A VIDA DE SANTO DOMINGO DE SILOS : UM POEMA-HAGIOGRÁFICO

 

Bruno G. Alvaro (mestrando pelo PPGHC-UFRJ e colaborador no Pem-UFRJ)

 

 

Resumo:

Neste texto, trabalharemos parte de alguns questionamentos e análises que temos desenvolvido em nossa pesquisa de mestrado no Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob a orientação da Profª. Drª. Andréia C. L. Frazão da Silva. Nosso intuito específico no mestrado é, via utilização do Método Comparativo em História e na perspectiva de Gênero, estudar a construção da masculinidade dos personagens principais das seguintes obras medievais: a Vida de Santo Domingo de Silos , que conta a vida e trajetória de Domingo de Silos, até este ser elevado a condição de santo e, o Poema ( ou Cantar ) de Mio Cid , texto que rememora narrativamente os feitos heróicos de Rodrigo Díaz de Vivar, cavaleiro castelhano erigido como herói na posterior Reconquista.

 

Palavras-Chave: Gonzalo de Berceo – Idade Média – Poema-Hagiográfico

 

Introdução

A Vida de Santo Domingo de Silos , nos possibilita inúmeras abordagens analíticas dentro de várias perspectivas, desde historiográficas a literárias. Nosso enfoque de estudo é situá-la, através da disciplina histórica, dentro de uma região e período. E, ainda, sem lançar mão da própria Literatura como instrumento necessário à contribuição do desenvolvimento da História, analisaremos um momento de criação de seu autor e os instrumentários poéticos utilizados por ele. Por estes motivos, se torna pertinente inseri-lo dentro de um contexto social específico da Idade Média castelhana.

Já que nos foram deixadas algumas informações sobre Gonzalo de Berceo, nesta primeira parte do artigo co-relacionaremos nossos questionamentos a estudos sobre sua formação intelectual.

Gonzalo de Berceo: um clérigo-poeta

Gonzalo de Berceo é o primeiro poeta cujo nome conhecemos a escrever em castelhano. Diferentemente de outros contemporâneos seus, Berceo assinou o nome nas obras e em algumas outras se inseria no próprio texto, como podemos observar na Vida de Santo Domingo de Silos : “Yo, Gonçalo por nomne, clamado de Berceo, de San Millán criado, en la su merced seo”.

Nascido em meados do século XII, no povoado de Berceo, por este motivo a utilização da nomenclatura como um certo tipo de sobrenome, algo recorrente na Idade Média. O autor foi criado e educado no Monastério de San Millán de la Cogolla. No entanto, não seguiu a vida monástica tornando-se clérigo, sendo, ainda, preste neste mesmo mosteiro. Contudo, Gonzalo de Berceo apresenta-nos ainda mais uma característica importante: foi poeta.

Alguns estudos que hoje se encontram defasados, classificavam-no como um clérigo ingênuo, pelo fato de escrever suas obras em língua vernácula e não em latim, idioma da maioria dos textos produzidos e escritos para a Igreja no medievo até então. Mas, os estudos encabeçados por lingüistas, filólogos e historiadores no mundo inteiro derrubaram esta tese. Atualmente, há consenso em defender Gonzalo de Berceo como um homem culto pelo número extenso de obras escritas e pelas inovações apresentadas nas mesmas. Outro caráter que deve ser demarcado junto ao fato de seus textos serem escritos em língua vernácula está no intuito dos escritos berceanos. Como clérigo, seus textos tinham o intuito de edificação dos fieis e exemplaridade cristã e como poeta inseriu elementos que fizeram com que suas obras se tornassem atrativas aos ouvintes.

Os poemas de Gonzalo de Berceo são todos religiosos e na sua maior parte narrativos e são divididos em Poemas marianos , textos em exaltação a Virgem Maria; Poemas de vidas de santos , escritos que contam a vida de homens e mulheres considerados santos e, por fim, mais dois poemas El Sacrifício de la Misa , de exposição litúrgica e Los signos que aparecerán antes del juicio , sobre as visões apocalípticas. São atribuídos ainda ao autor três hinos com sete cópias cada um inspirados em outros textos latinos.

Algumas são as hipóteses sobre a formação intelectual de Berceo, alguns estudiosos defendem que o mesmo cursou uma universidade outros são contrários a esta afirmação por não haver registro algum sobre esse fato. Porém, através da análise de seus poemas, é possível encontrar co-relações e aproximações com outros poemas contemporâneos aos seus, como por exemplo, o Libro de Alexandre , o Libro de Apolonio e o Poema de Fernan González , todos de autoria desconhecida e produzidos, provavelmente, no ambiente da Universidade de Palência, onde defende-se que havia um grupo de poetas que separadamente desenvolveram uma técnica específica, que segundo hipóteses de especialistas, não poderia ser transmitida unicamente através de textos. Essas obras com semelhanças formais são denominadas Mester de Clerecia e costuma-se defender, graças as similitudes dos escritos berceanos com as obras de Mester que o clérigo-poeta participou desse grupo.

