INUTENSÍLIOS POÉTICO-TELÚRICOS DE MANOEL DE BARROS

 

André Luiz Portela Martins Filho (Mestrando em Literatura Brasileira – UFRJ).

 

 

Um encontro como este, que se propõe a discutir de forma interdisciplinar o eixo temático corpo-mundo-terra, é de fundamental importância para todas as áreas do pensamento. Porém, para aqueles que direcionam seus estudos para a poesia, a proposta deste evento entra em contato direto com o vigor gerativo da poesia: a linguagem. A potência que articula corpo, mundo e terra, em poesia, é a linguagem. Dificilmente se poderá fugir deste eixo.

Uma vez feita esta observação, convém nos situarmos. Afinal, que corpo, mundo e terra são esses? Para localizar a questão, em concordância com o tema sugerido para a presente sessão de diálogos interdisciplinares (História e Contemporaneidade), é necessário determinar nosso tempo como o da contemporaneidade, e nossa modernidade como história do tempo. Em outras palavras, aproveitando alguns versos de Drummond para delimitar nosso enfoque, “o tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.” (Drummond, 2004: p.158).

O discurso hodierno é prescrito pelos ditames de um mundo pragmático. As palavras de ordem do dia são praticidade, produtividade, lucratividade, objetividade, finalidade, utilidade, etc. A ordem prática das coisas segue a lógica cultural do imperativo sistema político-econômico convencionalmente chamado de nova ordem mundial. Trata-se de um novo momento do capital, a saber, o capitalismo tardio, estágio em que a cultura se transformou em bem de mercado, fomentando a sociedade de consumo. O mundo prático na Contemporaneidade da Pragmática se escamoteou sob o nome de Globalização. O domínio da técnica sobre o pensamento resultou numa instrumentalização pragmática do conhecimento. A reboque, a História cedeu lugar à historiografia. A universalização da técnica e, principalmente, da cultura se tornou responsável pelo enfraquecimento das identidades culturais de cada povo. Ainda assim, é preciso ter o cuidado de não adotar o viés cismado de uma crítica apocalíptica, e dizer com Fredric Jameson:

 

Poder-se-ia pensar que o mundo dos fones de ouvido e de Andy Warhol, dos fundamentalistas e da Aids, dos aparelhos de ginástica e da MTV, dos yuppies e de livros sobre o pós-modernismo, cabelos punk e cortes escovinha estilo anos 50, a “perda da historicidade” e o éloge da esquizofrenia, as mídias e a obsessão com o cálcio e o colesterol, a lógica do “choque do futuro” e os esquadrões contra-insurreição como novos tipos de grupos sociais teriam todas as qualificações para serem considerados bem decadentes aos olhos de qualquer observador marciano de bom senso; mas é piegas falar assim (...). (Jameson, 2004: p.375).

Mas, afinal, como o homem que habita o mundo contemporâneo pode ignorar as determinações do cotidiano, da vida em sociedade, onde desempenha uma função histórica, como pode fugir da lógica pragmática da contemporaneidade? Uma das possibilidades para esta questão seria a retomada da diferenciação entre mundo e terra. O professor Emmanuel Carneiro Leão, no capítulo intitulado “A técnica e o mundo no pensamento da terra”, do segundo volume de Aprendendo a pensar , ensina-nos:

 

A Terra é mais antiga do que o homem e a história. Por isso a terra não pode ter nem lugar nem data nem certidão de nascimento. O Homem é mais antigo do que o mundo, a técnica e a tecnologia. O mundo, a técnica e a tecnologia têm lugar e data marcada, possuem certidão de nascimento. Por isso a técnica pretende submeter o homem com a tecnologia, dirigindo a história e substituindo a terra pelo mundo. (Leão, 2000: p.09).

 

Mundo é ordenação. O homem, filho da terra, nela intervém subvertendo-a à ordem, convertendo-a em mundo. Portanto, é na terra – uma vez que origem – que se pode encontrar um refúgio contra o aprisionamento imposto pelos discursos do mundo. Ainda com Carneiro Leão: “o mundo da técnica total só sabe mesmo produzir e nada mais. (...) No mundo sem terra, tudo ou é produto, ou é consumo, ou é produção.” (Leão, 2000: p.13). Há de se resgatar a vigência da terra e da linguagem para que seja possível o viço originário da criação. O discurso pragmático da técnica, tão útil para a contemporaneidade, torna-se inútil e insuficiente quando comparado ao discurso poético.

