Água viva , de Lispector: a voz de Gaia?
Camillo Cavalcanti
Doutorando UFRJ/ Bolsista CAPES/ Assistente Substituto UFF
RESUMO: O presente trabalho pretende enunciar a relação entre Homem e Natureza, entre linguagem e mundo, na prosa Água viva , de Clarice Lispector. Devido à sua pujança enquanto obra-poética, foi “categorizada” para além do estatuto de romance, como prosa poética. Na verdade, textos como Água viva estão num não-lugar inexplicável pela crítica convencional. Por quê? Este texto clariceano é expressão da poeiesis , extrapolando a representação mimética de fatos (por isso prosa poética, mas em outra acepção), o que será explicado neste trabalho. Também expõe-se a proximidade entre essência humana e Natureza ( natura naturans ), numa experiência de fazer a si, ao outro e a ambos enquanto comunhão, sabendo que cada um é um acontecer poético, advindo da Centelha divino-criadora que reúne ambos novamente em sua totalidade esplendorosa, que é relação entre transcendência e matéria, ou seja, Natureza e Incondicionado. Desse modo, a diferenciação entre sujeito e objeto não mais cabe, e a voz da narradora con-funde linguagem humana e linguagem da Natureza, corpo germinativo que acolhe o homem enquanto criação. Por isso, o título pergunta não um problema, mas uma questão, pois ser ou não a voz de Gaia invoca o mistério da contigüidade-ao-mesmo-tempo-distinção do homem no Absoluto, o Criador Divino.
Palavras-chave: poética; questões; Clarice Lispector.
Considerada como prosa poética, Água viva é talvez o mais denso trabalho de escritura de Clarice Lispector. A pretexto de narrar uma paixão não resolvida, a narradora termina por expor suas idéias sobre o mundo, suas pessoalidades mais íntimas e, principalmente, sua vivência. O que é vivência? Quando o ser conscientemente experimenta a realidade sabendo que esta é em parte sua leitura de mundo, em parte expressão da natureza, e que esta, a natureza, é criação-cridora, criada por Deus, então o ser penetra nas paragens da existência e da essência, quer dizer, entende que o seu corpo se relaciona com o meio, mas que isso não totaliza suas diversas experiências intrínsecas e com a força transcendente. Qual o lugar físico, ou do mundo concreto, para os sentimentos, as idéias, os acontecimentos sonhados? Uma palavra-chave para a interpretação do texto é tensão , porque o indivíduo percebe sua autonomia frente ao mundo, e isto torna a vivência fragmentária e o indivíduo emancipado mas partícipe do meio, ocasionando diferenças e interpenetrações. É nessa dimensão que Água viva nos convida a entrar.
A densidade psicológica logo adverte que o texto fará referências a experiências profundas, quase místicas. O que fixa a ambientação em certo realismo, impedindo o domínio do fantástico , é justamente a boa dose de cotidiano, isto é, um cotidiano elaborado a partir de uma linguagem próxima do leitor. A narradora conversa, consigo e com o leitor, sobre sua problemática eminentemente existencial, através de metáforas que criarão um permanente intercâmbio entre o mundo introspectivo e a realidade circundante: “estou tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais.” (LISPECTOR, 1998: 9). A narradora encara essa “realidade” pessoal como um problema, ou mais, uma questão humana: isto anula toda a possibilidade de magia ou fantasticidade — o universo dessa prosa poética não é regido por forças sobrenaturais, e sim, por experienciações profundas consigo mesmo e com o mundo. Rico, portanto, de aspecto filosófico, o texto adquire certo nível iniciático bem velado, conquistando o leitor pela gradação vagarosa de determinada transcendência que não está no mundo circundante, porém na forma de apreensão desse mundo. Nesse sentido, a narradora inaugura uma categoria chamada “instante-já”, que formará, com a categoria “it”, a dialética de construção do enredo, enredo este que trata da fruição das coisas pelo sujeito vivente. A influência heideggeriana é evidente em frases como “quero apossar-me do é da coisa” (p. 9); “e no instante está o é dele mesmo” (p. 10); “a invenção do hoje é o meu único meio de instaurar o futuro” (p.12), cuja complexidade de pensamento impele o leitor imediatamente à reflexão: a transcendência pela reflexão, e não pela instauração de elementos “fantásticos”. O instante-já é a categoria