Segundo Andréia Frazão, as vidas de santos escritas por Berceo:

Foram compostas com versos de quatorze sílabas, divididos em dois hemistíquios simétricos, com acento rítmico na sexta sílaba, e rima consoante. Cada grupo de quatro versos formam uma estrofe, denominada de cuaderna via ou tetrásforo alexandrino ”(FRAZÃO DA SILVA, 1997, p. 3).

 

A Vida de Santo Domingo de Silos : inovações berceanas

A VSD foi escrita a partir do texto em latim Vita Dominici Siliensis , da autoria do monge Grimauldus , no entanto, a “nova versão” não se limita a ser uma cópia do texto latino.

Composta por Gonzalo de Berceo, provavelmente, por volta de 1250, é formada por três livros, que juntos formam uma mensagem coesa e indivisível. Cada um desses livros corresponde a um momento da trajetória de Santo Domingo de Silos: o primeiro começa com seu nascimento e a apresentação das virtudes que caracterizaram sua vida, enfoca ainda seu exílio, resultado direto ao fato do santo não se dobrar aos caprichos do rei Garcia de Nájera que é retratado no poema como uma pessoa sem valores morais; o segundo livro se encerra com sua a morte edificante e com sua entrada no paraíso, em grande parte graças a essa vida cheia de atitudes virtuosas e, por fim, o terceiro livro, engrandece ainda mais seu triunfo, pois Domingo de Silos é estabelecido como a ponte que liga Deus aos homens, transformando-o assim em um verdadeiro intercessor. Podemos observar, então, toda uma gradual ascensão por parte da personagem construída por Gonzalo de Berceo, o que comprova a coerência entre os três livros.

 

Poema-hagiográfico e arcabouço teórico

No decorrer de todo nosso texto, mesmo que não explicitamente, os argumentos para defesa da conceitualização poema-hagiográfico esteve implícita. Julgamos pertinente esmiuçar rapidamente tais argumentos:

1 – Defendemos, por motivos óbvios, que a VSD é um poema, por este apresentar características poéticas, a citar: versos, rimas, etc.

2 – Berceo não se limita apenas a reescrever em língua vernácula um texto latino, mas insere características novas e próprias de seu período;

3 – A VSD e os outros textos de Gonzalo de Berceo em muito se aproximam com o que comumente chamamos de canções de gesta difundidas pelas cortes medievais. Desta forma, Berceo utiliza-se de elementos ditos populares e os insere no ambiente eclesiástico, facilitando assim a propagação das idéias da Igreja, já que a leitura e audição de suas vidas de santos e poemas religiosos em geral se tornariam mais atrativos para sociedade ibérica do século XIII, e por fim,

4 – A aproximação do personagem principal do poema-hagiográfico em questão com o de uma típica canção de gesta o Poema de Mio Cid .

Nosso instrumental teórico para tais hipóteses está calcado nos pressupostos de uma História Cultural conceitualizada pelo historiador francês Roger Chartier, principalmente no tratado intitulado A História Cultural: entre práticas e representações . Para tal autor, deve-se pensar tal braço da disciplina histórica como “a análise do trabalho de representação, isto é, das classificações sociais e conceituais próprias de um tempo ou de um espaço” (CHARTIER, 2002, p. 27).

Desta forma, identificamos o poema-hagiográfico em questão como uma representação específica de um momento da história medieval ibérica. Seu autor, por ser além de clérigo um poeta, apropriou-se de informações culturais e sociais de seu tempo e o fruto de tais apropriações é seu texto carregado de elementos poéticos de seu cotidiano.

 

Santo Domingo de Silos e El Cid

Como salientado no início do presente artigo, tais reflexões aqui expostas correspondem apenas a uma parcela do que tem sido nossa pesquisa no mestrado que tem por objetivo maior a comparação de dois personagens aparentemente distintos: Domingo de Silos e El Cid.

Por se tratarem de textos cujas objetivações são bem claras, o poema-hagiográfico é um texto religioso com objetivos de exemplaridade cristã aos fiéis e a canção de gesta um texto que rememora os feitos de um herói, servindo também para a descontração dos membros da corte, por isso é inserido no que comumente chamamos de literatura cortês, é mister elucidarmos brevemente os motivos que nos induzem à comparação de tais obras.

