O ENTERRO DO CORPO : QUESTIONANDO MORTE COMO FIM

 

 

André Vinicius Lira Costa

Graduando em Letras-Português/ Literaturas

FL/UFRJ

 

 

“ Quanto mais apaixonada a pessoa , mais contraditória e próxima da morte ”

- Prof. Dr. Manuel Antônio de Castro

 

 

Considerações Iniciais

 

O Corpo e a Morte são duas questões permanentes do homem . As diversas áreas do conhecimento , porque por ele se articulam, nos dão respostas geralmente satisfatórias. Um certo funcionamento de mundo nos é oferecido, com evidências e explicações . De pronto , as tomamos como nossas e emulamos tal raciocínio , o estendendo para nossas mais diversas realizações . O mundo torna-se mundano , sem que com ele obtenhamos satisfação . Felizmente , o sagrado e o inesperado sempre se mostram, e não precisamos explicar algo para que esse algo seja o que ele é. Sendo o que ele é, nós podemos explicá-lo. No caso do homem , contudo , pode ser que o que ele é seja encaminhado numa vida explicativa . Ainda assim , não vai deixar de ser confrontado pelas questões do Corpo e da Morte , mesmo que tente abortá-las.

Geralmente , quando alguma figura importante de nossa sociedade morre, é noticiado pelos meios de comunicação que “o corpo de [ alguém ] será enterrado (...)”. Lido de uma maneira apressada , esse enunciado não causa estranheza : já nos é conhecido . É porque já estamos acostumados com uma determinada leitura do Corpo implantada pelo conhecimento técnico : “ a estrutura física de um organismo vivo (esp. o homem e o animal ) englobando suas funções fisiológicas; parte concreta , material dos seres ” . O corpo é assim a dimensão material de uma pessoa . Mas ele ainda não dá conta da pessoa : quando esta morre, supõe-se que algo lhe esvai, algo que possuía e perdeu, configurando seu estado de morta . O que é esse algo ? Tradicionalmente, é dito ser a alma ou a consciência , o aspecto permanente e abstrato que confere vida e forma a uma matéria . A pessoa seria dessas duas metades constituída. Ela não pode existir sem a complementação dessas duas instâncias . Sua existência se deve à correspondência de corpo e alma . Mas a alma sempre foi interpretada como o fundamento e essência do corpo , assim o cerne da identidade . É nessa articulação que joga as idéias tradicionais cristãs de pós-morte, assim como a dita “ ignorância ” de quem não segue um ou outro caminho de “ iluminação ”.

Mas o que há entre corpo e alma ? Se o corpo é nossa parcela física , onde está a outra ? Não seria a alma uma abstração do corpo ?

Consideramos a alma como uma determinada experiência do sagrado em sua relação com a identidade , e uma bastante válida : basta ver sua ampla aceitação . É difícil refutar sua existência no plano estritamente da Morte , porque é algo a que nunca teremos acesso , só em nossa própria Morte . Exatamente por isso , por outro lado , todos os argumentos pós-mortais são arbitrários e especulativos , enquanto os mortais não a conseguem distinguir e separar do corpo . De qualquer forma , não terão corpo e alma uma referência em comum , não estarão conjugados na vida ?

A Morte e o Mito

 

