu dia santo semanal (shabat – sábado) e dançam em casamentos, para citarmos apenas dois exemplos. Ora, há pelo menos um registro de que Jesus ia a casamentos; o encontrado no Evangelho de João, capítulo 2. A dança seria então algo tão errado assim, estando o próprio Messias presente num lugar onde ela era realizada?
A história judaica é conhecida através da Torah (Livro da Lei, equivalente aos cinco primeiros livros da Bíblia cristã, o Pentateuco) e de outros livros como o Talmud, a enciclopédia judaica que reúne a doutrina e jurisprudência da lei mosaica . Esses e outros livros deram origem ao hoje conhecido Velho Testamento, também chamado de Primeiro Testamento, a reunião dos livros que narram a história judaica antes do nascimento de Jesus. Nele, encontramos diversas referências à dança, como a do rei Davi, o mais famoso rei de Israel:
Aconteceu que, entrando a Arca do Senhor na Cidade de Davi, a filha de Saul, Mical, olhava pela janela e viu o rei Davi saltando e dançando diante do Senhor, e, no seu íntimo, ela o desprezou. (...) Mas Davi respondeu a Mical: “É diante do Senhor que me preferiu a teu pai e a toda a sua casa para me instituir chefe do povo do Senhor, sobre Israel, eu dançarei diante do Senhor” (...) . (II Samuel 6:12 e 21)
Nesta passagem, Davi comemorava o retorno da Arca da Aliança, o mais forte símbolo da religião hebraica, a Jerusalém, e o fazia dançando nas ruas, no meio do povo, ato pelo qual foi criticado por sua esposa. Pela resposta dada, podemos entender que a dança seria uma forma legítima de culto a Deus, segundo o pensamento judaico. Há muitas referências à dança no Velho Testamento, como em Salmos (capítulo 30, versículo 12; capítulo 149, versículo 3; capítulo 150, versículo 4), Jeremias (capítulo 31, versículo 4) e Êxodo (capítulo 15, versículo 20), para mencionarmos apenas alguns.
A visão de corpo para um hebreu também era peculiar. Se tomarmos os textos religiosos como exemplo do pensamento vigente na época, podemos perceber um profundo respeito para com ele, tanto a ponto de considerar que “ Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher, ele os criou ” (Gênesis 1:27). O livro de Levítico, constante na Torah hebraica e no Pentateuco cristão, contém essencialmente leis de convívio, alimentação, comportamento, dentre outras. O que é interessante de se observar é a rigidez das leis alimentares, aparentemente com uma grande preocupação com a higiene precária daqueles tempos. Não havia sacrifícios humanos, ou penitências corporais rígidas, ao contrário de grande parte das culturas religiosas dos povos da época. O máximo que se encontra nesse aspecto, são jejuns esporádicos, geralmente não muito longos (com exceção do atribuído a Jesus, que é contado como sendo de quarenta dias). No primeiro capítulo do livro do profeta Daniel, encontramos ainda a preocupação dele em não comer da comida oferecida pelo rei Nabucodonosor da Babilônia, já que a mesma era oferecida aos deuses babilônicos e não podia ser consumida pelos hebreus. Logo, o corpo estava intimamente ligado à religião e à crença hebraica.
Isso não se modificou após a pregação de Jesus, já que um dos maiores expoentes do Cristianismo, o apóstolo Paulo, escreve à igreja da cidade de Corinto:
Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós e que recebestes de Deus? (...) e que, portanto, não pertenceis a vós mesmos? Alguém pagou alto preço pelo vosso resgate; glorificai, portanto a Deus em vosso corpo. (I Coríntios 6:19-20)
Já vimos que para os judeus o corpo era extremamente importante, e estava intimamente ligado à religião. A dança era uma manifestação de adoração a Deus e comumente utilizada após vitórias militares e durante celebrações ou festividades. Partindo-se do princípio que Jesus era hebreu e sua pregação estava fortemente ligada aos princípios religiosos hebraicos, cabe um questionamento: afinal, de onde veio a idéia de corpo como instrumento do pecado, prisão para a alma, algo sujo de que devemos nos envergonhar, deixando-o de lado para atentar apenas para o espírito? Qual o embasamento para práticas como o auto-flagelamento? A dança sempre esteve à parte, excluída das celebrações cristãs, sendo uma novidade, uma descoberta recente?