neologística que representa a plenitude da experiência vivida, que habitualmente é reduzida ao nível do ordinário numa visão desafortunadamente materialista; direção oposta em Água viva , i.e. a plenitude da experiência: “e quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito.” (p.9) — quer dizer, o presente é apenas a palavra que pretende designar a percepção humana num átimo de segundo. Por isso, não é capturável: “a atualidade sou eu sempre no já” — e se já permanece sempre, modificando-se, não instaura diferença entre passado, presente e futuro. Assim, o indivíduo é que é passageiro, e a criação, eterna: “a vida é esse instante incontável, maior que o acontecimento em si” (p. 10). A relação entre ser e criação (obra divina), quando voltada para uma simbiose, gera a poiesis : “se pensarmos a vigência do sagrado, então teremos um tempo não-linear, porém, circular, onde a cada círculo correspondem novas modalidades de experienciação do sagrado.” (CASTRO, travessiapoetica.com). Dessa forma, o texto de Lispector é poético no mais alto grau de leitura porque a narradora se constitui como ser à medida que inaugura um tempo e uma linguagem que manifestam esse ser. Assim, o ser é um acontecimento que se dá em seu tempo e em sua linguagem. O mistério de uma ou outra expressão desse indivíduo é o próprio mistério de si mesmo, enquanto ser originário. A suspensão de todo e qualquer interesse pelos porquês, pelas causas, pelas razões testemunha a consciência de que a partilha entre ser e meio circundante (como ambiente, e não como paisagem) possibilita a criação de mundos, onde o tempo não responde a uma linearidade, mas é a própria arte acontecendo. Por isso, a narradora afirma: “não me interessa, a causa é matéria do passado” (p. 10), isto é, de uma experienciação que o sujeito não mais acredita. Então, ele repreende o interesse pelos porquês, mas não contraria o leitor em sua ânsia de saber, pois esta é fonte poética, desde que não reduza as questões a conceitos: “perguntarás por que os traços negros e finos? é por causa do mesmo segredo que me faz escrever agora” (p. 11). Este segredo é a sustentação do originário, que é mítico e que é poético, ou seja, mito-poético. Portanto o ser no tempo é sempre, se consciente, no seu tempo. O originário se manifesta do nascimento até a morte e da morte até o nascimento, isto é, realiza-se nas diversas questões humanas e acompanha o homem em sua caminhada. No caso de Água viva , isso, nomeado como “substrato”, aparece também no intuito de demonstrar que o real é caótico e a partilha homem-natureza, em todas as suas dimensões ultrapassa os limites da razão, do cognoscível reificador e desencantador da natureza, portanto, a linguagem, formatada para a comunicação racional não as exprime: “que mal tem eu me afastar da razão?” (p. 12). Mas a linguagem poética é capaz de exprimir essas dimensões. O contato do indivíduo com o sagrado e sua criação, como se disse, não é linear, e por isso confunde o senso , a expectativa pela razoabilidade do que será dito: “tudo o que sei não posso dizer, só sei pintando ou pronunciando sílabas cegas de sentido” ou “e se tenho aqui que usar-te palavras, elas têm que fazer um sentido quase que só corpóreo” (p.11). Assim, a narradora decide apresentar ao leitor como funcionam os instantes-já, quer dizer, como o ser vai acontecendo, em sua não-linearidade enriquecedora, apontando o fundamento, o originário como o essencial do homem (em dimensão individual e coletiva): “para te dizer o meu substrato faço uma frase de palavras feitas apenas dos instantes-já”, por isso o acontecer do ser, que é um acontecer poético em seu tempo não-linear, é fragmentário, multifacetado, infinito e caótico: “com o correr dos séculos perdi o segredo do Egito, quando eu me movia em longitude, latitude e altitude com ação energética dos elétrons, prótons, nêutrons, no fascínio que é a palavra e a sua sombra”. Observemos que a palavra é a linguagem se fazendo, tomada dessa maneira também possui poder inaugural sobre as coisas — nesse sentido, é palavra poética. Aliás, a palavra, em sua dimensão poética, cria épocas e mundos, pois é capaz de modificar a experiência de vida e a realidade a partir de propostas e confrontos entre as maneiras de ver e viver, realizadas ou artisticamente representadas.
