O PENSAMENTO MITOPOÉICO1 Harold Bloom* Tradução e apresentação: Sueli Cavendish** |
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Apresentação
“O pensamento mitopoéico” é o capítulo introdutório ao primeiro livro de Harold Bloom –“Shelley: Engenho de Mitos” (Shelley’s Mythmaking) e como tal possui um certo valor histórico. Publicado em 1957, é seguido de O Apocalipse de Blake e de A Companhia Visionária, este último o mais ambicioso dos três, incorporando os seis poetas românticos ingleses mais importantes, Shelley, Blake, Wordsworth, Byron, Coleridge e Keats. Com esta trilogia Bloom tenta resgatar os românticos do esquecimento, imposto primeiro por T. S. Eliot e depois pela Nova Crítica. “È evidente para mim agora”– diz Bloom, no prefácio à edição em brochura da Cornell University –“ que o tema deste livro é a tentativa, internalizada por Shelley, de alcançar os limites do desejo. Ele tocou esses limites, abandonou a fase prometéica da busca romântica e morreu, mas não pelo fracasso da fase madura dessa busca, de onde havia começado. Se fez um ‘Julgamento Final’ sobre si mesmo em O Triunfo da Vida e nos poemas líricos a Jane Williams, foi talvez porque tivesse fracassado ante sua própria visão, não que esta tenha lhe faltado. Este livro, um estudo experimental dos limites do desejo, é oferecido como um tributo, conquanto inadequado, ao poeta que considero o menos dispensável entre os que já li.” Bloom registra ainda, no mesmo prefácio, comentários que fazem parte da primeira recepção ao livro. Um crítico britânico, representativo de muitos outros, condena o seu afã de focalizar Blake pela lente de Buber. Outro deplora a decadência da academia americana, que concedera o mais alto mérito a um ‘efebo’ insuficientemente versado em Platão. O espaço concedido por Bloom, em seu prefácio, a esses ataques, testemunha a seriedade que desde cedo o anima. Em sua própria defesa argumenta que, se houve ou não influência de Platão sobre a poesia de Shelley, esta é uma questão a demandar muito estudo. Um conhecimento, em suma, bem mais profundo e abrangente sobre o processo de influência poética do que o que até então existia. Desponta, assim, “a angústia da influência”, como o tema que perseguirá obsessivamente a partir desses livros. ~
MARTIN BUBER, TEÓLOGO JUDEU contemporâneo, estabelece uma distinção entre duas “palavras primeiras”, Eu – Tu e Eu – Isso.2 Estas palavras combinadas implicam relações em vez de significações, e, ao serem ditas, trazem à tona a existência de relações que não poderiam existir independentemente da pronunciação das palavras primeiras. A atitude humana em face do mundo é dupla, variando em função das palavras primordiais que se diga. “Quando o Tu é pronunciado, o falante nada tem por objeto. Pois onde há uma coisa há uma outra coisa. Todo Isso é limitado por outros; Isso existe apenas enquanto é limitado por outros. Mas quando o Tu é dito, não há coisa. Tu não tem limites.” Há então dois Eus: o Eu que existe quando o ser inteiro de um homem se confronta com um Tu, e o Eu da outra palavra primeira Eu-Isso, que jamais pode ser dita com o ser inteiro. Um Eu existe no mundo da experiência; Eu experimenta “Ela”, “Ele”, ou “Isso”. O outro Eu estabelece o mundo da relação. Diz Buber: Considero uma árvore.Cito na íntegra essa bela e longa passagem porque ela afirma melhor que qualquer outra que já tenha visto a natureza daquilo que trato como percepção mitopoéica. Buber vai ainda mais longe: “A relação com o Tu é direta. Nenhum sistema de idéias, nenhum conhecimento prévio e nenhuma fantasia intervém entre Eu e Tu.” Temos aqui um modo de imaginação perceptiva que salta acrobaticamente sobre as costas da Imaginação Primária de Coleridge e cai diretamente sobre a sua Imaginação Secundária; um análogo da “Visão Quadrifoliada” de Blake. Não constitui qualquer surpresa que Buber afirme ainda que “No princípio era a relação”, e prossiga no sentido de declarar que a