RESUMO

 

 

 

 

 

 

 

Este artigo levanta algumas questões sobre as relações entre arte e educação e as múltiplas possibilidades que se apresentam a partir de uma interação mais produtiva e que permita entrelaçar as experiências da tradição com um processo necessário de inovação. Ao mesmo tempo especular sobre o ato criativo significa redimensionar o espaço da escola que tem servido como reprodutora cultural agindo como um verdadeiro obstáculo ao crescimento das competências estéticas dos jovens. A educação precisa repensar o seu papel e refletir sobre a necessidade de alterar suas estruturas pedagógicas para penetrar o estético no cotidiano dos indivíduos que se formam sob sua orientação. A arte pode alterar substancialmente o devir da escola se esta se abrir para o novo e compartilhar com os artistas o prazer das grandes descobertas.

 

Palavras-chave: Arte – educação - criatividade

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

EDUCAÇÃO ARTÍSTICA – ENTRE A TRADIÇÃO E A INOVAÇÃO

 

 

Áureo Guilherme Mendonça

Doutor/Universidade Federal Fluminense

 

 

 

Que é o homem antes de a beleza

suscitar-lhe o prazer livre e a forma

serena abrandar-lhe a vida selvagem?

F. Schiller

 

 

 

 

 

Pensemos a princípio nos ready made formulados por Duchamp, no poder de dissolução do tom categórico e imperativo do “isto é arte” como referência ao objeto deslocado. Pensemos ainda nas infinitas possibilidades que se abriram a partir daí para o campo estético, inclusive no âmbito do estremecimento da relação formal do público com o objeto artístico. Na verdade alguma coisa ficou faltando no meio desse trajeto, pois o irrompimento dos ready made não significou uma popularização da arte, já que os eventos artísticos, dentro ou fora dos museus, continuaram sendo algo restrito a um grupo de iniciados, em sua maioria também artistas falando do trabalho de colegas. O campo da arte ficou parecendo um clube cada vez mais fechado, muito distante do sonho de um plano cultural acessível a todos; havia uma linguagem própria, intelectualizada e hiper-conceitual, que distanciava o grande público da possibilidade de exercer uma verdadeira interação com os objetos expostos.

Nesse ponto entramos no terreno árido da questão da educação estética e suas implicações e contradições próprias. No Brasil sabemos que as crianças recebem formação artística desde a educação infantil, ou seja, antes mesmo do processo formal de alfabetização da língua portuguesa, meninos e meninas já se alfabetizaram em arte. Será mesmo? Se assim fosse, o espírito crítico de uma boa parte da nossa população estaria perfeitamente afinado com as manifestações artísticas contemporâneas e sabemos que não é este o caso. Uma primeira questão que podemos levantar diz respeito à própria formação dos educadores que trabalham com arte: quantos tem uma reflexão clara sobre o papel da arte e do artista em nossos dias? E mesmo que muitos tenham essa dimensão, ainda assim esbarram em inúmeros empecilhos sistêmicos que dificultam a realização de um trabalho que amplie o raio de ação estética desses alunos. Educar para a arte implica em evocar uma parte da nossa natureza extremamente reprimida por toda a gama de valores inculcados ao longo de nossa vida. Esse é o aparente paradoxo: a educação artística pressupõe (ou deveria) o deflagrar de um processo de deseducação, ou de reflexão sobre a ordem de coisas que recebemos de modo axiomático e tangencial. Esse procedimento tem uma raiz com a maiêutica socrática, de buscar questionar o nosso comportamento em sua fragilidade argumentativa e assim limpar o campo para que o olhar possa se dirigir a qualquer objeto o mais despido possível dos arraigados preconceitos.

Essa discussão também gira em torno do mito de Dionísio, pois se abrir para a arte, implica em conceber o ato de criar como um fenômeno dionisíaco, mágico, desvelador de realidades até então subterrâneas, submersas e que passam a existir pelo simples fato de que passamos a enxergar para além da nossa visão habitual. Dessa forma, o tratamento pedagógico, aqui, implica em estimular a potencialização do máximo de liberdade e conseqüente desenquadramento. Os seres predispostos a trilharem esse caminho terão como regra básica a ausência de regras. O que confirmamos – daí a dificuldade travada pelos bons professores de arte – é a impossibilidade de desenvolvermos verdadeiros estudos de arte no interior das escolas convencionais, pois isso redundaria em um grande paradoxo: a busca da liberdade no ambiente que mais a cerceia. Para que os estudos de arte pudessem resultar em algum êxito, teríamos que reinventar a escola. Experiências como a Escola da Ponte em Portugal ou da Reggio Emilio na Itália, talvez sejam o que melhor se aproximam dessa noção de liberdade que permite à arte ser entendida em sua própria razão de ser. Isto não quer dizer que não tenhamos tido experiências louváveis em algumas de nossas escolas, com projetos que resultaram em verdadeiras aberturas para o universo da arte, entretanto, esses esforços acabam tendo um efeito muito limitado já que a escola como um todo não acompanha as mudanças propostas pelo grupo envolvido com a arte. “Eu não quero parecer apocalíptica em afirmar que 17 anos de ensino obrigatório não desenvolveu a qualidade estética da arte-educação nas escolas” (Ana Mae Barbosa).

