APRESENTAÇÃO
Luis Alberto Alves*
No final de 1998, professores e doutorandos da Faculdade de Letras da UFRJ resolveram homenagear Antonio Candido pelos 40 anos da publicação de Formação da Literatura Brasileira. Estranhávamos, então, o desinteresse pelo autor e pelo livro. Era costume dizer que a obra era datada _ como se alguma pudesse ser concebida fora de balizas históricas. Alunos e pesquisadores da área de Letras sabem, perfeitamente, que a restrição tem força de uma sentença condenatória proferida em última instância. Reagindo a isso, foi organizado o evento “40 anos de Formação da Literatura Brasileira”, no período de 26 a 27 de outubro de 1999, com a finalidade de discutir o sentido e o alcance da obra de uma perspectiva contemporânea.
A idéia era convidar o autor para a abertura do encontro. Assim, fizemos um primeiro contato com o próprio Candido, que agradeceu a iniciativa, porém condicionou sua participação a um breve depoimento (que acabou acontecendo um mês antes do programado), no qual relataria como e em que circunstância concebeu o livro. Conforme acordado, o encontro ficaria restrito a alguns alunos de graduação e pós-graduação, e a divulgação não ultrapassaria as fronteiras da instituição. Quis o destino que o trato inicial não fosse cumprido, ou por outra, só o tenha sido em parte, não por indelicadeza, seja dito, mas em consideração aos muitos que deixariam de assistir ao grande crítico brasileiro, comentando a principal obra escrita no Brasil de crítica e historiografia literárias, que, embora quarentona, não havia cessado de dizer o que tinha para dizer, para falar com Italo Calvino. Assim, o que deveria ser feito praticamente a portas fechadas ganhou uma dimensão que, convenhamos, de fato deveria ter, isto é, em um auditório que pudesse receber alunos, funcionários e professores. Em de setembro de 1999, Antonio Candido compareceu à Faculdade de Letras da UFRJ para seu pronunciamento. A cerimônia foi muito simples, rápida, meio improvisada, mas com grande repercussão.
Foi durante o evento que Luís Augusto Fischer lançou a idéia de se formar um grupo de pesquisa, cuja incumbência seria reescrever a história da literatura brasileira, considerando as experiências regionais. O propósito era partir de onde Antonio Candido havia parado. Proposta feita, proposta aceita. No ano seguinte, o próprio Fischer batizaria o movimento: Grupo Formação. Visto de hoje, a empreitada não deixava de ter uma taxa considerável de ambição, que, no final das contas, não foi tão ruim assim. Mas o tempo foi ajeitando as coisas, pondo ordem na casa e o tanto de voluntarismo, ou mesmo equívoco de avaliação (como estávamos nos conhecendo as chances de um diagnóstico preciso, convenhamos, eram pequenas), foi logo substituído por um compromisso mais modesto, mas nem por isso menos interessante: cada um apresentaria os resultados de suas pesquisas anteriores à constituição do grupo. Creio que a consistência que porventura adquirimos deveu-se, em boa medida, à capacidade, não sei se 100% consciente, de recuar em relação ao objetivo inicial, que de fato era grandioso e honesto, mas para o qual não estávamos, naquele momento, suficientemente preparados, como coletivo, vale dizer, para encaminhar o projeto.
Na vida universitária de hoje, sobrevive uma tendência a tratar das questões contemporâneas como se elas não tivessem passado, ou como se este não viesse ao caso. Esse atualismo imaginado como solução é, na verdade, parte do problema. O Grupo Formação não só não endossa essa via, como dá status de programa à retomada crítica da tradição, sugerindo seu compromisso com a historicização das formas literárias. O prisma contemporâneo que anima as intervenções do grupo aciona e atualiza a questão nacional e através desta a memória da experiência histórica acumulada, por mais problemática ou limitada que tenha sido no plano da criação e reflexão estéticas. Daí o diálogo intenso com Formação da literatura brasileira (daí o nome do grupo); daí o aproveitamento crítico da noção de sistema literário, testada de vários ângulos a propósito de vários livros e autores, alguns dos quais freqüentados pelos colaboradores reunidos aqui, como o leitor poderá comprovar adiante.
O perfil do Grupo Formação é bastante revelador. Uma parte é composta por professores; outra, por alunos de graduação e pós-graduação. Aqueles se sentiam desanimados com a crescente burocratização da universidade brasileira; estes se mostravam insatisfeitos com a rigidez da hierarquia acadêmica, que limita a cidadania intelectual a códigos de sagração inflexíveis. Em comum, todos são de esquerda, com ou sem militância partidária. Os que tiveram experiência nesse terreno não tardaram a topar com alguma desilusão. Isso explica a preocupação vigilante de seus membros em não reproduzir no seu interior as idiossincrasias que têm marcado esses agrupamentos, com sua tendência irresistível a se desagregar rapidamente. Seria possível construir um grupo de pesquisa de esquerda que não reproduzisse isso?