A Ilíada de Homero nos dá uma outra vivência do corpo , devido à proximidade que possui a um pensamento e mundivisão pelos mitos e deuses agraciados. As diversas separações feitas posteriormente , como o psicológico e o somático , na Guerra de Tróia se tornariam confusas. A palavra yuxh& ainda designava a respiração , o sopro de vida em que se sediavam os vivos . Daí que a palavra , assim como sw~ma , ou o corpo do caído , só eram cantadas na morte de algum guerreiro , pois se cria inadequada fazer essa referência aos vivos . É que na Ilíada não vemos o corpo do homem se extinguindo nessas duas dimensões . O sopro que deixa o corpo dos heróis é uma força poética , o constante ir-e-vir do ar , que nos vivifica. Mas ainda é mais : é a tensão em que deixa de habitar o homem , é o seu lugar-corpo. Ainda na Ilíada, nem sw~ma , nem yuxh& possuíam entendimento , ou fre&nev , isto é, a capacidade de responder e cor-responder aos apelos e motivações que se põem a eles . Outra vez , a tensão em que essas duas dimensões se situavam, em que o homem não era nem uma coisa nem outra , mas uma estranha eclosão de ambos num princípio de ação , poi&hsiv. Ele era algo de entre . Mas se deve sublinhar que é um entre distinto do entre corpo e alma a que estamos acostumados, não só pelas diferentes razões arroladas acima , mas também pela sutileza de que esse “ isto ” que originou posteriormente alma , em Homero, é um algo do corpo , é o corpo sendo o que é no simples desempenho respiratório – desempenho este que não é apenas uma função orgânica , mas que permeia todos os aspectos do homem , já que se situa em algo de mais radical : seu “ motor ” de Paixão , seu constante velar e desvelar-se, que também é um “ motor ” de Morte . Quando o conflito entre essas duas forças termina, e o homem faz a última travessia , ainda em Homero, ele atravessa, mas permanece onde estava. Pela ausência da idéia de transcendência , o grego arcaico não atribuía a algo de outro o fator de sua identidade , como a uma alma que parte , mas ao próprio corpo da pessoa , embora não mais tensional e ativo .

Porém, para Hades se dirigia uma imagem do morto , um eco , um aspecto . Hades é o reino e o deus dos mortos , em sua mansão eles habitam. Mas como podem habitar o Hades e ainda permanecer na Terra ? Lembremos que por Terra zelam Hades, Posêidon e Zeus. Em sua superfície há a disputa entre os três . Há a disputa dos deuses em todo e enquanto todo homem , para defini-lo enquanto tal . No pensar mítico não há essa contradição , assim como não há contradição entre morrer na Terra e viver no Hades, e enquanto Terra gerar outros filhos . Mas somente na passagem a Hades o homem adquire sua plenitude , ou o término dessa disputa entre Morte e Paixão , a que chamaríamos de vida . Isso não quer dizer , contudo , que Hades era um lugar inacessível . Em diversos mitos , os homens lá faziam incursões para trazer conhecimento ou auxílio . Da mesma forma operavam os oráculos , ainda que não buscassem suas respostas no Hades, adivinhavam na concordância com o divino , o fantástico . Além disso, a possibilidade de ida ao Hades estava sempre presente , ou ainda à espreita .

Qa&natov , Morte , que aterrorizava os homens , era filho da Noite e irmão de Sono . Com Eros disputava a corporeidade e mortalidade de todo mortal . A genealogia dos deuses é preciosa , conforme prescinde de um critério tanto cronológico quanto lógico . Em seu ensaio “ Mundo como função das Musas ”, Jaa Torrano nos mostra exatamente essa ambigüidade mito-poética. Zeus, Memória e as Musas constituem um ao outro de tal forma que a precedência dos primeiros sobre as últimas é impossível e incoerente . Mas mesmo assim afirmam-se as Musas serem filhas de Zeus e Memória , sem problema algum . Da mesma forma , Morte só é Morte porque se manifesta no seu irmão Sono e na Noite : precisa poder transitar por essas instâncias para estar sempre no zelo do humano do homem , ou entre seu ser e não-ser, Morte e Paixão . Da mesma forma , Morte é meio-irmão de Dia , mas é irmão de Amizade . As três Moirai também são filhas da Noite e irmãs de Morte . Nesse sentido , o mito nos mostra o domínio na Morte na delimitação do quinhão de cada um , homem ou imortal , o que cabia às Moirai. É nesse sentido também que Hades é um deus olímpico , mas não está no Monte Olimpo . Sua vigência é primordial para que o Olimpo seja o que ele é, embora só possa viger de sua maneira , isto é: na escuridão , abaixo da Terra , cuidando dos que já se foram, com seu elmo que não o permite ser visto . Habitar o Olimpo por debaixo é ainda habitar o Olimpo e sustentá-lo ( sustentação abismal ). É assim o seu reinado . Por esse mesmo motivo , não havia nenhum culto ou oráculo de Hades. Os mortais não poderiam esperar se aproximar do mais i-mortal dos imortais . A não-menção de seu nome e alguns cuidados rituais eram característicos para não o pro-vocar, o chamar , mas ainda , como os rituais geralmente sugerem, não tentam superar uma distância , mas afirmá-la. Hades é o terrível senhor dos mortos , e é o que faz dos homens o que são , não-habitantes de Hades. Quando o habitam, já deixaram de ser homens , já deixaram de ser : encontraram seu repouso no morto , no não-ser.