A certeza da dimensão poética, originária, se presentifica a todo instante, integrando a partida e a chegada como o faz o salto. O salto é sempre de e sempre para, é movimento. E a obra de arte é mudança permanente, a mudança que permanece ou fala do eterno, e nesse oximoro faz acontecer a poiesis . A narradora exprime da seguinte forma: “quero a palavra última que é tão primeira que se confunde com a parte intangível do real”, ou seja, a palavra, nesse caso a palavra-poesia/palavra-poética, atravessa desde o abismo inaugural até a sensibilidade da nossa vivência, passando por todas as searas do ser, que são, dentre os saberes e sabores, experienciações de vida.
A tessitura poética se alterna com trechos filosóficos, trechos estes que tentam explicar ao leitor a visão de mundo particular e muito diferente da narradora. Por vezes, há uma mistura desses ingredientes, proporcionando um manancial de pensamento e arte. Por exemplo, fragmentos poéticos como “agora está amanhecendo e a aurora é de neblina branca nas areias da praia” (p. 13) se misturam com reflexões filosóficas como “meu olhar deve ser o de uma pessoa primitiva que se entrega toda ao mundo, primitiva como os deuses que só admitem vastamente o bem e mal”. (p.13). Além dessa interpenetração dual, uma discussão sobre a escrita permeia esses vários fragmentos, poéticos ou reflexivos, conferindo ao texto níveis metalingüísticos (auto-referenciais, portanto): “e eu aqui me obrigo à severidade de uma linguagem tensa” (p. 13).
Nesse momento, há a primeira confissão do sentimento amoroso, ainda que secundariamente apenso para ilustrar o estado de espírito atual da narradora: “parece com momentos que tive contigo, quando te amava, além dos quais não pude ir pois fui ao fundo dos momentos” (p. 13). Este “estado de contato com a energia circundante” (p. 13) provém da vivência plena do ser, consciente de si mesmo e de sua relação com o outro, isto é, o meio. O amor aconteceu, quer dizer, não mais borbulha no foro íntimo, mas existe como recordação à medida que o ser é também o que foi, e isto inclui a soma das experiências vividas. A conjugação do verbo no passado expressa exatamente que esse amor pertence ao sujeito, mas não se manifesta com vistas à realização. Por isso, a memória faculta e oferece à narradora comparar os estados de espírito do presente com o passado, uma vez que o que ela sentia naquele passado com o objeto amado parece, isto é, se compara com o estado atual, e brota, também, no presente, contribuindo para o “esplendor dilacerado pelo cantar último que parece ser o primeiro” (p. 14). Bem se vê que existe um quadro melancólico dissimulado pelo sujeito a todo instante. Talvez não seja, propriamente, um estado patológico grave, mas percebemos que o fim do relacionamento amoroso, como para qualquer pessoa, é encarado como uma frustração, daí surge certa fixação ao objeto na expectativa de uma oportunidade para “acertar contas”. No caso da narradora, essa frustração é inconfessa, inclusive escamoteada e sufocada pelo êxtase do seu presente estado de espírito: “estou tão bem agora quanto contigo”, parece dizer a narradora, ou até mesmo “estou muito melhor agora, embora nosso relacionamento tenha sido muito bom”. Mas a máscara da melancolia, como qualquer outro disfarce, tem sua hora de queda, porque o sujeito acaba, talvez involuntária ou inconscientemente, delatando o fundo do problema: “eu que venho da dor de viver” (p. 16). Clarice Lispector, enquanto escritora altamente consciente de seu ofício, intitulou o texto de Água viva , sendo um dos pontos de investigação da crítica o motivo dessa escolha. Arrisco um palpite, evidentemente jamais unilateral, de que possa significar, dentre outros sentidos não excludentes, que a bile negra, doentia e mortuária transforme-se na Água viva , clara e salubre. A estrutura narrativa mergulha profundamente no âmago interno do sujeito de forma a promover uma ruptura radical com os referenciais externos (fora da obra), que aparecem “imitados” ou “mimetizados” apenas para ilustrar os espaços subjetivos. Grosso modo , podemos aproveitar a categoria “tempo psicológico” para também tentar ilustrar nossa idéia a partir de um referencial conhecido. A magnitude do texto se deve ao total domínio da esfera subjetiva, que inaugura um tempo não-cronológico, um tempo próprio, que, articulado entre saberes e sensibilidades particulares da arte (talento humano), pode ser chamado, no caso de Água viva , de tempo poético. Desse modo, é pura arte, pois a suspensão da linearidade reificante de nosso dia-a-dia faz nascer um mundo ficcional, e, como no caso de Água viva trata-se de um mundo ficcional permanente, a “classificação” genérica de “ficção”, que aparece abaixo do título talvez para advertir que a prosa não é romance (no sentido tradicional), não só atende ao hibridismo de gêneros já identificado neste trabalho, como também esclarece a continuidade ininterrupta da imersão nas estâncias artísticas, portanto