palavra primeira Eu-Tu domina sobre a Eu-Isso na fala dos povos “primitivos”. O mundo de nossos ancestrais, ou de primitivos contemporâneos, é um mundo de relação e não de experiência. Das intuições de um moderno teólogo, eu passo para a utilização daquelas (aparentemente desconhecidas) de alguns acadêmicos eminentes, a respeito de civilizações antigas. Henri Frankfort e a sra. H. A. Frankfort dão início à sua tentativa de expor a natureza do mito no Egito e na Mesopotâmia da antiguidade fazen Harold Bloom • 189 do justamente a mesma distinção que faz Buber entre a relação Eu-Tu, e a experiência Eu-Isso.3 Todavia, a distinção dos primeiros é puramente técnica em propósitos, enquanto a de Buber é, naturalmente, essencialmente religiosa. Para Buber, “todo Tu particular é um vislumbre do eterno Tu ,” Deus, pois Deus pode apenas ser endereçado na segunda pessoa, nunca expressado na terceira, a esfera do Isso. O mundo do homem, enquanto relacionado ao seu Eu leva inevitavelmente ao eterno Tu, Deus; enquanto o mundo do homem experimentado pelo seu outro, e bem distinto Eu, pode conduzir apenas, fundamentalmente, ao eterno Isso, distante de Deus. Buber então reconhece que todo “Tu particular, depois que o evento relacional tenha seguido seu curso, está fadado a tornar-se um ‘Isso’, mas a essa idéia contrapõe a de que todo ‘Isso particular’, ao penetrar no evento relacional, pode tornar-se um Tu.” Como cabe a um teólogo, a conclusão de Buber é moral: “Sem Isso o homem não pode viver. Mas aquele que vive somente com o Isso não é um homem.” Depois dessa advertência, a análise desapaixonada dos Frankforts me causa uma certa inquietude: “A diferença fundamental entre as atitudes do homem moderno e do homem da antigüidade com respeito ao mundo circundante é essa: para o homem da modernidade e da ciência o mundo fenomênico é principalmente um ‘Isso’; para os antigos – também para os primitivos – é um ‘Tu’.”4 A excelente empreitada acadêmica dos Frankforts é demonstrar a inadequação de interpretações “animísticas” ou “personalísticas” do significado do mito antigo ou primitivo. Desde que todo fenômeno se relaciona a ele como “Tu”, “o homem primitivo simplesmente desconhece um mundo inanimado”, um mundo a ser experimentado. “Por essa razão mesma ele não ‘personifica’ fenômenos inanimados, nem preenche um mundo vazio com os fantasmas dos mortos, como o ‘animismo’ nos faria crer.” O mito verdadeiro, então, segundo os Frankforts, “perpetua a revelação de um ‘Tu’.” A imagética do mito não é, assim, alegórica, mas anagógica. A imagética mítica “representa a forma pela qual a experiência tornou-se consciente.” Por conseguinte, concluem os Frankforts, “o mito é uma forma de poesia que transcende a poesia, pois que proclama uma verdade; uma forma de reflexão que transcende a reflexão, pois que quer revelar a verdade que proclama; uma forma de ação, de comportamento ritual, que não encontra seu preenchimento no ato, mas que deve proclamar e elaborar uma forma poética de verdade.” Isso me parece uma síntese admirável da natureza do mito e também de uma poesia ‘mitoprodutiva’, embora os Frankforts talvez não concordassem com essa última afirmação. Contudo, estou interessado em saquear as formulações dos Frankforts em meu proveito próprio, e não concordo que proclamar uma verdade implique transcender a poesia. Os Frankforts estão interessados na distinção entre o pensamento mitopoéico e o pensamento racional, científico. Eles observam o paradoxo do pensamento mitopoéico. “ Embora não conheça a matéria morta e não confronte um mundo animado de ponta a ponta, é incapaz de abandonar a esfera do concreto e transformar suas próprias concepções em realidades existentes per se.” Dito de outra forma, faz exatamente o que um certo tipo de poesia “idealista” faz; concebe uma visão em termos das “minúsculas partículas” blakeanas. A noção mitopoéica de tempo e espaço, observam os Frankforts, é “qualitativa e concreta, ao