Para responder a essas perguntas, precisamos continuar a seqüência histórica e seus acontecimentos após a morte de Jesus. Certamente, a difusão do Cristianismo por várias partes do Império Romano não se deu de forma pura e característica. Houve várias influências de culturas externas, seja no estabelecimento do Cristianismo como uma religião única, seja nos fundamentos da criação de uma instituição religiosa.
O Cristianismo dos primeiros séculos exigia uma crença muito forte e uma total abdicação material, mais pela situação político-social do que propriamente por instâncias doutrinárias. A nova fé começou a difundir-se em condições não muito favoráveis. Os judeus olhavam com desconfiança para os cristãos, julgavam-nos como apóstatas, e a elite sacerdotal via-os como perigo em potencial graças ao carisma de seus pregadores e a eloqüência de seu discurso, embora a maioria deles pessoas simples e humildes. Após a crucificação, os apóstolos e os principais seguidores dos ensinamentos de Jesus juntaram-se numa comunidade religiosa em Jerusalém, composta essencialmente de hebreus. A partir de Jerusalém, os apóstolos partiram para pregar a nova mensagem, anunciando a nova religião para hebreus e para os que eram rejeitados por estes. Em Antioquia os discípulos abordam os pagãos e ganham pela primeira vez o nome de “cristãos”. Paulo de Tarso, um hebreu fariseu, membro do Sinédrio , era um dos mais ferrenhos perseguidores da nova religião, mas foi convertido e transformou-se no maior missionário da história cristã, fazendo três grandes viagens entre 44 d.C. e 58 d.C., e levando o Cristianismo para diversos pontos do mundo conhecido na época, inclusive Roma. Devido a divergências entre cristãos oriundos do judaísmo e aqueles que vinham de outras religiões, a Assembléia de Jerusalém decide, em 48 d.C., que os gentios convertidos não precisariam submeter-se à circuncisão, mas para sentar-se à mesa com os hebreus, deveriam abster-se de comer carne com sangue, ou sacrificada a ídolos. Começa, então, o rompimento oficial com o judaísmo.
A religião cristã começa a ser conhecida no mundo romano, mas os fortes preceitos judaicos (circuncisão, regras alimentares) incomodam, assim como sua identificação com um grupo étnico (e não apenas religioso), o que acaba criando barreiras para a conversão dos cidadãos romanos. Paulo simplifica os costumes, tornando o Cristianismo de fácil aceitação para os demais povos.
Alguns autores defendem que essas mudanças foram adotadas pelos cristãos para uma melhor aceitação de seus preceitos por outros povos; outros, porém, entendem que a ruptura com a obrigatoriedade dos costumes judaicos deu-se mais como uma conseqüência da expansão entre não-judeus, do que propriamente como uma causa.
Independente dessas questões religiosas, o clima político em Jerusalém era turbulento, e em junho de 66 d.C. explode a revolta judaica contra o domínio romano, que culmina com a destruição de Jerusalém no ano 70 d.C. pelo imperador romano Tito, e o incêndio do Templo, que ocasiona a segunda diáspora judaica. Ainda em setembro de 66, a comunidade cristã deixa Jerusalém, exilando-se em Pela, na Transjordânia, seguindo orientações de Jesus, que predissera que quando a cidade fosse cercada por exércitos, seu fim estaria próximo. Com isso aumenta a ruptura entre cristãos e judeus, ampliando mais ainda suas diferenças. Paralelamente, em Roma, o Cristianismo gerava sentimentos controversos. Embora perseguidos, supliciados e mortos pelos imperadores romanos, especialmente Nero, essas perseguições eram irregulares, e não impediam a crescente simpatia da nova religião entre os cidadãos romanos.