Para engrossar ainda mais esse caldo não podemos esquecer as dificuldades trazidas pela hegemonia da indústria cultural nesse nosso ambiente globalizado e que acabam determinando o que é in e o que é out no campo estético de um modo geral. A educação, formal ou informal, termina por ser influenciada por esse assédio permanente da mídia e que, mais uma vez, limita o âmbito de ação e de verdadeiras descobertas do público em potencial para os eventos de arte. As dificuldades para recuperarmos nossos sentidos embotados por toda a parafernália tecno-midiática já foi relatado por Adorno e Horkheimer, em texto bastante difundido:

 

(...)Quanto mais complicada e mais refinada a aparelhagem social, econômica e científica, para cujo manejo o corpo já há muito foi ajustado pelo sistema de produção, tanto mais empobrecidas as vivências de que ele é capaz.(...) A regressão das massas, de que hoje se fala, nada mais é senão a incapacidade de poder ouvir o imediato com os próprios ouvidos, de poder tocar o intocado com as próprias mãos: a nova forma de ofuscamento que vem substituir as formas míticas superadas.

 

A necessidade de recuperarmos nossas capacidades “de poder ouvir o imediato com os próprios ouvidos, de poder tocar o intocado com as próprias mãos” é o que faz da educação estética não uma panacéia desnecessária, mas um reajuste em nosso próprio ritmo de vida, em nossas múltiplas formas de encararmos o mundo e vivenciá-lo em suas ocultas dimensões. No lugar das “formas míticas superadas” a indústria cultural estabeleceu novos mitos, modernos, tecnológicos, imbuídos de um espírito empreendedor, consumista e estrabicamente progressista. A própria noção de trabalho está eivada dessa mitologia burguesa ao considerar questões como tempo e produtividade vitais para classificar o desempenho das pessoas. A consideração do trabalho artístico como algo marginal e desprovido de uma verdadeira finalidade é a outra face dessa realidade. Quantos artistas conseguem viver do seu próprio trabalho? A noção capitalista de produtividade não inclui o trabalho em arte, o que provoca o seu alheamento por parte do sistema. O produto artístico só é considerado válido quando na ponta do processo passa a ser aceito pelo mercado e auferir lucros, muito mais para as empresas e empresários do que para o próprio artista, por mais que ele possa, nesses casos sempre excepcionais, se beneficiar com a venda de seus CDs, livros, quadros. Buscar compreender todo esse mecanismo de rejeição/assimilação é passo também indispensável para uma educação estética abrangente. O trabalho do artista depende muito mais desse mercado de bens simbólicos do que da sua própria vontade como criador, conforme as palavras de Pierre Bourdieu: “O produtor do “valor da obra de arte” não é o artista, mas o campo de produção enquanto universo de crença que produz o valor da obra de arte como fetiche ao produzir a crença no poder criador do artista”.

 

Dessa forma, educar no campo da arte significa muito mais do que apenas estar aberto às múltiplas formas de expressão, é necessário também ter sensibilidade para acompanhar toda a macroestrutura que, de um modo ou outro, exerce um poder decisivo sobre o resultado final, demonstrando que, para além da qualidade da produção estética passa a ser fundamental o esquema pré-existente no próprio mercado e sua maior ou menor capacidade de provocar a direção do ato criador. Alguma coisa mais próxima do que poderíamos chamar isenção ou autonomia do artista depende do grau de consciência que se tenha desse esquema. Ser artista é saber evocar os mecanismos que possibilitam o processo de desconstrução dessas estruturas dominantes, cerceá-las, impor limites à sua atuação e aí sim, estabelecer um verdadeiro espaço, poiético, de criação. Qualquer projeto pedagógico que pense, de fato, na noção tão prosaica da figura do “cidadão pleno”, deveria se preocupar em incluir em seus debates essas questões e como processa-las, de tal forma, que toda a comunidade escolar seja levada a agir no sentido de que a pretensa “plenitude” seja, pelo menos, parcialmente alcançada.

Nesse ponto retomamos a discussão inicial: Marcel Duchamp e os ready mades. Falamos de um distanciamento entre o fato e o ato, pois se o estatuto da arte, em seus moldes renascentistas estava sendo desmontado, a nova configuração não parecia ainda atender aos anseios de uma arte mais acessível à maioria das pessoas. E o impasse que se estabelece naquele momento e que, de certa forma, ainda somos reféns, diz respeito ao que podemos entender por “acessível”. Significaria facilitar o entendimento conceitual de uma obra que foge da possibilidade do próprio conceito? Ou mais certo seria realmente propiciar o espaço do enigma para provocar no público a necessidade de refletir sobre o que vê, o que pensa que vê e principalmente sobre o que ainda não vê? Quando falamos em educar para a arte temos, na verdade, que movimentar as partes cegas dos nossos sentidos, estimulando sempre o olhar transgressor, aquele que é capaz de romper os limites do senso comum e penetrar nas veredas subterrâneas da vida. Nesse sentido a escola convencional, em sua quase totalidade, tem prestado um grande desserviço à causa estética, formando para o mercado pessoas incapazes de um julgamento arguto e crítico, destituídas da sensibilidade necessária para ver, ouvir, cheirar e tatear o outro lado de tudo o que sempre lhe foi apresentado. Aqueles que chegaram a esse outro patamar da existência o alcançaram, na maioria das vezes, por seus próprios caminhos, de forma autodidata, ou seja, sem interferência da escola.