A esta altura, ao já termos mencionado palavras como terra, linguagem, poesia, origem, pragmática, utilidade e inutilidade, torna-se quase que improvável não lembrar de Manoel de Barros. Alheia à lógica mercadológica do capitalismo tardio e num sentido diametralmente oposto ao do discurso pragmático, a poesia deste poeta encontra na terra e na linguagem as origens de um pensamento poético. A comunhão íntima com a terra e a busca pela palavra em seu nascedouro, o “feto do verbo” – como se lê em um de seus versos –, confere a poesia manoelina um caráter cosmogônico. O retorno às origens é responsável pelo vir-a-ser de seus objetos poéticos. A palavra poética é instauradora. Em Manoel de Barros, encontra suas origens dentro e antes, em plumagens e infâncias que dormem num caos a ser cosmificado. O vir-a-ser deste cosmos, no caso da linguagem, é, em si, a própria constituição da poesia.

Não apenas na terra e na linguagem encontra Manoel de Barros fontes para sua poesia. As raízes da poesia manoelina estão nas infâncias geradoras da terra, da memória, da infância, das miudezas e da linguagem. A infância anônima é um manancial de imaginação e criatividade; é cósmica, pois está sob o signo do encantamento. Na busca pelo berço nascedouro das palavras e de todo um cosmos, uma ontologia poética transpõe os limites da lógica para encantar as coisas – e trazê-las ao ser. Assim, a lógica pragmática instaurada pelo mundo é posta abaixo. Valem agora as possibilidades infinitas da terra. O útil e prático sofre mudanças, é descartado. Urge explorar o efeito poético latente dentro das inutilidades, dentro até mesmo do nada. O notável Livro sobre nada , de 1996, é inaugurado pelo seguinte texto, intitulado “Pretexto”:

 

O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada. Foi o que escreveu Flaubert a uma sua amiga em 1852. Li nas Cartas exemplares organizadas por Duda Machado. Ali se vê que o nada de Flaubert não seria o nada existencial, o nada metafísico. Ele queria um livro que não tem quase tema e se sustente só pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora. (Barros, 2004: p.07).

 

Fazer coisas deústeis. A utilidade canônica das coisas é desabilitada diante da re-inauguração de sentido do inútil. Em Matéria de poesia , de 1974, pode-se ler o seguinte verso: “As coisas sem importância são bens de poesia” (Barros, 1974: p.18). Como já se mencionou anteriormente a cultura levada com conta como bem de consumo, é lícito entender que as “desimportâncias” compõem o capital poético de Manoel de Barros. No mesmo poema do qual se extraiu o verso citado, pode-se ler: “Tudo aquilo que a nossa/ Civilização rejeita, pisa e mija em cima/ Serve para poesia” (Barros, 1974: p.17). O tom é quase debochado, porém encerra uma grave crítica: a historiografia dominando a História e autorizada pelo discurso pragmático da técnica. A idéia íntima destes versos parece ser a mesma que se pode encontrar na questão fundamental de toda a obra heideggeriana, e que move seu pensamento: o esquecimento do Ser. Note-se que nossas observações não se tratam de uma crítica baseada em impressões, mas de uma leitura autorizada por elementos textuais. O método hermenêutico vale-se principalmente da poética autorizada pela metapoesia manoelina.

É admirável o modo como a poesia de Manoel de Barros se mantém fiel às forças germinativas da terra. Não há sequer um único momento em que sua poesia se distancie da terra para privilegiar o mundo. Curiosamente, também não se pode encontrar nesta poesia os episódios geográfico-temporais da História humana. Desde seu primeiro livro, Poemas concebidos sem pecado , de 1937, até o mais recente, Memórias inventadas: a segunda infância , de 2006, não há fuga da terra para privilegiar a historiografia do mundo. Se pensarmos em um Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, expoente do que melhor se produziu em poesia de língua portuguesa, podem-se encontrar constantes referências à ordem e desordem do mundo: as guerras, a fome, as angústias, o capitalismo, etc. João Cabral de Melo Neto, por exemplo, embora freqüente o nordeste ao longo de sua obra, não deixa de incorporar aos seus versos alguns episódios históricos. E demais poetas, inúmeros. Principalmente os modernistas, cujos projetos estético e ideológico se ocuparam da questão do nacionalismo, tomando como bandeira a língua – como lembra Mário de Andrade em Aspectos da literatura brasileira . Manoel de Barros, portanto, encontra seu lugar no panorama literário brasileiro na medida em que se diferencia dos demais poetas. Sua identidade, portanto, é com a terra, é com o ínfimo, com as insignificâncias, com o nada poético.