invés de quantitativa e abstrata.”Tanto é assim, apresso- me em dizer, na obra de certos poetas, quanto na dos antigos ou primitivos. De fato, isso é verdadeiro, em certa medida, para todos nós, mesmo agora, em nossa vida cotidiana. Então, conforme assinalam os Frankforts (e muitos outros), tanto os gregos quanto os judeus da antiguidade romperam com o pensamento mitopoéico. Os gregos “progrediram”, no dizer de F. M. Cornford, “da religião para a filosofia”, enquanto os judeus estabeleceram um pacto com um Deus que transcendia absolutamente o pensamento mitopoéico. Toda relação mitopoéica culmina no eterno Tu, e os judeus ultrapassaram em muito qualquer religião natural em direção à revelação do mito (se assim se pode dizer) de que existia uma Vontade desse eterno Tu. O mito judeu é a relação Eu-Tu na qual o Eu é Deus ou “um reino de sacerdotes e uma nação santa...’ e o Tu, inversamente, ou é esse povo escolhido ou é Deus. O mito é estabelecido segundo a Vontade de Deus, de tal forma que não se pode falar com precisão nem de uma escolha nem de uma coisa escolhida, mas apenas de uma relação mútua na qual se adentrou, cujo contrato por sua vez produz uma lei, moral e espiritual, e uma tradição de fé. O pensamento grego, crítico, científico e racional, tornou-se, como bem sabemos, completamente emancipado do mito e finalmente hostil a ele. O pensamento Judeu tornou-se hostil a todos os mitos, com exceção de um, enquanto o pensamento cristão, por seu turno, excluiu todos os mitos exceto sua própria transformação e modificação do mito judeu. O Mito, assim excluído da filosofia e da sua cria, a ciência, e do que viria a se tornar a religião dominante do Ocidente, entretanto não morreu, nem sobreviveu apenas entre os primitivos. Com Platão, fez reentrada na filosofia e desde então nunca se separou completamente; fez reentrada na religião, nem sempre como heresia, embora usualmente considerado como tal, no início. Mais importante, é claro, tornou-se um certo tipo, e tradição, de poesia. Como em geral se reconhece, a distinção entre poesia mitológica, mitográfica e mitopoéica não é fácil de estabelecer, especialmente em poemas localizados no princípio da tradição literária européia. Poesia mitográfica, por exemplo, é algo muito raro, e embora haja vestígios dela em muitos poetas clássicos e medievais, não parece de fato existir in extenso até a Renascença. Sua característica essencial é a de que não apenas sabe da existência de diferentes mitologias, mas também do elemento de paralelismo entre mitologias. A poesia mitológica, propriamente dita, apresenta unidade de cultura e de tradição. Exatamente em que ponto a poesia mitológica se torna mitopoéica é impossível precisar, mas considero útil uma divisão da poesia mitopoéica, ou dos aspectos mitopoéicos da poesia, em três partes, embora todas elas se interpenetrem. Na primeira o poeta utiliza uma dada mitologia, mas estende seu escopo de significância sem violá-la em espírito, ou sequer, consideravelmente, na letra. Falando francamente, isso não me parece figurar no escopo da mitopoéia de modo algum, mas pode ser considerada, essencialmente, como o tipo de poesia mitológica mais criativo. A poesia inglesa dessa natureza recebeu tratamento extensivo em dois livros excelentes de Douglas Bush.5 Bons exemplos em Shelley são o “Hino a Apolo” e o “Hino de Pã.” Um segundo tipo de poesia mitopoéica pode ser chamado de primitivo, na medida em que corporifica aquela percepção direta de um Tu nos objetos ou fenômenos naturais, que os Frankforts nos descreveram, “uma confrontação da vida com a vida.”6 Esse gênero de poesia freqüentemente nada deve sequer ao exemplo da mitologia do passado, e Shelley é mais virtuoso em sua fatura que qualquer outro poeta inglês:
