BREVE ANÁLISE DA CORPOREIDADE URBANA

 

Eloa Batista Teixeira

Bacharelanda em dança pela UFRJ

 

Todo corpo tem sua corporeidade, partindo-se desse princípio, chamou-me a atenção a movimentação de indivíduos que encontrei pelas esquinas, ruas, trens, metrôs, paradas de ônibus e praças da cidade do Rio de Janeiro.

No primeiro período na disciplina de Introdução ao Estudo da Corporeidade ministrada pela Professora Mestra Maria Ignez Calfa, passei por varias vivencias corporais e no trabalho de conclusão da disciplina a busca por um mito que atingisse a ancestralidade da minha corporeidade me colocou num profundo diálogo comigo acerca desta ancestralidade, durante o período de realização desse trabalho me deparei nas escadarias da estação do metrô Cinelândia, na saída do Theatro Municipal, com uma senhora, várias pessoas passavam por ali e nem sempre observavam nela, mas ela prendeu minha atenção, por quê? Porque ela tinha movimento, um movimento liberado, constante, preciso, era uma simples flexão de tronco, estava sentada, mas não cessava e não alterava o pulso daquele movimento, como se ela tivesse ouvindo uma melodia, talvez o ronco dos motores, as freadas dos ônibus , as buzinas e os passos das pessoas compusessem uma música para ela. Essa cena me despertou o olhar pra esses seres que pra muitos parecem invisíveis. Depois de encontrar essa senhora que eu já vi muitas outras vezes, pois ela quase sempre está lá naquela escadaria na mesma posição, fazendo aquele mesmo movimento , sua célula coreográfica sem variação de dinâmica, comecei a andar pelas ruas com um “radar” ligado, e passei a encontrar vários personagens interessantes, homens e mulheres mais novos e mais velhos, crianças nunca foram observadas talvez porque não apresentaram a inteireza de movimento que tanto me atrai, pois o movimento pelo movimento os transeuntes na rua também têm , o que difere esses moradores de rua é a intenção do movimento e a totalidade desse movimento, a verdade em que ele é executado, as frases gestuais são sinceras e a organização desse corpo por si só já revela muito, nas fotos pode-se observar a organização desses corpos e o que essas imagens revelam.

Comecei a fazer extensos apontamentos sobre cada personagem que eu encontrava e que me fascinava, as descrições são baseadas na minha memória sobre aquela imagem, na hora em que a cena acontece me atenho na observação e só depois escrevo, fica registrado no papel as os detalhes da imagem que mais me marcaram, embora sejam feitas de memória são longas descrições minuciosas desde a roupa até o principal que é o movimento, começo a detalhar essa forma de mover segundo os parâmetros da Professora Emérita Helenita Sá Earp, e sua teoria Fundamentos da Dança, que é a linguagem escrita dos movimentos, uma forma de eternizar o movimento sem ter câmeras filmadoras. Comecei a levar essas imagens pros conceitos aprendidos no bacharelado em dança a fim de perceber diferenças nas qualidades do movimento, cada um em sua corporeidade traz muito forte um signo e uma afinidade com um parâmetro do movimento, uns possuem mais afinidade com o tempo, o ritmo, o espaço, a forma, outros variam dinâmicas, e ainda há os que estão potencializados, esses parecem mover-se com mais veracidade, ainda que não haja o mover em sua acepção mais difundida, o estar “imóvel” requer tanto esforço quanto estar explodindo em movimentos em diversas partes do corpo. O movimento potencial é o movimento prestes a acontecer é a dança estagnada, marmorizada, Gilka Machado em seu livro A Mulher Nua no poema Impressões do Gesto que fez para a bailarina Isadora Duncan, traz uma das descrições poéticas mais belas sobre o assunto:

 

Danças... E toda te espreguiças,

E vais ficando parada...

Não se movem teus membros, mas, em cada

Linha, tens atitudes movediças;

Teu corpo é a dança marmorizada;

Quando o quedas assim, por um momento,

Observa nele o meu olhar atento

Das curvas o bailado

 

Entender o movimento potencial no caso das análises dos corpos de moradores de rua é primordial , devido à potencialidade estar intrínseca ao ato de pedir esmolas, não posso precisar qual a porcentagem de mendigos que se utilizam da potencialidade do movimento para esmolar, mas é muito peculiar estar potencializado totalmente ou quase totalmente, liberando apenas uma parte do corpo que faz movimentos repetitivos ou que ainda exprimem o lado rítmico desses indivíduos, sua musicalidade através do tinir de moedas, em um chacoalhar de caneca criando breves células de sons que são constantes e se repetem.

A repetição é algo muito comum de ser encontrado nessas células gestuais, tanto nos moradores de rua quanto nos dependentes químicos, esse segundo grupo ainda carece de uma ampla observação, mas em linhas gerais estes também apresentam a forte característica da repetição de movimento.