Sua relativa coesão decorre também de simpatias comuns. Para nós é uma vantagem poder contar com figuras da estatura intelectual e moral de Antonio Candido e Roberto Schwarz. Através deles, temos assimilado, em chave crítica, toda uma a tradição intelectual, estrangeira e brasileira, marxista e não-marxista: de Lukács a Adorno, passando por Benjamin, Auerbach, Brecht; de Machado de Assis a Sérgio Buarque de Holanda, passando por Mário de Andrade, Drummond, Bandeira, João Cabral. Assim, podemos nos dar ao luxo de entrar em campo com o que de melhor foi feito em termos de reflexão estética e política _ à esquerda. Enfim, uma vontade de estudar, debater, pesquisar, trocar informações e idéias, e ainda sobra tempo para cultivar polêmicas, sem as quais a coisa não faria sentido. O impasse, quando há, é logo temperado com humor, que passou a ser uma especialidade da casa.
Tomar alguns autores como referência tem a vantagem de dotar certos enfoques de uma coerência difícil de ser obtida, principalmente num campo visivelmente atrelado aos ciclos teóricos da moda, e pouco comprometido com a assimilação compassada das idéias, que deveriam ser filtradas, no melhor dos casos, à luz da experiência histórico-estética local, do mesmo modo como procederam, diga-se de passagem, Machado de Assis, Mário e Oswald de Andrade, Bandeira, Sérgio Buarque, Drummond, Cabral etc.
Os artigos aqui reunidos estão divididos em cinco blocos temáticos, mutuamente referidos. Mantivemos, com pequenas modificações, a estrutura do IV Seminário de Estudos de Cultura e Literatura Brasileira, evento organizado por professores e alunos da UNB que integram o Grupo Formação, em dezembro de 2004. Com exceção dos artigos de Vinícius Dantas e Ricardo Pinto, os demais foram apresentados e discutidos no Seminário de Brasília. Ao adotar esse procedimento, pensamos transmitir, com alguma fidelidade, a pauta de discussão. De início, o debate interno girava, preferencialmente, em torno da assimilação de pressupostos de método hauridos nos ensaios de Candido e Schwarz, com abertura, conforme já dissemos, para outros autores da tradição de esquerda. O material que chega agora ao domínio público já exibe os frutos de uma convivência nova e de resto complexa, em cujos resultados práticos vão se revelando as primeiras transfusões do trabalho coletivo. É bem possível que daqui para frente _ é uma aposta _ seguirá uma outra fase, marcada dessa vez pelo desenvolvimento de novas categorias, à luz precisamente daquela ruminação, mas também em resposta a desafios e impasses contemporâneos. Enfim, ver com ouvidos apurados (“Quer ver/escuta” _ Chico Alvim). Nessa direção, o artigo de Luís Augusto Fischer cumpre um papel essencial, pois traz, de modo claro e conciso, as linhas-mestras de nosso programa de pesquisa, isto é, a tentativa de se estudar a literatura brasileira através da categoria de luta social. Imagino que os demais artigos poderão ser lidos e avaliados à luz dessa postulação.
Em toda sua existência, o Grupo Formação tem buscado se situar, de modo crítico/independente, em relação às regras que celebram o funcionamento da vida universitária. Sem desconsiderar a existência destas, o que seria uma atitude bisonha, ele busca estabelecer, no entanto, uma outra sociabilidade intelectual, agregando professores e alunos em torno de um projeto de construção coletiva do conhecimento, dispensando a figura do medalhão. Por isso, nos orgulhamos de ter construído essa experiência lado a lado com os estudantes de graduação e de pós-graduação, reconhecidos como sujeitos da produção intelectual, que, no seu conjunto, vale dizer, é um processo objetivo e associativo. Assim sendo, a relevância de uma intervenção não se mede pelo título de quem fala. É claro que não se trata de eliminar a hierarquia que de fato existe e qualquer pessoa inteligente saberá identificar um colega mais experiente, mais bem formado; mas essa experiência e essa formação não garantem, de saída, a vitória do argumento, que deverá sempre passar pelo teste do convencimento. Nesse caso, o peso do currículo não é o que faz a diferença. Do ponto de vista acadêmico, nada mais anti-acadêmico do que um grupo como esse.
No capítulo dos agradecimentos, gostaria de registrar minha dívida para com o professor João Camillo de Oliveira Penna, coordenador do Programa de Pós-graduação de Ciência da Literatura/UFRJ, biênio 2003-5, por ter confiado a mim a edição deste número da revista Terceira Margem. O agradecimento é extensivo ao professor Alberto Pucheu Neto, atual coordenador do Programa, dessa vez pela paciência e palavra amiga. Minha gratidão também vai para as monitoras Fernanda Rodrigues Venâncio, Luana Rodrigues de Oliviera, Marcilene Manhães Silva e Suellen de Souza Pessanha, que me ajudaram na revisão dos textos. A elas agradeço muitíssimo.
* Professor do Departamento de Ciência da Literatura e do Programa de Pós-graduação de Ciência da Literatura da UFRJ.
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