A partir do século II, as perseguições aos cristãos tornam-se mais organizadas. Caso fossem cidadãos, seriam decapitados; se não, eram lançados às feras ou enviados para trabalhar nas minas. O segundo século também foi importante para o fortalecimento das raízes cristãs, tanto no Ocidente quanto no Oriente. Surgem as primeiras seitas, como a de Tatiano, um cristão de origem síria convertido em Roma, que condenava o casamento e celebrava a eucaristia com água ao invés de vinho, ou a de Marcião, que rejeitava o Antigo Testamento. O latim começa a ser considerado língua sagrada para as comunidades Ocidentais, e o grego, para as Orientais.
Os primeiros séculos do Cristianismo foram épocas de profundas modificações doutrinárias. Deixou de ser uma religião de simples pescadores judeus, e passou a ser questão de litígio entre os grandes de Roma. Havia diversos ramos de pensamentos cada um apontando em uma direção, e a partir do momento que o imperador Constantino assina o Édito de Tolerância (ou Édito de Milão), reconhecendo o Cristianismo como religião do Império Romano e concedendo liberdade de culto aos cristãos, os primeiros templos começam a ser erigidos e a preocupação com a personalidade da nova religião aflora.
A professora Isabel Cristina Coimbra Vieira Diniz, Mestre em Educação Física pela UFMG e professora da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da mesma Universidade, diz, numa palestra realizada no Palácio Quitandinha (Petrópolis – RJ) em julho de 2004, que nos primeiros templos construídos pelo Cristianismo havia um local próximo ao altar chamado ballatoria , e que, como o próprio nome indica, era usado para render culto por meio da dança. Mas, com o tempo, essa forma de culto foi sendo progressivamente afastada, passando por várias partes do templo até acabar no pátio. As procissões, hoje, seriam um resquício da dança litúrgica.
Temos então, a essa altura, uma religião buscando se firmar através da fé e da palavra revelada. Isso é muito pouco para fundamentar uma instituição, e logo os cristãos sentiram necessidade de um embasamento racional que lhes desse suporte e justificasse sua fé. Já então bastante distantes do judaísmo, o Cristianismo voltou seus olhos para outros pensadores.
Agostinho de Hipona parece ter aceito esse desafio, buscando restaurar a razão utilizando-se da fé como meio para isso. “Compreender para crer, crer para compreender” (AGOSTINHO, 1999) .
É importante observar alguns aspectos da obra agostiniana. O mais importante deles é que grande parte da sua obra tem inspiração neoplatônica, onde a Teoria das Idéias é aplicada ao Cristianismo, de forma que o “mundo das idéias” pregado por Platão, em Agostinho, é associado à mente de Cristo. Ora, Platão nos diz, acerca do corpo:
E como referência à aquisição do conhecimento? O corpo constitui ou não constitui obstáculo, quando chamado para participar da pesquisa? O que digo é o seguinte: a vista e o ouvido asseguram aos homens alguma verdade? Ou será certo o que os poetas não se cansam de afirmar, que nada vemos nem ouvimos com exatidão? Ora, se esses dois sentidos corpóreos não são nem exatos nem de confiança, que diremos dos demais, em tudo inferiores aos primeiros? [...] Então, perguntou, quando é que a alma atinge a verdade? É fora de dúvida que, desde o momento em que tenta investigar algo na companhia do corpo, vê-se lograda por ele. [...] E não é no pensamento – se tiver de ser de algum modo – que algo da realidade se lhe patenteia? [...] Ora, a alma pensa melhor quando não tem nada disso a perturbá-la, nem a vista nem o ouvido, nem dor nem prazer de espécie alguma, e concentrada ao máximo em si mesma, dispensa a companhia do corpo, evitando tanto quanto possível qualquer comércio com ele, e esforça-se por apreender a verdade (PLATÃO, 2007).