Ainda há algo mais de ambíguo em Hades: Perséfone. Filha de Deméter, ela faz florescer a partir do sombrio : de lá traz as sementes das estações de fartura (Hades-Terra em seu velamento engendram as abundâncias de tudo que se cria ). A ambigüidade entre a presença de Perséfone no Hades e a de Deméter na Terra , sendo em verdade a mesma divindade , torna ainda mais curiosa a relação entre as dimensões do mundo mítico. Como uma jovem próxima dos campos e da agricultura traz a mudança a partir do obscuro e do reino dos mortos ? Como dizíamos, essas dimensões míticas estão em constante diálogo . Para que a agricultura e o florescimento se façam, assim como tudo que é e age poeticamente, é preciso não só uma referência , uma delimitação própria de uma força mortal e obscura , mas também a concretização das possibilidades de florescimento dadas pelo vazio , pelas cinzas , pelas questões . Mais uma vez , vemos uma dimensão mortal e mortífera próxima daquilo que vive, com ele se confundindo.

 

A Morte , o guerreiro , o poeta e o pensador

 

Ainda assim , a morte não era vista como uma negatividade absoluta . O conhecimento grego de seu lugar enquanto mortais , diferentemente dos deuses imortais , davam-lhes uma certa conformação a uma ordem de mundo . Se os deuses constituíam a dimensão do mundo grego de então , inclusive de cada um de seus participantes, restava apenas respeitá-los. A morte ainda constituía um pesar , uma perda , motivo pelo qual , também na Ilíada, vemos um Aquiles irado pela morte de seu amigo Pátroclo, morte com a qual Aquiles decide responder com mais morte , retornando para a guerra . A volta de Aquiles para a guerra significa o abraço da parte mais destrutiva e triste da morte , por Aquiles, e conseqüentemente de sua condição de homem-guerreiro. Foi preciso a Morte se manifestar próximo a Aquiles o suficiente para lhe refletir sua identidade , num aceno fantasmagórico de sua própria Morte . Apaixonado – pela Morte –, ele abre mão de um certo orgulho aristocrático e parte em busca de si mesmo , a cada morte que ele causava, era um Pátroclo revivido e também um certo Aquiles morto . Guerrear é jogar ambiguamente com a Morte .

A paixão mortal de Aquiles, guerreiro , não é diferente da ação do pensador ou do poeta . A figura do guerreiro-poeta era de relevância na mítica irlandesa, por exemplo . Isso se dá pelas instâncias distintas de Morte e Paixão em que se lançam esses homens . A cada profundo mergulho nas questões que jorram dos pescoços , das ânforas de vinho ou das liras , esses homens se fazem Corpo , numa sociedade que assim os reverenciava. O canto de lembrança-esquecimento é o mesmo de sobrevivência-morte, é o mesmo de ser-não-ser. Um canto da guerra tão apaixonadamente descrito como a Ilíada não teria se forjado caso não houvesse uma consonância com a Morte , o perigo , o limiar . Os próprios limites do homem e de cada homem que um tipo de experienciação radical como a guerra pode propiciar conhecer .

Dessa forma , é cuidando e se aproximando da Morte – e da Paixão – que temos a possibilidade de trilhar nosso percurso de vida em suas mais diferentes possibilidades. Questionando as dimensões mundanas em que nos acostumamos a submeter nossas vidas , dando àquelas a medida certa – nossa – de Morte e Paixão , somos capazes de nos aproximarmos de nós mesmos e do outro , oferecendo um novo sentido às relações interpessoais de hoje .