O movimento provocado no não consciente em pessoas com alterações neurológicas advindas de psicotrópicos também pode apresentar uma inteireza, a grande diferença é que neste grupo os movimentos aparecem em maioria por impulso, são rápidos e bastante abstratos se comparados as frases gestuais dos moradores de rua , como o efeito narcótico de algumas drogas causa excitação e aceleração esses movimentos são geralmente mais frenéticos e vem em ondas que cessam e explodem em movimento liberado em oposição ao outro grupo que tem um leque de variadas opções de características de movimentações.

Alguns moradores de rua podem apresentar distúrbios neurológicos oriundos de doenças patológicas, pois apresentam sintomas de autismo e alguns de esquizofrenia, muitos têm um “amigo imaginário” fruto de suas vontades subconscientes, não há laudo sobre essas doenças, são apenas hipóteses baseadas nas observações realizadas e os sintomas apresentados.

Neste estudo por ora o foco é a corporeidade do morador de rua, embora futuramente queira estender a pesquisa e traçar paralelos entre os estados de presença do movimento de moradores de rua, usuários de substâncias químicas que alteram o estado de consciência e pessoas em surto de coréia, uma doença que acontece em decorrência da febre reumática e que tem afinidade com movimentos espasmódicos e percutidos que não são um parâmetro dentro da teoria de Helenita Sá Earp, mas são modos de execução do movimento.

Os dois outros grupos que pretendo analisar possuem características de movimento mais herméticas , se enquadrando num padrão mais específico, enquanto os moradores de rua abrangem muitas questões a serem analisadas que refletem suas múltiplas possibilidades.

Este estar constantemente na rua gera outros hábitos, outro comportamento, segundo Gaston Bachelard em A Poética do Espaço a casa exerce um papel fundamental na formação do indivíduo:

 

Há que dizer, então, como habitamos nosso espaço vital de acordo com todas as dialéticas da vida, como nos enraizamos, no dia a dia, em um "canto do mundo".

Porque a casa é nosso canto do mundo. E se diz com freqüência nosso primeiro universo. É realmente um cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo.

 

Segundo Bachelard a casa é esse nosso canto no mundo, e qual a relação que se tem com o mundo quando não possuímos esse canto? Ainda em A Poética do espaço encontramos sobre a casa o seguinte fragmento: “Sem ela o homem seria um ser disperso. O sustenta através das tormentas do céu e das tormentas da vida. É corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser "lançado ao mundo"...” a ótica de mundo ganha outra perspectiva quando esse “canto do mundo” tem que ser criado com tijolos invisíveis, o corpo é esse abrigo, muitas vezes o corpo está diluído dessa casa, e então ele constrói o próprio abrigo do corpo, essa metáfora da casa leva a reflexão sobre esses seres dispersos, estes que são desprovidos dessa casa em seu sentido denotativo, que criam seus auto mecanismos para suprir essa lacuna da ausência do lar da forma que é concebido em nossa cultura e sociedade e isso reflete diretamente na forma em que ele interage, age e reage na vida e no mundo.

Segue abaixo um fragmento do que denomino Diário da Observação do Movimento. A primeira personagem abaixo citada deixa clara a questão de construir seu próprio abrigo, este ser humano caramujo.

 

Personagem A

Rio de Janeiro, 2005.

Local: Escadaria da estação de trem de Madureira.

Vi uma pessoa embolada com vergonha de si mesma num canto da escada que dá acesso a estação de trem de Madureira, ela não está no topo nem na parte mais baixa, ela está no meio no sentido vertical.

Essa pessoa é do sexo feminino, mas já perdeu sua feminilidade há muito tempo. Sua coluna tem forma da letra “C” parece uma concha, ela é seu próprio caramujo, seu movimento é potencial, sua forma é recolhida, condensada, seus braços não consigo visualizar onde começa e termina, ela é uma coisa só pequena embolada num canto, as três partes que se destacam são: pés, mãos e cabeça.

Sob seus pés uma finíssima borracha carcomida pelo tempo, memórias de um chinelo, sua mão está estendida com dedos relaxados pedindo qualquer vintém. Sua cabeça tem cabelos bagunçados, tem expressão que causa piedade e seu olho era a única parte não potencializada seu olhar sempre de soslaio que não encara ninguém, por medo, desconfiança ou vergonha.

 

Personagem B

Rio de Janeiro, 2005.

Local: Escadaria da estação de trem do Méier.

Um homem aparentando ter uns 50 anos, barba branca, pele queimada pelo sol, roupa clara, cor crua, pés sujos no chão, movimento: potencial, em uma forma expandida, uma postura surpreendentemente ereta como nunca observei antes em corpos que estavam submetidos a mesma condição, seus joelhos estavam distantes e auxiliavam na sustentação de seus braços repousados com esse contato que visualmente era tão leve, no terceiro segmento do seu braço encontravam-se mãos uma bem distante da outra o que expandia ainda mais essa forma nesse espaço, a palma da mão estava voltada para ima, para o céu, seus dedos relaxados, suaves.

Na sua face apenas marcas da idade, rugas de uma história de vida não muito fácil, mas uma expressão serena, sublime, os seus olhos miravam o horizonte ele via o mundo de cima, bem do alto da escada.