Essa verdade, esse conhecimento que só pode ser alcançado pela alma, porque, segundo Platão, residem no mundo das idéias – onde somente a alma tem acesso –, em Agostinho toma a forma de espírito; a verdade e o conhecimento residem em Deus, e somente a alma (ou espírito) pode alcançá-lo. O corpo é um obstáculo a isso, e através da total atenção dada ao espírito em contrapartida à desatenção ao corpo, é que o verdadeiro cristão alcança a plenitude. A morte é preferível à vida (assim como para Platão), já que aquela nos liberta de nosso corpo mortal, dando liberdade à alma de voltar para junto de Deus (ou ao mundo das idéias), onde obterá todo conhecimento e se deparará com a Verdade.
Prolongada fome, dizem, consumiu grande número de cristãos. Não é outra provação que a piedosa paciência dos verdadeiros fiéis transforma em vantagem sua? Para aqueles que mata, a fome representa, como a doença, completa libertação dos males desta vida; para os que poupa, lição de abstinência mais rigorosa e jejuns mais prolongados. Quantos outros cristãos, porém, trucidados, engolidos pela inexorável morte que se multiplica de maneira espantosa! Sorte cruel, mas comum a todos os destinados a esta vida. [...] Como as peripécias diárias da vida suspendem, por assim dizer, sobre cada cabeça mortal a ameaça de número infinito de mortes, não é melhor, pergunto, enquanto perdura a incerteza da que há de vir, sofrer apenas uma e morrer do que continuar vivo e recear todas? Não ignoro que nossa covardia prefere viver longo tempo no temor de tantas mortes a morrer uma vez para não continuar receando nenhuma. Uma coisa, entretanto, é o que causa horror aos sentidos e à imbecilidade da carne, e outra, a convicção esclarecida e profunda do entendimento. A morte não representa nenhum mal, se sucede a vida santa; não pode ser mal, senão pelo acontecimento que a segue. Que importa, por conseguinte, a seres necessariamente votados à morte o acidente de que morrem? (AGOSTINHO, 1999)
Há aqui, até determinado ponto, certa associação com a doutrina cristã expressa na Bíblia, já que Paulo declara que “pois para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro” (Filipenses, 1:21). Este texto, extraído do contexto do capítulo, de fato nos dá a impressão de que o espírito tem sobreposição tal ao corpo, a ponto deste último não ter mais importância, antes atrapalhe o reencontro do espírito com Deus. Mas não é isso que o capítulo nos passa, quando lido dentro de seu contexto.
Atualmente a carta enviada à igreja de Filipos, antiga cidade da Macedônia, é quase universalmente aceita pelos pesquisadores como oriunda de Paulo, que a teria escrito na prisão, embora a localização dessa prisão não tenha sido fornecida. A maior parte dos indícios parece apontar Roma como local mais provável. Apesar dessas circunstâncias adversas, o tom da carta é de alegria. Paulo parece satisfeito por seu objetivo estar sendo cumprido, e isso era mais importante que seu bem estar físico: “E a maioria dos irmãos, encorajados no Senhor, pelas minhas prisões, proclamam a Palavra com mais ousadia e sem temor” (Filipenses, 1:14).
Há uma considerável diferença entre a dicotomia pregada por Platão e adotada pela Igreja ao longo da História, e a postura dos cristãos dos primeiros séculos. Esta nos remete à força da convicção, de pessoas que morrem pelo que acreditam – postura essa adotada à exemplo da convicção dos judeus na defesa de sua crença, como na tomada de Massada, a última fortaleza a cair frente à destruição impingida pelos romanos ao povo hebreu, em retaliação à revolta iniciada em 66 d.C.