Georges Duby, em seu livro As Três Ordens ou o Imaginário do Feudalismo , publicado originalmente em julho de 1978, analisa, a partir da conceitualização do sociólogo Georges Dumézil, o que se denominou como “sociedade tripartida”. Estudando a obra de Gerardo de Cambrai e Adalberão de Laon, esse autor conclui que, para esses autores, a sociedade feudal estava dividida em 3 ordens. A dos oratores (clérigos), cuja função era a de representar a vontade de Deus na terra; a dos belatores (cavaleiros), que tinha a responsabilidade de defender os mais debilitados, o que incluia a Igreja e a terceira ordem, a dos laboratores (servos), cuja função era suprimir, através do trabalho, as outras duas ordens.

Sua pesquisa se limitou aos séculos XI e XII na região que hoje definimos como o norte da França. Contudo, foi convertida em um modelo generalizante por grande parte da historiografia brasileira dedicada aos estudos medievais; tal generalização é comumente encontrada nos livros didáticos e paradidáticos e nas questões dos concursos públicos.

Nós defendemos que, ao generalizarmos a análise dubyniana, tendemos a excluir a possibilidade de um enfoque de estudo mais especifico, como é o caso de nossa pesquisa acerca da Península Ibérica, acabando assim por atribuir sempre funções sociais fechadas e sem mobilidade ao clérigo, ao cavaleiro e ao servo.

Vale destacar que em nenhum momento Duby remete a sua análise a todo o medievo, se fixando, como já ressaltamos, apenas a França e por questão de método se dirige a “observação dos sistemas ideológicos” (DUBY, 1982, p. 19). Segundo o autor:

O modelo das três funções sociais, esse postulado, essa evidência cuja existência jamais se provou e que só se evoca com as ligações com uma cosmologia, uma teologia, e claro está, com uma moral que serve de base a uma dessas <formações discursivas polêmicas> que são as ideologias, colocando pois ao serviço de um poder uma imagem simples, ideal, abstrata, da organização social (...). A ideologia, sabemo-lo bem, não é reflexo do vivido, mas um projeto de agir sobre ele (DUBY, 1982, p. 21).

 

Em nossa pesquisa não utilizamos os conceitos de Duby e nem trabalhamos com suas perspectivas. Nós pretendemos defender através de nossa análise que a distância no medievo entre o clérigo e o cavaleiro é deveras tênue, ao menos em Castela no século XIII, que é o ambiente que selecionamos para estudar. Portanto, para tal empreitada analisamos estes dois textos medievais nos quais um clérigo e um cavaleiro, cuja relevância e disposição dentro da sociedade medieval já foi tão bem estudada por vários autores, aparecem como protagonistas.

O elo de comparação é embasado na forma como a masculinidade de tais personagens é desenvolvida e para tal utilizamos a perspectiva dos estudos de Gênero. Por se tratar ainda de um trabalho em curso não temos respostas mais concretas para os argumentos aqui apresentados. Contudo, até o momento, temos, através dos nossos levantamentos, observados inúmeras similitudes entre os personagens em questão.

 

Referências bibliográficas

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CHARTIER, Roger. A história Cultural: Entre Práticas e Representações . 2ª Ed. Tradução de Maria Manuela Galhardo. Lisboa: DIFEL, 2002.

DUBY, Georges. As Três Ordens ou O Imaginário do Feudalismo . Tradução de Maria Helena C. Dias. Lisboa: Estampa, 1982.

FLETCHER, Richard. Em Busca de El Cid . Tradução de Patrícia de Queiroz C. Zimbres. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

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_____. Literatura e História: reflexões a partir de um estudo de caso . In: Redes . Rio de Janeiro. Nº 3 . Set./dez. 1997. Pp. 14-26.

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Daí a importância de um evento como Interdisciplinaridade Poética para nós historiadores que trabalhamos lado a lado com a Literatura.

A partir deste ponto utilizaremos a sigla VSD quando nos referirmos a obra em questão.

VSD , 757 ab .

Um hemistíquio é a metade de um verso.

Em raríssimos casos encontramos cinco versos em uma estrofe, como em VSM 474.

A lembrar: a Vida de Santo Domingo de Silos e o Poema de Mio Cid .

Cf. DUBY, Le Chevalier, La Femme et Le Prêtre . Paris: Hachette, 1981; _____. Guilherme Marechal ou o Melhor Cavaleiro do Mundo . Tradução de Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Graal, 1995; FLORI, Jean. L'Essor de la chevalerie (XI-XII siècle) . Genève: Droz, 1986; SCHMITT, Jean-Calude. Clérigos e leigos. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Org.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval . Bauru/ São Paulo: Edusc/ Imprensa Oficial do Estado, 2002. 2 v. V. 1. p. 237-251, etc.

 

 

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