no tempo poético, o tempo que se faz a si mesmo e por si mesmo: “tento misturar palavras para que o tempo se faça.” (p. 16) — o homem cria e é a partir de sua linguagem. A todo instante, a narradora alerta que o tempo em questão não é o tempo cronológico, mas o tempo poético do ser no seu acontecer: “para me refazer e te refazer volto a meu estado de jardim, fresca realidade, mal existo e se existo é com delicado cuidado”. Ou seja, o “voltar” não significa retroagir nas datas para alcançar as marcas convencionais que “temporalizam”, determinada situação, instituindo datas. Muito diferentemente, o “refazer” e o “voltar” se dão no tempo originário, porque são inaugurais (inauguram mundos), inaugurabilidade explicada no prefixo “re-”, pois o “fazer” é irrepetível, e toda revisitação ou vista d'olhos é também uma nova criação. Assim, o texto de Água viva sempre oscila entre vivência e memória, porque assim mesmo é a experiência do ser, alternando a fruição (digamos, “percepção”) e a rememoração do meio. “O poder de reunir que é inerente à fala da linguagem é sempre originário, porque se dá enquanto memória” (CASTRO, travessiapoetica.com) — a narradora tem plena consciência disso, então procura advertir o leitor desse descompasso entre o que é e o que está sendo dito: “aquilo que capto em mim tem, quando está sendo agora transposto em escrita, o desespero das palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar” (p. 15) — e este “ocupar mais” sempre acontece. Ao realizar esta tentativa de dizer, que é sempre imbuída de rememoração, o sujeito cria uma obra, que pode ter seu valor artístico como o tem Água viva . E a experienciação do sujeito enquanto faz a obra e depois quando a dispõe para defrontamentos, transforma o sujeito, pois se torna fonte de reflexão e mais um testemunho de experienciação com o sagrado e a natureza ( physis ): “a densa selva de palavras envolve espessamente o que sinto e vivo, e transforma tudo o que sou em alguma coisa minha que fica fora de mim” (p. 23).
O texto segue nesse tom até lançar um parágrafo que radicalmente altera o campo de visão. Após todas essas linhas pessoais, a narradora anuncia a segunda categoria “it”, que, com a categoria “instante-já”, promoverá, como se disse, a dialética estrutural do texto, quer dizer, é a partir do confronto entre “instante-já” e “it”, no âmago do indivíduo, que serão transcritas as experienciações subjetivas, fazendo acontecer o ser na sua dinâmica de vivência e memória (que em Água viva se confunde com a escrita, como já assinalamos no parágrafo anterior): “mas há também o mistério impessoal que é o ‘it'” (p. 28). Esse mistério é perscrutável, diferentemente de categorias eminentemente fantásticas, sobre as quais recai a sobrenaturalidade transgressora da ordem cotidiana. Esse mistério é explicável, em oposição à força mística que transita no mito. Esse mistério, afinal, oscila do material ao imaterial, porque, por um lado, acontece dentro do ser e é a própria transcendência (“o it vivo é o Deus”, p. 28), mas, por outro, é “húmus na terra e vive do apodercimento”, embora não seja “corrupto e apodrecível pelo pessoal”, mas “duro como uma pedra-seixo” (p. 28). É interessante perceber que a categoria “it”, no texto de Clarice Lispector, ainda que signifique o impessoal, não parece aceitar a semântica do gênero neutro, pelo menos não na acepção de Roland Barthes. Segundo Barthes ( Masculino, feminino e neutro ), o neutro designa a matéria bruta e morta, simplesmente. Em Água viva , a palavra “it” admite essa conotação, mas nunca se desprega da dualidade com a transcendência, isto é, no texto lispectoriano, o “it” é Deus, o que não é viável no pensamento de Roland Barthes, pois este crê que o neutro é o inerte. Em Água viva , do “it” emana e provém todo o encantamento explicável, transmissível, palpável: “no fundo de tudo há a aleluia” (p. 33). Admitindo a impessoalidade irrestrita, o sujeito percebe o encantamento da natureza como criatura criadora e producente, e se percebe partícipe de um organismo maior e esplendoroso: “seco-me ao sol e sou um impessoal de caroço seco e germinativo” (p. 28). Sendo o it o próprio Deus, também é a própria coisa germinativa, embrionária, “a transcendência dentro de mim é o ‘it' vivo e mole e tem o pensamento que uma ostra tem” (p. 28). Conhecendo a co-relação intrínseca entre Criador e Criatura, a narradora afirma facilmente que “o Deus é o mundo” e que “a prece profunda é uma meditação sobre o nada”, uma vez que, se meditasse sobre Deus, certamente meditaria (e eu acrescentaria um “também” nesse pensamento lispectoriano) sobre a Criatura, o mundo, a ostra. A dimensão litúrgica que esse lugar toma, a ponto de Lucia Helena falar em “lugar enfeitiçado”, de fato não articula categorias fantásticas, mas é produzido a partir do gozo de uma experiência plena de sentido e absolutamente consciente — aqui, mais precisamente, reside a carga lírica, espalhada em vários bolsões por todo o texto.