 

A Morte e a pós-modernidade

 

Por que urge esse novo sentido ? É um dos motivos pelo qual fomos instigados a rever a Morte : ela tanto se ausenta, como se torna óbvia . O que isso quer dizer ? Quer dizer que deixamos de amar a Morte , amar a dor . Tudo que fazemos, ainda que poético (sendo sempre de maneira inaugural ), perde parte de seu brilho , na medida em que abrimos mão dessa proveniência na Morte e na mudança , assim como de nós mesmos . Quando supomos saber , conhecer e controlar nossos destinos e objetivos de vida , tão simples quanto assinar uma carteira de trabalho , assinamos nossa perdição , quanto mais abraçamos as certezas . Abraçar as certezas só evidencia a necessidade da Morte . Ela instaura a dúvida e o questionamento , mas só para quem está aberto para tal . O que é a certeza senão os livros , os apartamentos , os computadores , o casamento , o dinheiro ? São entes da natureza , como tudo . Assim o sendo, estão sujeitos à Morte e mudança , são poéticos. A certeza não é sagrada . De uma certa forma , até deveria ser : sendo uma promessa de perfeição e plenitude a que o homem vivo não tem acesso , é algo alheio a ele , que lhe causa estranhamento e poderia até nortear suas relações de mundo . Mas ela não é deusa, é uma verdade e um método , um caminho de vida . Ela deixa de ser algo estranho para tornar-se o próprio homem e o seu lo&gov interpretado como razão . Esse é o percurso da civilização ocidental até hoje . O que diferencia os tempos de hoje , se é que é diferente , é sua relativização da razão e seu deslocamento para outras categorias de homem dadas pelo mesmo , o que nos é familiar e se evidencia nos estudos das artes . O homem pós-moderno é apenas um homem que continua a recusar a responder positivamente às questões que a Morte lhe coloca. Seu conhecimento de Morte se limita a substituir uma teoria ex-plicativa por outra . As construções arquitetônicas gigantes refletem um ego que mira aos céus , mas nega e esquece a Morte que lhe advém de baixo , da Terra , e daquelas coisas que julga como seu fundamento : a razão , a emoção , o instinto , a liberdade ( legalmente concedida). Atualmente , nada apodrece, nada é cortado e cuidado ; alguma coisa é descartada quando inútil , porque não foi apropriada pelo sujeito . É a relação absoluta de sujeito e objeto que ainda não foi suficientemente questionada, tornando difícil uma postura diante de qualquer coisa que não parta ou da vontade ou da razão . E quando o “ objeto ” é o próprio homem ? Ou quando é sujeito-e-objeto, eu-e-você?

Concebe-se um estilo de vida absurdo , no qual você só pode ser o que se permite que você seja, já objeto de um Estado , uma moral , uma Lei , uma macro-estrutura social , todos embasados na certeza e na superação da Morte . Por esse mesmo motivo , não há nenhuma razão plausível para ser poeta , músico , pensador , rebelde , criador , guerreiro , libertino : essas ações que buscam entrar em contato com uma Morte não-metafísica são por demais arriscadas e dolorosas. Porque se deve ser apaixonado, contraditório , é uma dimensão que tira o fundamento e revela o morrer permanente .