 

Personagem C

Rio de janeiro, 2005.

Local: Vagão de trem.

Lá de longe vejo um corpo se deslocar, ouço um som bem baixo de moedas. Esse corpo caminha e vai se aproximando cruzando vagões. Ao chegar ao vagão que estou sentada posso visualizar melhor, é uma senhora bastante idosa, cabelos brancos, pele clara, roupa colorida que não lembro mais tão detalhadamente , calça chinelos de borracha, tem na mão direta um pedaço de pau que lhe serve de bengala e na mão esquerda um pote de plástico branco com moedas, agora vejo a procedência do som, não é aleatório há uma forma de chacoalhar, curiosamente ela não se segura em nada , o trem está em movimento, seus passos são firmes, um pé a frente do outro mais ou menos na largura de seu quadril, caminhando de quarta posição para quarta posição com uma ligeira rotação externa. Ela tem o domínio daquele espaço, ao olhar seus olhos noto que a coloração deles é diferente que seu olhar é vitrificado, por alguns instantes ínsito em não acreditar, mas a explicação mais obvia é a ausência de visão, reparo na bengala ela sempre toca aonde o pé irá, ela indica onde seus pés passarão.

Sim, ela é cega e mesmo sem ver ela sabe que aquele é o último vagão fez uma curva a sua direita, voltou alguns passos e se sentou acomodou-se ao sentir a ausência de pessoas ao seu lado, as moedas e a bengala cessaram, só resta o som do trem nos trilhos.

 

Saindo da questão da não casa e retornando à imagem que o movimento traz chegamos a grande discussão que isso vem suscitando que é o fazer consciente desse movimento, há uma consciência corporal ou uma inconsciência corporal? No universo da dança a consciência corporal tem sido amplamente discutida e o mau uso desse conceito tem gerado preconceito e rejeição, há os que falam em macro e micro percepções, mas qualquer uma dessas denominações entra em conflito e contradição quando pensamos a cena urbana como um palco e esses personagens corpos em cena no mais pleno estado cênico, sendo que eles possuem afetações neurológicas e ou movimentam pela necessidade inerente ao ser humano de mover-se desde a pré-história há relatos através das pinturas rupestres de momentos em que essa sociedade primitiva se organizava para dançar, a dança é o segmento da arte mais praticado, de forma espontânea, pelo ser humano. Segundo Helenita Sá Earp, a dança não é privilégio de nenhum corpo, etnia ou classe social, portanto qualquer corpo pode dançar, por isso eu vejo dança nesses movimentos atraída pela presença e inteireza desse movimento que não precisa necessariamente estar ligada ao fazer consciente para ser presente.

Pensando em dança enquanto movimento transformado em arte o que falta para que essa cena urbana se torne arte e consequentemente dança? Falta o olhar de quem é expectador ou um palco, o discurso da dança contemporânea é de diversidade corporal de movimentações não codificadas, se como observadora absorver as informações visuais e colocar esses movimentos no meu corpo e subir em um palco ou qualquer lugar que tenha o reconhecimento da arte estarei legitimando esse movimento que a partir daí vira arte, dança, mas para transformar em arte faltará além dos outros aspectos supracitados a intenção de quem o faz.

Para haver verdade é importante a vivencia, vivenciar uma experiência traz para o movimento uma maior realidade, mas como futura interprete e pesquisadora em dança é preciso criar mecanismo para colocar no corpo esses movimentos com verdade e presença mesmo sem ter passado pela experiência, algumas coisas nesse processo podem se perder e é normal que se percam, mas pretendo utilizar a escuta como meio de criação artística em dança, poetizando esses movimentos sem torná-los apenas mímesis corporal do reflexo da nossa sociedade capitalista e consumista, tornando mais humanos esses corpos, tirando-os do lugar de bichos, de ratos na sarjeta.

Tirando essas imagens a margem desse lugar marginalizado e coloca-los e um outro foco com outros matizes.

Essas observações ainda vão muito além, geraram muitas questões, a maior parte delas ainda está em discussão, essas análises fazem parte de um trabalho em andamento que culminará no trabalho de conclusão do curso de bacharelado em dança da UFRJ, pretendo analisar a corporeidade desses três grupos anteriormente citados, fazendo relações entre eles a partir da ótica de estética de movimento.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

EARP, Helenita Sá & DIAS, Gloria. Estudo do movimento I, II e III . Rio de Janeiro, RJ, Departamento de Arte Corporal da Escola de Educação Física e Desportos da UFRJ, 1976.

LABAN, Rudolf. Domínio do Movimento , São Paulo: Summus, 1971.

MOTTA, Maria Alice. Teoria Fundamentos da Dança: uma abordagem epistemológica à luz da Teoria das Estranhezas . – Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF IACS,2006.

BACHELARD, Gaston . La poétique de l'espace. Traduzido por Ernestina de Champourcin. Presses Universitaires de France, París, 1957.

 

 

 

 

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