Assim como a narradora “costumava pingar limão em cima da ostra viva” para ver “com horror e fascínio ela contorcer-se toda” (p. 28), ela percebe que, imersa na Criação, um outro pode vê-la como ostra: “não gosto quando pingam limão nas minhas profundezas e fazem com que eu me contorça toda” (p. 28). Por isso, a pergunta inevitável, aproveitando a metáfora: “os fatos da vida são o limão na ostra?”. A comparação implícita entre ela (o humano) e a ostra provoca uma pergunta irônica, pois atinge sentido auto-reflexivo quando superado (mas não descartado) o primeiro sentido direto: “será que a ostra dorme?”. O tênue efeito risível advém da personificação/humanização da ostra, construindo uma figura prodrômica comparada aos outros seres intelectivos, complexos e cônscios dos quais originam as qualidades emprestadas à ostra. Em outras palavras, uma ostra falante, uma ostra dormindo, uma ostra respirando “para baixo e para cima” (p. 29) com o auxílio de uma traquéia — essa ostra antropomorfoseada é cômica e burlesca. Mas a ironia não se esgota aí, por isso, ela ganha as dimensões da ironia pensada pelo círculo dos românticos-jenenses. Se percorrermos sentido inverso, isto é, em vez de sair do pólo humano para refletir sobre o pólo da ostra, — se começarmos a refletir sobre as características de ostra no pólo humano, — a ironia alcança finalmente a auto-reflexão, e não só veremos a ostra prodromicamente humana, mas também o homem (nós mesmos) desajustadamente viscoso e informe.
E isso acontece nas mediações do ser, vivendo e convivendo: “eu sou puro it que pulsava ritmadamente”. O tempo poético, originário por natureza, cria mundos e ignora a linearidade do tempo cronológico instituído pelas convenções — por isso, a narradora assegura que “se eu ouço [o ribombo oco do tempo] é porque existo antes da formação do tempo” (p. 34). Não se trata, como já dissemos, do tempo instituído em nossa sociabilidade, mas o tempo originário, “e então a época meramente circunstancial e histórica é experienciada numa época radicalmente poética”, na qual o salto do ser na linguagem instaura o destino: “o circunstancial e contextual é como que um conjunto de adjetivos possíveis em que o o que era para ser se concretiza” (CASTRO, travessiapoetica.com). A dimensão do passado, presente, futuro não mais importa, pois nós, seres humanos, somos, e nossa história transcorre na “grande ventura de nos apropriarmos do que nos era próprio” (idem). Por isso, a narradora diz: “Vim te escrever. Quer dizer: ser” (p. 33). Quando o ser penetra no seu âmago, abraçando o que ele é, sabendo que era para ser tal e qual, se torna um acontecimento poético, acontecimento que só se dá e se desenvolve, plenamente, na dimensão poética, para além do mundo ordinário. Então, se este “eu sou” é o desarrolar no tempo, o tempo é o ser se fazendo: “eu sou” é a gama de experiência do ser. Mas, quando este “‘eu sou' é o mundo” (p. 34), é it, é Deus, e o mundo acontece no ser, o ser germina, produz, frutifica — o ser é um mundo que frutifica mundos, porque é um acontecer poético, assim como a obra de arte. Desse modo, o ser é útero, é Mãe. O texto lispectoriano exprime