Ao examinarmos, entretanto, alguns documentos oficiais que tratam do ensino da arte no país, como os Parâmetros Curriculares Nacionais por exemplo, temos a impressão que estamos muito próximos de resolver essas questões, pois, por mais que esses textos possam receber restrições, ainda assim eles representam uma visão amplificada e renovada do campo estético.

 

O aluno desenvolve sua cultura de arte fazendo, conhecendo e apreciando produções artísticas, que são ações que integram o perceber, o pensar, o aprender, o recordar, o imaginar, o sentir, o expressar, o comunicar. A realização de trabalhos pessoais, assim como a apreciação de seus trabalhos, os dos colegas e a produção de artistas, se dá mediante a elaboração de idéias, sensações, hipóteses e esquemas pessoais que o aluno vai estruturando e transformando, ao interagir com os diversos conteúdos de arte manifestados nesse processo dialógico.

 

A grande questão não reside no plano do discurso, mas no da efetivação de uma práxis que provoque a transgressão de hábitos consuetudinários e se abra para sua natureza redentora. Não tenho dúvidas de que existe um forte substrato social clamando por mudanças no meio educacional brasileiro – penso que o mesmo movimento ocorre em muitos outros países – mas, os passos concretos na direção de verdadeiras mudanças tem sido muito tímidos. Na verdade os sentimentos da maioria dos nossos educadores vivem em grande conflito, e a sua parte mais conservadora tem prevalecido na hora das tomadas de decisão.

Sabemos que esse se dar para a arte não ocorre apenas no plano formal do sistema escolar, mas se constrói também, informalmente, nos diversos espaços ocupados no dia-a-dia por cada um de nós: a família, o trabalho, o bairro, as associações que participamos, as trocas de informações com amigos e parentes, os livros e os artigos sobre o tema, todos esses elementos podem ser vitais para alterar nossas concepções estéticas e exercer alguma influência sobre o ambiente escolar. Afinal de contas, sabemos que o ato de pensar traz em si mesmo o impulso capaz de nos projetar para além do nosso círculo habitual, reforçando as estruturas de nossa condição humana. Quando insistimos no destaque ao sistema escolar é porque o consideramos o espaço privilegiado para irromper com um processo mais acelerado de mudanças e ficamos frustrados com o tom vacilante como as unidades educacionais tem praticado a arte. Assim chegamos a uma prospectiva em que a escola parece que virá a reboque do processo quando deveria ser sua principal condutora. O caminho não é simples, pois a arte não tem um papel diretamente pedagógico, a ação que exerce sobre as pessoas é de outra ordem, mais complexa, no entanto muito mais eficaz que os procedimentos didáticos interpostos no processo escolar convencional. Por isso mesmo faz-se necessário abrir o ambiente escolar para esse espaço estético intrigante e fértil, para que não fiquemos com a sensação parva de que somos Sísifos contemporâneos a transportar as mesmas palavras que rolam depois, ad infinitum, sem nenhum destino. Necessitamos nos empenhar para reconhecer na arte a possibilidade de desvelamento do mundo como na fala de Argan: “ A revolta do artista não tem programas nem perspectivas de êxito: dado que o sistema não ameaça apenas a liberdade, mas a própria existência do indivíduo, a arte é o último sinal da existência, do seu fim”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA:

 

 

 

1. ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

  1. ADORNO, Theodor W. Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

•  ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.

•  ARGAN, Giulio Carlo. Arte e crítica de arte. Lisboa: Estampa, 1988.

•  BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Rio de Janeiro: Eldorado, s/d.

•  BARBOSA, Ana Mae. Arte educação no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1986.

•  __________. Tópicos utópicos. Belo Horizonte: C/Arte, 1998.

•  BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

•  DUVE, Thierry de. Kant after Duchamp. Londres: The Mit Press, 1997.

•  GUATARRI, Félix. Caosmose, um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: Edições 34, 1992.

•  SCHILLER, Friedrich. A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras, 1990.

 

 

 

 

 

 

 

SCHILLER, Friedrich., pág. 123.

ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max., pág. 47.

BOURDIEU, Pierre. , pág. 259.

ARTE in Parâmetros Curriculares Nacionais.

ARGAN, Giulio Carlo, pág. 53.

 

 

 

 

 

 

 

Referências sobre o autor:

Áureo Guilherme Mendonça

Professor de Teoria e Crítica de Arte na Universidade Federal Fluminense.

Doutor em Literatura Comparada pela UFRJ e Mestre em História e Crítica de Arte pela Escola de Belas Artes (UFRJ).

 

 

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