APRESENTAÇÃO

 

Alberto Pucheu

Editor convidado

(Professor do Programa de

Ciência da Literatura, da UFRJ)

 

 

   Foi com grande alegria que recebi o convite de João Camillo Penna, coordenador do Programa de Ciência da Literatura, a quem agradeço, para ser o editor convidado do presente número da Terceira Margem, sobre poesia brasileira. Desde então, pensei em causar uma pequena variação no tema, tratando-o como A Poesia Brasileira e Seus Entornos Interventivos, ou seja, partir da nossa poesia e do que, hoje, nos diversos âmbitos que lhe dizem respeito, se pensa sobre poesia no Brasil, mas, também, não apenas em nosso país, nem somente sobre poesia, nem, exclusivamente, sobre poesia brasileira, ainda que esta seja a propulsão que instiga e o plano que acolhe tudo o que aqui se faz presente. Acredito que, desguarnecendo fronteiras e deslocando eixos que se querem fixos, a força do poético se encontra na abertura para o outro, para o fora, que teimam em, saudável e intensamente, intervir.

Por um lado, tem-se a poesia brasileira como mola propulsora do debate e, por outro, aquilo que, em torno dela, vem sendo gerado. Nesta relação entre a poesia e seu entorno, os supostos derivados não permanecem, necessariamente, num segundo plano, rebocados por aquilo que os livros de poemas instauram. O pensamento sobre poesia também é produção, diga-se, tautologicamente, poética, que, quando não tem, deveria possuir um desejo de antecipação, um desejo de que a própria poesia se transformasse a partir de uma reflexão que se quer igualmente instauradora. Tal fato acena para uma enormidade de obras que já não podem ser caracterizadas pela recíproca exclusão entre o poético e o teórico; justamente nesta encruzilhada, reside um dos vigores do contemporâneo e, diga-se, não só do contemporâneo. Neste número, o texto de Roberto Corrêa dos Santos é o primeiro exemplo deste procedimento de quem sabe que uma tematização da literatura (no caso, a questão do poema), já é, em si mesma, literária, obra de criação. Aqui, as habituais distâncias entre o que falar e como falar, entre o assunto sobre o qual se escreve e a maneira pela qual se escreve, se apagam completamente, fazendo com que a forma seja uma energia de sustentação indiscernível do próprio conteúdo.

Há, também, um primeiro deslocamento teórico-geográfico – a americana Marjorie Perloff, das mais interessantes e importantes críticas de poesia da atualidade, escreve a partir das Galáxias, de Haroldo de Campos, em um texto até agora inédito, e que, por uma dessas casualidades da vida, graças, inclusive, à boa-vontade da própria autora, foi fácil consegui-lo, tendo cabido à generosidade de Micaela Kramer a chance de o termos em nossa língua. Além deste, entre os estrangeiros, estão presentes o último ensaio escrito em vida, importantíssimo, de Gilles Deleuze, que dialoga com a literatura colocando-a num lugar privilegiado, um de Michel Collot, também excelente, diretamente voltado para a poesia e a questão do sujeito lírico fora de si, e um outro, impressionante, de Giorgio Agamben, mais um a desfazer qualquer insinuação de divergência entre o poético e o teórico, mantendo uma rara voltagem de pensamento. Entendo que, desta maneira, a seleção de pensadores internacionais da literatura em nossa revista está muitíssimo bem representada.

Quanto aos brasileiros, além do já mencionado, muitos compondo uma nova geração da crítica e da teoria literária no Brasil, temos um elenco entusiasmante, tanto no que diz respeito à própria qualidade ensaística quanto à singularidade de alguns dos poetas abordados, que recebem, aqui, pela primeira ou segunda vez, a devida atenção que merecem. Num dos raros textos existentes que atravessam a trajetória poética de Rubens Rodrigues Torres Filho, Viviana Bosi busca compreendê-la, sobretudo, através de certas formas irônicas relacionadas à postura do sujeito num horizonte de estreitamento histórico. Eduardo Guerreiro analisa a obra, igualmente pouco estudada, de Leonardo Fróes, a partir da idéia de uma estética da existência em que a produção poética elabora uma máquina, moderna, místico-poética, tornando o delírio uma técnica de si, de um eu indeterminado. Com Marcelo Diniz, é a vez dos poemas reunidos de Armando Freitas Filho receberem uma interpretação, tanto literária quanto filosófica, da metáfora da máquina, em nome de uma poética do inacabado.