Por mais que tente dela se afastar , a Morte sempre muda , ceifa e arrebata o homem no final . O Tarô de Marselha nos confirma isso , situando uma carta a ela dedicada numa posição do baralho que indica uma mudança no caráter das cartas que a procedem, estas de caráter menos terreno e mais celeste . Embora sem nome , essa décima terceira carta marca , nas tradições místicas , a passagem e a travessia do iniciado para integrante e estudioso dos mistérios . Isso também nos lembra a importância fundamental de Perséfone e Deméter no culto aos mistérios de Elêusis. Habitar e a coabitar a Morte todos fazemos, mas somente aqueles que dela fazem uma experiência primordial e indissociável de si se tornam poetas , pensadores , guerreiros . Com os mistérios , havia um determinado método para que essa experiência fosse feita : era a experiência mística . Mas a Morte não precisa de introdução , todo homem a conhece e pode fazer dela a experiência . Em sua atualidade , Heráclito nos lembra que “Na morte advém aos homens o que não esperam nem imaginam” . Lemos esse fragmento à luz da presença indissociável da Morte para a vida do homem , em cuja vizinhança os amantes do extraordinário se mantêm. Essa vizinhança se desfaz na Morte do homem , e todas as suas idéias sobre Morte são postas por terra , muito embora seu percurso de vida , se prezou essa vizinhança , pode ter chegado mais próximo de uma felicidade plena , conferida no derradeiro atravessar que a Morte confere. A Morte garante a todos os homens que morrerão [ embora a Ciência lute para superar isso ]. Vemos uma grande retomada do mito do rei Midas atualmente . Toda a opulência e poder , que lhe conferiam uma certa felicidade no plano material , não lhe davam uma felicidade completa , satisfatória . A diferença entre o mito e o que presenciamos hoje é que ainda não se virou à poesia para buscar uma resposta para a felicidade , para a Morte , para o viver . Mas o preceptor de Dioniso, Sileno, permanecerá acenando: “ Mísero mortal , por que queres sabê-lo? O que o homem pode fazer para ser feliz é não ter nascido, mas , uma vez que já nasceu, só lhe resta morrer ” .

Assim como o homem grego arcaico , podemos abraçá-la como uma negatividade positiva , que nos constitua como tais , e ponderando sobre essa medida em nossa vida , buscar a felicidade na mesma simplicidade com que a Morte tudo corta. Isso seria honrar os poetas , os pensadores , os ancestrais , seria uma mudança completa em nossas vidas . Mas sentimos que nenhuma mudança de teoria , paradigma , governo ou estilo resolverá a questão humana ( como se propõe normalmente ). Nem achamos que ela se coloca como problema . Isso não nos lança numa negatividade absoluta : é que , se também abraçarmos a questão humana , ela deixa de ser objeto de superação , mas a condição única para nos identifiquemos e diferenciemos dos nossos irmãos .

 

Morte , Corpo , Identidade

 

Escolhemos a citação , no início , de Manuel Antônio de Castro por considerá-la bastante precisa na relação do homem com a Morte . Procuramos des-envolver a Morte ; se o conseguíssemos, já não seria ela aquilo desenvolvido . Isso ocorre por uma impossibilidade da própria Morte de se mostrar totalmente . Estaríamos, se disso nos esquecesse, de certa forma reproduzindo o que tentamos evitar , que é tornar a Morte , em última análise , um objeto de estudo sobre o qual devêssemos nos debruçar , ou algo , como tudo mais , necessariamente ôntico e manifestado. Como acreditamos, se nós podemos sobre qualquer coisa nos debruçar , é porque nos movemos no âmbito da Morte . Sendo, já somos mortais e não-plenos.

Aparentemente isso compromete nosso ensaio . Mas isso não acontece. Por que ? Estamos acossados pela questão da Morte . Algo dela se põe e nos incomoda. Essa é uma das questões primordiais do homem . Promessas de imortalidade , deuses , artefatos e magias fantásticas sempre tiveram lugar na história do homem . Con-cordando com essa questão que figura o homem , nos apropriamos dela (e de nós ) à medida que abraçamos esse incômodo , essa dor , e tentamos, em sua experienciação, concretizar essa apropriação na identidade . O próprio pensamento consiste, então , no diálogo identificativo, em si uma dor , um rasgo e uma di- ferença. Pensando, nos definimos e definimos o outro , sempre poeticamente, isto é, a partir da poi&hsiv , da mudança , da linguagem , do nada , da Morte . Isso nos sugere que a Morte seja o abismal no qual e com o qual o diá -logo ocorre. Com a concessão da Morte , o abismo intransponível em que toda distância se sustenta se ilumina em pontes possíveis e mutáveis, concedendo-lhe um horizonte de transponibilidade, de acordo com a dinâmica apaixonada dos seres que se dedicam a essa transposição. Nesse acontecimento se dá o diálogo . Isso relembra nossa citação inicial e a aproxima: a Paixão que orienta a todos , como Paixão de ser-viver-amar, necessariamente se orienta para a Morte, para o não-ser.