essa verdade ao desvelar a consciência subjetiva acerca desse acontecimento poético e originário: “a mão pousa na terra e escuta quente um coração a pulsar” (p. 35). A Mãe, que se confunde com a Terra, é Gaia, o imenso organismo originário de todas as coisas, todos os seres: “de madrugada acordo cheia de frutos” (p. 36); “algo selvagem, primário e enervado se ergue dos meus pântanos” (p. 38). Aqui, o título ganha nova explicação — pensemos num clichê usado pelas campanhas ecológicas que, superando o sentido ordinário e primeiro-inteligivel, remete a uma verdade profunda: “água, fonte da vida”. A fonte da vida é Gaia, que aparece no texto em sua própria plenitude de vida. Em As metamorfoses , Ovídio expõe a maravilha de Gaia, maravilhosa e maravilhada, ser originária, que da escuridão e da massa informe floresce em vida, fecundada por Urano, gerando todas as criaturas, no milagre divino. Assim também em Água viva : “é a luz secreta de uma sabedoria da fatalidade: a pedra fundamental da terra” (p. 38). A força de Deus rege todo esse espetáculo de criação do mundo poético, e com ele vige o sentimento mais vital — o amor: “mas ainda mais atrás há o coração batendo” (p. 42). É sobre esse sentimento que a narradora evita falar, pois, como se disse, há certa resignação dela por se sentir frustrada acerca de um amor, de uma relação que conheceu um fim indesejado. Ninguém deseja terminar um relacionamento amoroso, mas quando este termina, logo uma persistente melancolia invade a alma, pela fixação ao objeto amado ou à situação com o mesmo. Por isso, a narradora confessa: “vou voltar para o desconhecido de mim mesma e quando nascer falarei em ‘ele' ou ‘ela'. Por enquanto o que me sustenta é o ‘aquilo' que é um ‘it'.” (p. 41-42). Finalmente admite: “estou melancólica” (p. 46). O texto, agora, logra outra dimensão: além das reflexões filosóficas, dos bolsões poéticos, dos níveis metalingüísticos, explicita-se a problemática, antes apenas intuída ou despistada, quanto a uma experiência amorosa com uma terceira pessoa: “já entrei contigo em comunicação tão forte que deixei de existir sendo” (p. 49), aquilatando a importância do outro a ponto de elevá-lo à primeira pessoa, o máximo de humanização: “você tornou-se um eu”. (p. 49). A essa altura, a narradora começa a desenvolver uma identificação, ou seja, uma junção entre o leitor e a pessoa amada, numa espécie de transferência defensiva — explicação em nível psicológico —, logrando mais participação emocional do leitor, que começa a buscar em seu repertório de experiências particulares situações similares de relação amorosa, para medir e mediar as sensações da narradora: “como traduzir o silêncio do encontro real entre nós dois?” (p. 49).
Buscando apreender e exprimir uma totalidade, a narradora se utiliza de combinações sinestésicas — o que enriquece o nível literário: “pintar um afresco em adaggio” (p. 40); “das palavras deste canto [...] evola-se um halo que transcende as frases” (p. 44); “estou tentando fotografar o perfume” (p. 50). É fácil perceber a articulação dos níveis metalingüísticos, de maneira a empenhar as sinestesias na explicitação da técnica narrativa.