A poética da desutilidade está presente em toda a sua obra. São constantes as referências às coisas miúdas ou “desimportantes” e seu potencial poético. Fiquemos com os exemplos que se encontram no Livro sobre nada . Há nele um poema que ilustra bem o fazer poético de Manoel de Barros, abordando não apenas o papel da inutilidade, mas também o porquê dessa escolha, e de que maneira trabalha com as imagens em seus versos. Trata-se de poema intitulado pelo número “8”:

Nasci para administrar o à-toa

o em vão

o inútil.

Pertenço de fazer imagens.

Opero por semelhanças.

Retiro semelhanças de pessoas com árvores

de pessoas com rãs

de pessoas com pedras

etc etc.

Retiro semelhanças de árvores comigo.

Não tenho habilidade para clarezas.

Preciso de obter sabedoria vegetal.

(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã

no talo.)

E quando esteja apropriado para pedra, terei também

sabedoria mineral. (Barros, 2004: p.51).

 

As noções produtivas da atividade administrativa entram em contraste com a matéria que é administrada: o à-toa, o vão, o inútil. Administra o patrimônio rejeitado pela civilização, de aplicabilidade impensável no mundo da pragmática. Ou ainda, como um catador de pregos que se encanta com a nova funcionalidade dos objetos que catava, no poema “O catador”, de Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001), e que se pode perceber pela leitura dos seguintes versos: “Eles não exercem mais a função de pregar./ São patrimônios inúteis da humanidade.” (Barros, 2001: p.43).

A riqueza e originalidade das imagens poéticas da poesia manoelina nos chamam a atenção. Em um primeiro contato com sua obra, chegam a causar estranheza. Há, por vezes, atribuições de sentidos e características a uma determinada coisa/ser pertencentes a outro paradigma de coisas/seres, de modo que algumas atribuições, de tão novas e impensáveis num discurso dominado pela lógica, acabam sendo descartadas pelo leitor. Dizem os versos do poema citado anteriormente que as semelhanças e comparações podem ocorrer entre elementos incomparáveis: semelhanças de pessoas com árvores, pessoas com rãs, pessoas com pedras. O uso da imagem se articula com o artifício da imaginação na poesia. Enquanto uma imagem poética pode ser o germe de um mundo, a imaginação poética tem sua importância na medida em que existe como processo criador – e por vezes instaurador da própria imagem.

Ora, é imanente à poesia a função poética da língua. Não se trata da linguagem corriqueira, prática e comunicativa das situações cotidianas do mundo. Aliás, como já se afirmou, não é uma poesia sobre o mundo, mas a partir da terra. A sabedoria, legado cartesiano de nossa era, é, na poesia de Manoel de Barros, a sabedoria das coisas não-pensadas, da intimidade das coisas, do encantamento poético-funcional que as palavras, imagens e construções frasais adquirem no inaugurar-se de sua poesia. E a importância das coisas e o encantamento que elas proporcionam podem ser simples, no seguinte poema, também de Tratado geral das grandezas do ínfimo , intitulado “Sobre importâncias”:

 

Uma rã se achava importante

Porque o rio passava nas suas margens.

O rio não teria grande importância para a rã

Porque era o rio que estava ao pé dela.

Pois Pois.

Para um artista aquele ramo de luz sobre uma lata

desterrada no canto de uma rua, talvez para um

fotógrafo, aquele pingo de sol na lata seja mais

importante do que o esplendor do sol nos oceanos.

Pois Pois.

Em Roma, o que mais me chamou atenção foi um

prédio que ficava em frente das pombas.

O prédio era de estilo bizantino do século IX.

Colosso!

Mas eu achei as pombas mais importantes do que o

prédio.

Agora, hoje, eu vi um sabiá pousando na Cordilheira

dos Andes.

Achei o sabiá mais importante do que a Cordilheira

dos Andes.

O pessoal falou: seu olhar é distorcido.

Eu, por certo, não saberei medir a importância das

coisas: alguém sabe?

Eu só queria construir nadeiras para botar nas

minhas palavras. (Barros, 2001, p.35).

É o poder do encantamento. Uma coisa não vale por sua funcionalidade – ao menos não por sua função canônica, preconizada pela lógica do mundo. Num âmbito de cosmo-gênese, deve-se pensar num rearranjo dos elementos poéticos. Não se pode esperar de uma obra verdadeiramente poética que ela não reestruture a sintaxe e a semântica das coisas, dos sentidos e do real. Na poesia manoelina, todo o entorno extralingüístico é transcriado num real reorganizado, o que possibilita ao homem praticar as características de um pássaro, árvore, pedra ou coisa desimportante qualquer.