Contudo , posto dessa forma , pode-se entender a Morte e a identidade apenas em sua distância , sem dar atenção à sua proximidade . Será que ela é o lado de um binômio , um jogo dialético? Não seria isso afirmar a Morte como fim , ou inverter a lógica que sustentaria Morte e Paixão ? É extremamente difícil prescindir de esquemas de pensamento presentes a todo momento . A importância de revê-los, como gostaríamos de salientar , é sua dominância na sociedade globalizada atual , que tenta nos impor um viver e um pensar . É que , se a Paixão orienta a todos em nossas pro-curas, ela não prescinde de sua originariedade. Assim como se conseguíssemos e desejássemos des-velar a Morte numa experiência de pensamento , já seria um resquício , um sintoma da Morte . A Paixão não se justifica pelo seu fim objetivo , mas floresce em sentido pelo percurso constitutivo, a dizer : em sua tensão permanente com a Morte , identificando e diferenciando Morte e Paixão .

 

Corpos e Identidade como obra-de-arte

 

Paixão e Morte não são conceitos abstratos que determinados estudos podem justificar . Não o são porque cada corpo os opera de certa maneira , a todo o momento , sem exaurir as possibilidades de ambos nem do corpo . O corpo é corpo poético. Se ele opera numa tensão entre Morte e Paixão , é porque se move poeticamente. O poeticamente confere sua contraditoriedade; seus desempenhos e configurações não se contêm na racionalidade , pois o corpo se situa na dimensão do ser , e não em certas categorias que determinado ser ( humano ) venha a se conferir . O ser se dando em Mundo , a partir de uma reserva como Terra , vive, é e ama , contraditória e paradoxalmente Corpo . Essas três dimensões , cada um as habita da sua forma , ainda que todo homem as habite. Ser e não-ser está fora de seu controle , questão imperecível que é. Mas isso não o impede de agir : é a ação-corpo poética e questionante que singulariza e forma cada um .

A respeito disso, nos disse Heráclito: “ Para os ventos , morte vem a ser água , para a água , morte vem a ser a terra ; mas da terra nasce água , da água , vento ” . Embora não existam como o homem , cada uma das figuras pensadas por Heráclito são um corpo diferente e fazem uma experiência distinta da Morte . É que a água , por exemplo , não é água só quando deixa de ser água , ou quando morre. Ser água , para a água , é ser água sempre , ou se situar no perigo de “ morrer ” para a terra . A Morte assim se torna o que torna a água e a terra o que são , desde sua origem . Mas a água não experiencia essa tensão , ela não está entre , primordialmente ela não ec-siste. A Morte zela pela determinação do homem e da água , ainda que à maneira que cada ser permita.

O que habitualmente chamamos de obra-de-arte pode então ser encarado como um corpo que dá corpo , ou como o que , dialogando com o homem , enseje caminhos para que ambos sejam. Mas aí ele já deixa de ser objeto , de algo que se reja por uma funcionalidade. A Morte é matéria-prima do fazer artístico , ou o fazer artístico é obra-prima da Morte ? Ela é os dois e mais . É matéria-prima enquanto a questão que acossa a humanidade do artista e assim constitui a obra-de-arte como resposta e respondente – aí não só puramente um objeto ou tema . Aí ela já se torna uma obra-prima da Morte , pois está concretizando, arte que é, excessividades que o vazio da Morte oferecia e continuará a oferecer . Isso quer dizer que a arte está tem suas raízes na Morte (o que realmente não é um embasamento ), e que não necessita de homens que desmistifiquem seu sentido e façam dele produto , informação . Pelo contrário : se há um sentido que é decifrável e analisável, muito da obra já se velou. Nenhum panorama sócio-histórico vai dar conta do próprio panorama que é a obra-de-arte: ela constitui um panorama sempre com quem lê , uma di-mensão.