Não há registro bíblico de nenhum tipo de auto-flagelação, ou qualquer outra prática que possa ser tomada como tal. Essa é uma prática estranha aos judeus, e certamente o seria para os primeiros cristãos. Tendo a noção de corpo impuro se instaurado dentro da Igreja através de pensadores e teólogos neoplatônicos, os líderes da então religião oficial do Império Romano começaram a perceber que essa era uma boa estratégia para controlar o que acontecia dentro e fora da Igreja. Se levarmos em consideração o intenso contato com novas culturas e novas religiões, conseqüência clara da expansão do Império, logo poderemos perceber a condução dos lideres cristãos na direção de um maior dicotomismo, com uma ênfase exagerada sobre o corpo e sua instrumentalidade e natural tendência para o pecado.
Com essa noção de corpo como um fardo que devemos carregar ao longo da vida, obviamente a dança não era uma expressão vista com bons olhos – especialmente por quase todas as culturas conquistadas terem-na em sua vida social ou religiosa. Foram-se feitas as adaptações possíveis, para que o Cristianismo tivesse uma maior aceitação junto a essas culturas, afastando-se às vezes – e muito – do que dizia a tradição bíblica. Mas a dança não foi algo fácil de se adaptar.
Assim, os testemunhos mais interessantes sobre a dança religiosa na Idade Média são, antes de mais nada, o interditos que não cessaram de atingi-la. O mais antigo é o do concílio de Vannes, em 465. Entre os anátemas que se sucederam, podemos destacar os do concílio de Toledo em 587, o decretal do papa Zacarias em 774 contra os “movimentos indecentes da dança ou carola”, a homilia do papa Leão V que condenava, em 847, “os cantos e carolas das mulheres na igreja”. No final do século XII, as constituições sinodais do bispo de Paris, Odon ( Constitution , 36), prescrevem ao clérigo que proíba os choreae , “principalmente em três lugares: nas igrejas, nos cemitérios e nas procissões”. Serão retomadas pelas instruções de Gerson (De visitatione prelatorum ): “se os leigos e mulheres entrarem no coro e trouxerem carolas aos lugares sagrados”. Em 1209, o concílio de Avignon decreta (Atos, V): “Durante a vigília dos santos, não deve haver nas igrejas espetáculos de dança ou de carolas”. Em 1444, a Sorbonne, por sua vez, declara: “Não é permitido dançar carolas nas igrejas durante a celebração do serviço divino”. Em 1562, em sua reorganização da Igreja, o concílio de Trento sente-se obrigado a adotar estas regras.
A persistência das condenações prova a persistência dos costumes. Por outro lado, parece que as formulações do concílio de Avignon e da Sorbonne indicam que o hábito de dançar é permitido fora dos ofícios e de algumas datas.
Mas conhecemos manifestações de dança à margem destas proibições: a Chronique de saint Martial , de Limoges, indica a organização de uma chorea em 1205, depois em 1215, quando da partida dos Cruzados (“Dançou-se a carola e a alegria foi grande”), e, enfim, em 1278. A chorea é a carola, a roda. Temos ainda a carola em Sens, na noite de Páscoa, ao redor do poço do claustro: sob a direção do arcebispo, os dignatários do cabido dançavam, intercalando-se com as crianças do coro. O Padre Claude-François Ménétrier ( Des ballets anciens et modernes selon les règles du théâtre , Paris, René Guignard, 1657) observa que este costume era generalizado e que prosseguiu: “Ainda vi em algumas igrejas, no dia da Páscoa, os cônegos tomarem as crianças do coro pela mão e cantarem hinos de regozijo, dançando pela igreja”.