Em nenhuma outra poesia a natureza, os pássaros, os pregos, os ciscos, os nadas etc. adquirem uma dimensão ôntica como na de Manoel de Barros. Como o canto de Orfeu, o encanto da poesia manoelina desperta a vida que fervilha enraizada nos subsolos de suas existências. O deslumbramento das origens multiplica a vida nas coisas, exilando-se da morada histórico-racionalista do homem.

O princípio criativo-imaginativo enforma imagens que transformam o universo dos seres em um cosmos encantado, à maneira de uma flauta órfica. A palavra deslumbrada, na poesia manoelina, é o veículo do vir-a-ser do ser das coisas. Com isso, amplifica-se o valor dos ínfimos e desimportantes entes, uma vez que adquirem o status vivaz do ser.

Uma vez discutida a importância dos inutensílios poético-telúricos de Manoel de Barros e o papel do encantamento em sua poesia, torna-se inevitável um balanço final. Em derradeira afronta ao mundo da técnica e da ciência, pode-se por fim aproveitar outro poema do Livro sobre nada , intitulado pelo número “9”:

 

A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um

sabiá

mas não pode medir seus encantos.

A ciência não pode calcular quantos cavalos de força

existem

nos encantos de um sabiá.

 

Quem acumula muita informação perde o condão de

adivinhar: divinare.

 

Os sabiás divinam. (Barros, 2004: p.54).

 

Não há instrumento para aferição do poético. As apelações imperativas do discurso da técnica e da tecnologia não são capazes de transpor os limites de suas regras. Os exaustivos esforços de auto-superação não permitem à técnica a sensibilidade de reparar nas miudezas, nas simplicidades. Não o domínio da ciência técnica, mas a consciência criadora da poesia é capaz de fornecer o entendimento que verte da palavra poética. O pio do sabiá tem a potência genesíaca do encanto. Tem a magia reveladora do divino, a latência vital da palavra inteligível pela sensibilidade. O acúmulo de informação é uma exigência do mundo da técnica. Para se aproximar da divinação da poesia, é preciso “desacumular” conhecimento, “desaber”. Ou, ainda, captar a dinâmica ctônica da poesia da terra, manancial das forças germinativas.

Manoel de Barros é poeta da terra. Os temas de sua poesia ignoram a lógica mercadológica do mundo contemporâneo. É, portanto, criador que se ocupa das forças primitivas da Linguagem, que, em eterna gestação, participa da brotação órfica das coisas. Sobre a técnica num mundo sem terra, uma última citação, de Emmanuel Carneiro Leão, se faz necessária:

 

Um pouco por toda parte começa a grassar uma desconfiança nas tecnocracias e na dominação da técnica. (...) Decisivo para tão crescente desconfiança é sobretudo o fato de viverem enquanto cientistas e técnicos, num mundo sem terra, onde a Linguagem da natureza e a realidade do mito perderam quase toda a autoridade, num mundo que já não necessita e nem mesmo é capaz de falar uma língua natural. (...) Enquanto vivermos, pensarmos e agirmos na terra, só faz sentido o que pudermos falar uns com os outros, o que puder receber uma significação na e da Linguagem. Assim o esvaziamento das línguas naturais pe a primeira conjuntura que, num mundo da técnica total, ameaça a Linguagem da terra. (Leão, 2000: p.12-13).

 

Não se trata de vender a terra como salvação para o mundo. O mundo sempre será a ordenação privilegiada pelo homem. No entanto, há de se resgatar a força poética que reside na terra – inegavelmente mais rica do que as forças usurpadoras que o mundo foi capaz de produzir. A esquizofrenia da técnica, sim, deve ser combatida. A lógica do mundo da técnica tem como finalidade última o eixo produção-consumo-lucro – e nele se encerra. Enquanto a magia terra é vária, em constante brotação de encantamento e poesia – ao ponto de ser possível sentir no pio do sabiá o fio do divino.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética . 54ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.

BARROS, Manoel de. Livro sobre nada .11ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.

____. Matéria de poesia . Rio de Janeiro: Livraria São José, 1974.

____. Tratado geral das grandezas do ínfimo . Rio de Janeiro: Record, 2001.

JAMESON, Fredric. Pós-modernismo – a lógica cultural do capitalismo tardio . 2ª. ed. São Paulo: Ática, 2004.

LEÃO, Emmanuel Carneiro. “A técnica e o mundo no pensamento da terra”. In:____. Aprendendo a pensar – vol. II. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

 

 

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