Assim , se o diálogo com a obra constrói a ambos , é uma via dupla e ambígua , é porque mais uma vez a Morte constitui o silêncio do qual irrompe o dizer . A positividade do jogo de sombras de cada obra literária no diálogo com cada intérprete é seu maior mistério , e sendo coisa ambígua por excelência , também nos faz perguntar se não devíamos perguntar pela sombra e ambigüidade de tudo que é e existe. Isso fazem as obras e nos sugerem os poetas . Também faziam os pensadores originários , se interrogando pela yu&siv . Também o faziam os guerreiros , no espanto , no horror e nas vicissitudes de cada confronto .

Ensejando uma conclusão , diríamos que “o enterro do corpo de [ alguém ]”, notícia comum , é uma notícia extraordinária . Isso se dá porque o corpo , antes de ser uma metonímia da identidade de um alguém , é a condição primordial para que esse alguém exista. Ele está necessariamente enterrado. Da Terra , da Morte e da poesia ( poi&hsiv ) deriva toda sua energia para ser , amar , viver , como uma árvore . Mas não está só enterrado: desafia os mundos e acena para eles , irrompe em conquistas , realizações , galhos , frutos . E tudo isso , mais uma vez , abençoado pelo vigor da Morte , que o torna corpo vivo . Quando amamos demais , e nossa paixão mortal nos impele a fazer o salto mortal , saímos da tensão , o corpo se diz corpo morto . Seremos entregues ao infinito e com ele nos confundiremos. Mas e o que resta , “enterrável”? Não somos nós , ainda aquela instância que ( também ) permite a alguém ser alguém , mesmo que , então , dependamos exclusivamente da Memória para nos fazermos de alguma forma presentes ? Morto é o que foi demais .

Quando a cultura da presença lembrar que esqueceu, e lembrar o esquecimento , o extraordinário do humano , o poético será mais uma vez reverenciado. Mas quanto dela precisará morrer para tal ?

 

Bibliografia

 

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2 - CASTRO, Manuel Antônio de. O mito de Midas do Ser Feliz . Texto não publicado. s/d. Fotocópia .

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4 - PEREIRA , Maria Helena da Rocha . Estudos de História da Cultura Clássica . 5ª ed. Vol. I. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979. p. 102-104.

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9 - HEIDEGGER , Martin. A caminho da linguagem . 2ª ed. Petrópolis: Vozes , 2004.

 

E o faz sem qualquer referência ao seu étimo latino mundus , referente tanto a um adjetivo de primeira classe , significando limpo , livre de impurezas , quanto a um substantivo de segunda declinação , significando os céus , o firmamento . Cf. GLARE, P. G. W. et al. Oxford Latin Dictionary. Oxford: Oxford Univesity Press, 1968.

INSTITUTO Antônio Houaiss. Verbete “ corpo ”. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão 1.0. Objetiva , 2001.

Cf. PEREIRA , Maria Helena da Rocha . Estudos de História da Cultura Clássica . 5ª ed. Vol. I. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979. p. 102-104.

Como Dagda, o deus excelso , rei , armado de uma clava mágica e uma harpa . Era dito de sua clava que derrubava vários homens com um só golpe , enquanto que sua base poderia ressuscitar os caídos em batalha . Mesmo princípio de Morte é de Vida ( Paixão ). Bom em todas as artes , sua harpa também regia e encantava seus exércitos . Outro exemplo é Lugh, o rei que precede Dagda, também hábil em muitas artes . De uma maneira geral , isso nos diz acerca de uma sociedade que por costume amalgamava e confundia as dimensões de sacerdote , poeta , guerreiro , sábio , cozinheiro . Não eram tidos como funções ou profissões , mas desdobramentos de um mesmo h]qov poético em que se imaginava mover tais homens excepcionais .

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alan. Verbetes “ Morte ”, “ Tarô ”. Dicionário de símbolos . 19ª ed. Rio de Janeiro : José Olympio, 2005.

ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Fragmento 27. In: Os pensadores originários . 4ª ed. Bragança Paulista : Editora Universitária São Francisco, 2005.

CASTRO, Manuel Antônio de. O mito de Midas do Ser Feliz . Texto não publicado. s/d. Fotocópia .

ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Fragmento 36. In: Os pensadores originários . 4ª ed. Bragança Paulista : Editora Universitária São Francisco, 2005.

 

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