O que dançavam? Vimos que dançavam a chorea , que era a dança de roda fechada ou aberta, muito praticada, sob o nome de carola, na Idade Média até o século XIII inclusive, e o tripudium , uma dança em três tempos, na qual os executantes não se tocavam; na carola davam-se as mãos ou se seguravam pelo antebraço. (BOURCIER, 2001)
A dança, histórica e progressivamente, foi perdendo seu lugar na visão de santidade da Igreja. Parecia óbvio que, sendo o corpo algo tão impuro e propenso a toda sorte de malefícios, qualquer manifestação advinda dele seria uma influência do mal querendo corromper um espírito bom. Considerando-se que a educação durante toda a Idade Média estava restrita à alta nobreza e ao clero, parecia claro o caminho a trilhar. Os textos sagrados do Cristianismo ficavam em poder do clero, e este, e somente ele, tinha o poder de repassar aos fiéis o que era certo ou errado, de acordo com o que estava escrito. Uma atitude estranha, se considerarmos a que era assumida pelos primeiros cristãos.
Os irmãos fizeram logo Paulo e Silas partir de noite para Beréia. Eles, tendo ali chegado, dirigiram-se à sinagoga dos judeus. Ora, estes eram mais nobres que os de Tessalônica. Pois acolheram a Palavra com toda a prontidão, perscrutando cada dia as Escrituras para ver se as coisas eram mesmo assim. (Atos, 17:10,11)
Desta forma, a dança foi sendo colocada cada vez mais afastada do conceito de culto da Igreja Cristã. Os dois grandes Cismas não melhoraram isso. A Igreja Ortodoxa até os dias atuais mantém-se firme na posição contrária a qualquer manifestação física de adoração. Para eles, apenas cânticos e orações são formas legítimas de culto.
Inicialmente, o Protestantismo colocou-se também rigorosamente contra toda sorte de manifestação física como forma de adoração, herança que trouxe consigo do Catolicismo. Mas aproximadamente desde a década de 60 nota-se um crescente movimento de grupos organizados de dança que atuam durante as celebrações. Devido à infinidade de denominações diferentes, ainda há muitas igrejas contra essa forma de manifestação.
Entre os Católicos, de certa forma incentivados pelo movimento Carismático, a dança começa a se inserir em algumas festividades específicas, sem, contudo, fazer parte da celebração principal.
Este estudo propõe-se a dar um panorama geral deste tema amplo. Ainda há muito a se pesquisar, tanto na influência dos Patriarcas da Igreja, a situação sócio-cultural na Idade Média e a união Estado-Igreja, sua influência sobre o imaginário popular e as modificações que essas influências trouxeram para a forma de religiosidade cristã no Ocidente. Podemos concluir, contudo, que tomando-se por base a Bíblia, não há qualquer indício de que a dança é uma forma ilegítima de louvor, e nem que o corpo é um elemento menor da existência do ser humano. Até porque, a dicotomia pregada por Platão não encontra respaldos práticos. O ser humano não é apenas mente ou apenas corpo. O ser humano é uma totalidade no momento presente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BÍBLIA de Jerusalém . Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Editora Paulus, 2003.
BÍBLIA Vida Nova , 7. Editora São Paulo, Vida Nova, 1985.
PLATÃO. Fédon. [S.l.]. Disponível em: < http://www.esnips.com/nsdoc/18356a63-4973-4b08-aaef-1e07b6403d93/?action=forceDL >. Acesso em: 13/05/2007.
BOURCIER, Paul. História da Dança no Ocidente . [s.n.]: Livraria Martins Fontes Editora Ltda, 2001.
AGOSTINHO. A Cidade de Deus: (contra os pagãos), Parte I . Tradução de Oscar Paes Leme. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
LOUVOR Profético . Petrópolis, Rio de Janeiro: Isabel Coimbra, 2004. 1 CD de áudio (50 min).
Sinédrio era o "Grande Conselho" dos notáveis de Israel, estabelecido depois do exílio para o governo da comunidade judia. Era integrado por 71 membros anciãos, sacerdotes e escribas - e presidido pelo sumo sacerdote. Era a autoridade suprema dos problemas religiosos , assim como em alguns assuntos de ordem civil. Roma limitou seus poderes. Para a pena de morte necessitava de confirmação do representante de Roma.
Não-israelita, palavra usada para designar os povos Europeus que gradualmente se converteram à nova religião