Francisco Bosco e André Gardel fazem o poema escrito deslizar para o encontro com a letra de música, a oralidade, o canto e outras artes, mostrando mais uma das indiscernibilidades do poético. Com uma escrita aforismática, o primeiro visita a trajetória de Caetano Veloso, salientando o caráter crítico de uma obra que, radicalizando a complexidade da música popular brasileira, configura-se como o lugar, por excelência, onde nossa canção se pensa, de onde partem intervenções sobre a cultura, posicionamentos éticos e reconfigurações de questões sobre alta e baixa cultura, poema e letra de música etc; já André Gardel aborda a obra de Arnaldo Antunes com uma proposta para a diminuição do fosso existente entre a experimentação estética culta e a comunicação ligada à indústria do entretenimento, desentranhando o incomum do comum, desautomatizando o clichê, com o intuito de, por várias mídias e linguagens que incorporam a diversidade discursiva e cultural do mundo contemporâneo, afirmar a estranheza, a diferença, como princípio assimilável para um público de massas.

Causando mais um deslocamento da poesia, que, desta vez, escorrega para a prosa, Marco Lucchesi nos traz a poética de Antonio Vieira, abordando o Quinto Império e a sinergia da história, os fragmentos e a totalidade, o sic transit gloria mundi e os novos trânsitos para o novo reino hiperfísico, tal como manifestado por esse que é dos maiores pensadores e dos mais poéticos prosadores de nossa língua. Gilvan Fögel, professor de filosofia, parte do vínculo estabelecido, por Ricardo Reis e Álvaro de Campos, entre Alberto Caeiro e a reconstrução da essência do paganismo para, explícita ou implicitamente, pensar fenomenologicamente o respectivo heterônimo de Fernando Pessoa num encontro com o pensamento grego, que, por sua vez, é caracterizado como o fora, o exterior, o objetivo, em oposição ao cristão da interioridade e à modernidade intimista, subjetivista, cheios de vontade de infinito, de ilimitado; o que definiria o mestre dos heterônimos e a sua natureza grega, greco-pagã, seria “a repugnância do infinito”. Com Marcelo Jacques de Moraes, é a poesia francesa que se mostra ao leitor brasileiro, justamente pela noção de infinito em Charles Baudelaire tal como lida por Michel Deguy, que remete à vocação de uma experiência de intensificação pela via da apresentação estética; a partir daí, num diálogo permanente entre os dois poetas, pretende discutir a figuração poética por meio da alegoria da morte, da infinita espessura do presente.

Buscando promover o debate, ampliando o leque das discussões, além da esperada parte ensaística acadêmica, achei oportuno escutar não apenas os críticos, os teóricos, os filósofos, que, bem ou mal, mais ou menos localizada e amplamente, acabam se fazendo ouvir, mas, também, depoimentos de alguns dos editores contemporâneos mais aguerridos de livros de poesia (como Sérgio Cohn, da Azougue Editorial, e Jorge Viveiros de Castro, da 7 Letras), dos suplementos literários (como Rachel Bertol, editora assistente do Prosa & Verso, suplemento de literatura do jornal O Globo) e das revistas de literatura (como Marcelo Rezende, que, tento sido repórter dos cadernos Mais e Ilustrada, da Folha de São Paulo, ocupa, atualmente, o cargo de diretor da redação da revista CULT). A eles, meu agradecimento, por se aventurarem em um espaço que, talvez, pelo menos no que diz respeito ao exercício direto de suas atuais profissões, lhes seja pouco habitual, e a uma reflexão corajosa sobre como os meios de comunicação e editoração pensam seu ofício e sua relação com a poesia. Com isto, em nome do contínuo enriquecimento da conversação entre os diversos campos que englobam a poesia em nossa cultura, viso trazer ao debate múltiplas figurações, torcendo para que, paulatinamente, através do diálogo, a complexa trama da diferença seja tanto acatada quanto compreendida, e todos saiam mais maduros e unidos deste encontro.

A todos os participantes, meu agradecimento pelas respectivas contribuições. Finalizando esta apresentação, gostaria de agradecer também o inestimável auxílio de Francisco Bosco e Marcelo Diniz, que tanto ajudaram a conceitualizar como a viabilizar muito do que neste número se presentifica.

 

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