Gaia, esta totalidade inexprimível e esplendorosa, mas sentida e apreciada, passa por sua primeira transformação nesse mundo poético produzido a partir do texto: “preste atenção e é um favor: estou convidando você para mudar-se para reino novo” (p. 52), mundo este germinado em animais. Cabe lembrar que a opção da narradora em apresentar primeiramente os bichos não implica necessariamente que eles tenham surgido antes de outras formas de vida, mas significa apenas que o foco narrativo incidiu primeiro neles. O princípio vital aparece metaforizado pela força animal, pelo nome genérico bicho que adquire no texto valor metonímico do próprio instinto animal: “preciso sentir de novo o it dos animais”; “os bichos me fantasticam”; “há muito tempo não entro em contato com a vida primitiva animálica”; (p. 44) “estou agora ouvindo o grito ancestral dentro de mim: parece que não sei quem é mais a criatura, se eu ou o bicho” (p. 45). Os primeiros bichos são habitantes de Urano, o grande céu: “pássaros — eu os quero nas árvores ou voando longe de minhas mãos” (p. 45); “ter coruja nunca me ocorreria, embora eu as tenha pintado nas grutas” (p. 46); “já vi cavalos soltos no pasto” (p. 46); “no inverno os lobos esfaimados desciam das montanhas”(p. 46). Em seguida, o foco narrativo incide na descrição das qualidades de diversas flores, como para apresentar a flora em seus primores, com uma breve atenção sobre o vento: “esse ar solto, esse vento que me bate na alma” (p. 48). Diversas flores são evidenciadas no texto no intuito de exprimir o real-poético em toda a sua beleza divina e transcendente. Como a transcendência é em si inefável, somente pode encontrar um esboço aproximado nos êxtases emocionais, que, em literatura, são verbalizados nas sinestesias: “antes te dou com prazer o puro néctar” (p. 52) — êxtase já muito referenciado pela narradora em linhas anteriores. A consciência de ser Gaia se densifica conforme prosseguimos a leitura — além dessa descrição do mundo poético, confundido com o território íntimo, através de uma cosmogonia (sempre inaugural) a respeito de animais e plantas, a narradora, que é um ser-poético, com seu tempo e seu mundo, toma consciência e comunica sua onipotência nesse abismo-inaugural: “você há de perguntar por que tomo conta do mundo” (p. 56). Embora entenda seu poder de realização e criação no seu próprio mundo, a narradora não esquece que sobre todos os mundos conhecidos e desconhecidos vige a força divinal: “só não encontrei a quem prestar contas. Ou não?” (p. 57). A inter-relação com o outro representa a partilha, a procriação, o verbo se fazendo carne, metaforizando o contato com Deus, encontrado no diálogo com outra pessoa: “estou te prestando contas agora”. Aqui, nessa frase, há uma mudança radical de perspectiva, intuída também no sentido mais ordinário de uma construção de discurso. Mas se essa prestação de contas se direciona ao objeto amado, nova visita ao terreno da melancolia é feita, mas, certamente, como das outras vezes, de maneira velada e sorrateira. Das veredas prazerosas da narração do espetáculo de criação do mundo poético, a narradora verte o discurso para a dor daquela lembrança que permanece incomodando, e por isso, vem à tona: “vou agora mesmo prestar-te conta daquela primavera que foi bem seca” (p. 57). Esse mundo poético, se legítimo e ajustado, é a dinâmica, perceptível pela sensibilidade humana na obra de arte, entre Eros e Tanathos: o gozo e a dor. Então, após a vivência do prazer, a narradora, falando de sua experiência amorosa interrompida e, portanto, motivo de frustração para o sujeito, vive os momentos dolorosos: “dor é vida exacerbada” (p. 58); “penso que agora terei que pedir licença para morrer um pouco” (p. 60); “para cicatrizar levará tempo” (p. 61). O fel da melancolia, por fim, escorre no discurso da narradora, que suspendeu o assunto quanto pôde resistir, dando provas de sua inabilidade em lidar com a perda, outro sintoma melancólico: “um dia disseste que me amavas. Finjo acreditar e vivo, de ontem para hoje, em amor alegre.” (p. 61). Aqui podemos perceber maravilhados que a elaboração desse mundo poético, com seu tempo diferenciado, serviu de subterfúgio às fugas do sujeito melancólico para não encarar o problema amoroso que nele se instaurou: “sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que é mítico e fantástico” (p. 62) — isto é, o amor, sentimento divinal, participa do âmago de Deus. O mundo poético criado pelo tempo pessoal que estruturou esse real diferenciado cada vez mais se multiplica, se adensa para orquestrar a comunicação do estado de espírito da narradora, ser-poético em questão . Finalmente em contato com a questão do ser por ora aflorada, a narradora, confundida com o mundo poético, confessa: “parece-me que o mais provável é que não entendo porque o que vejo agora é difícil: estou entrando sorrateiramente em contato com uma realidade nova para mim” (p. 62). Não obstante os augúrios, a vida é sempre aprendizado, aprendizado de si mesmo: “agora adivinho que a vida é outra. Que viver não é só desenrolar sentimentos grossos — é algo mais sortilégico e mais grácil, sem por isso perder o seu fino vigor animal.” (p. 63).
“O lugar enfeitiçado”, expressão cunhada por Lucia Helena, nos parece ser uma maneira de sentir esse mundo poético: “mas conheço também outra vida ainda. É uma vida de violência mágica. É misteriosa e enfeitiçante [...] E eu sou a feiticeira dessa bacanal muda” (p. 64). Aqui a narradora retoma uma maneira maléfica de se manifestar, maneira apenas esboçada anteriormente ao dizer “e eis que o meu mal me domina. Sou ainda a cruel rainha dos medas e dos persas” (p. 44). A revolta se apodera do ser, a revolta que gera o ódio — o mal se frutificando —, de forma a destruir tudo, inclusive a si mesmo: “sinto-me derrotada pela minha própria corruptibilidade.” (p. 64). O reencontro entre a narradora e o objeto amado, dado nesse espaço poético, também terá fatalmente de conhecer o seu fim, e agora ela parece procurar se preparar para lidar com a perda: “e eis que sinto que em breve nos separaremos” (p. 65). A mesma queixa sobre o objeto, sintomática entre os melancólicos, também comparece no texto: “escrevo-te porque não chegas a aceitar o que sou” (p. 67), e o desejo de nova posse do objeto acontece em sublimação extática do amor, encontrando na imaginação desejante as metáforas correspondentes: “do novo estou de amor alegre. O que és eu respiro depressa sorvendo o teu halo de maravilha” (p. 68). A presença do objeto amado se dá através da memória: permanecem todas as marcas na esfera íntima que navegam entre passado e presente na embarcação da lembrança que singra a Água viva do ser. A vontade de recuperar momentos com o objeto para “acerto de contas” matiza o texto de espólio amoroso, inventariando as palavras não-ditas, os momentos não vividos, a harmonia perdida: “foi assim que vi o portal da igreja que pintei. Você discutiu o excesso de simetria. Deixa eu te explicar: a simetria foi a coisa mais conseguida que fiz” (p. 69). Ora, a narradora nem se preocupa se o amante quererá ouvir seus remendos e adendos sobre uma relação passada; pelo contrário, pressupõe indubitavelmente o interesse do interlocutor que justifique seu discurso: “deixa eu te explicar” — foi a explicação que morreu entalada na garganta, e que agora renasce cobrando sua necessidade de verbalização. O salto acontece da palavra emudecida à palavra inominável, indizível: “tenho que interromper para dizer que ‘X' é o que existe dentro de mim” (p. 72); “é o figurativo do inominável. Quase não existe carne nesse meu quarteto” (p. 74). O sintagma “tenho que interromper” é uma marca estrutural do texto se for lido junto a outras que avisam sobre a mistura homogênea de fragmentos que compõem a Água viva : “escrevo para ninguém e está-se fazendo um improviso que não existe. Descolei-me de mim. / Eu quero a desarticulação, só assim eu sou no mundo” (p. 75) — assim como a água é desarticuladamente fluida e esparramada pelos espaços que é capaz de ocupar. Esses fragmentos são originários, porque estruturam uma densidade polissêmica ao texto, como se vista de um caleidoscópio: cada mirada, cada leitura, inaugura um mundo infinito, poeticamente expresso. E a narradora, assim, reitera ciclicamente a importância do gozo dessa experienciação fragmentária da e na obra, obra esta metonímia do mundo-poético inaugural que a narradora representa de e em si mesma: “porque às cinco da madrugada de hoje, 25 de julho, caí em estado de graça”. Graça de viver e de enredar a vida, em novas experiências e em novos dizeres: o mundo gerando mundo, nesse contato com o sagrado — gérmen de vida, a mãe Terra. Eis então uma questão, que deve ser entendida como indagação: Água viva permite uma leitura mitopoética, qual seja, a cosmogonia se fazendo na natureza, corpo de Gaia, em comunhão procriativa consigo mesma — num relato dela mesma sobre ela mesma: “meu canto do it nunca termina?” (p. 86).
BIBLIOGRAFIA
CASTRO, Manuel Antônio de. Caracterização de Poética; Época e Arte. www.travessiapoetica.com, capturados na primavera de 2006.
HELENA, Lucia. Um lugar enfeitiçado. in: ---. Nem musa nem Medusa: itinerários da escrita de Clarice Lispector . Niterói: EDUFF, 2006.
LISPECTOR, Clarice. Água viva . Rio de Janeiro: Rocco, 1998.