And noon lay heavy on flower and tree.Na quarta estrofe ele dá início aos esclarecimentos finais, começa a especificar a sua oração. Sua oração não se dirige à Morte ou ao Sono, como a oração de Novalis quando ele invoca a Noite. Na estrofe final o esclarecimento é completo, e a Noite da relação, que é corporificada na oração que é esse poema, exatamente definida. A Morte-em-Vida do dia comum virá, demasiado veloz, quando essa Noite estiver morta; o Sono que é a consciência cotidiana virá quando essa Noite se recolher. Por conseguinte, o poeta nem pede à Morte nem ao Sono para virem mais depressa. Sua oração à Noite, sua tentativa de manter-se com ela na relação Eu-Tu, é um pedido pela vinda daquela consciência completamente lúcida a qual, somente, é vida para ele, e que somente aparece na Noite criativa de seu espírito, nas profundezas do si mesmo que é a faculdade poética nele. Ele morre para a nossa vida diurna, para que possa viver a vida mais fecunda da sua noite. Ofereci “À Noite” como um exemplo da poesia primitiva mitopoéica, na qual o poeta entra numa relação com um Tu natural, a relação mesma constituindo um mito. O que considero uma terceira variedade de poesia mitopoéica é mais complexa, embora suas raízes estejam justamente em tais relações. Desde a concreta e primitiva relação Eu-Tu com Deus, os judeus formularam o mito abstrato e complexo da Vontade de Deus. Semelhantemente, dessas relações concretas Eu-Tu, o poeta pode ousar construir suas próprias abstrações, ao invés de aderir à fórmula do mito, tradicionalmente desenvolvida de tais encontros. Esse terceiro tipo de mitopoéia, tal como se manifesta nos principais poemas de Shelley, é meu tema nos capítulos seguintes. Uma leitura pormenorizada de um grupo de poemas de Shelley demonstrará meu argumento. Não afirmo que todos os poemas maduros e mais importantes de Shelley são mitopoéicos, especialmente na acepção precisa e delimitada de mitopoéia sobre a qual aqui insisto. Afirmo, sim, que um certo grupo de poemas de Shelley manifesta precisamente a mitopoéia que defini acima. Seu mito, muito simplesmente, é mito: o processo de sua elaboração e a inevitabilidade de sua derrota. Já analisei “À Noite”, um poema escrito em 1821, como um exemplo da fatura de mitos em Shelley, uma técnica de escrever poesia que é em si mesma o tema dominante dessa poesia. Com algumas exceções, os poemas lidos nos capítulos a seguir seguem a ordem de sua composição.10 Começo com os Hinos de 1816, o “Hino à Beleza Intelectual” e ‘Mont Blanc”, pois esses são poemas em que me parece que Shelley encontra o seu mito, seu grande tema; com efeito, encontra-se a si mesmo. “Alastor”, composto no outono de 1815, é geralmente considerado o primeiro poema extenso de Shelley com maturidade e valor. Admiro inúmeros aspectos em “Alastor”, mas o poema confunde e mistura alegoria e construção mítica. Parte da poesia tardia de Shelley encontra em “Alastor” o seu protótipo, mas o aspecto específico dessa poesia tardia que me interessa aí não se encontra. O mito da relação Eu-Tu não precede os Hinos de 1816; ele toma corpo à medida que esses poemas se elaboram. Posteriormente o mito desaparece por um tempo da poesia de Shelley. “A Revolta do Islam” (abril-setembro 1817), uma epopéia alegórica abortiva que eu não admiro, não manifesta muita consciência do mito. O dualismo da “Revolta” é uma decaída espiritual do mito; a alegoria dúbia do poema é um declínio técnico com respeito à fatura mitopoéica dos Hinos de 1816. “Prometeu Desacorrentado” é a primeira grande corporificação do mito de Shelley e no meu terceiro capítulo me preparo para uma leitura desse poema. O quarto capítulo, uma leitura da “Ode ao Vento Ocidental”, se aparta ligeiramente da ordem cronológica numa tentativa de completar o processo de introdução do drama lírico. O capítulo quinto, por seu turno, é uma leitura em larga escala de “Prometeu”. O mito da relação culmina com “Prometeu”; o poema fornece uma declaração completa da visão de Shelley. Outros aspectos do mito são enfatizados em “The Sensitive Plant” (Capítulo 6) e “The Witch of Atlas”(Capítulo 7.) No Capítulo 8, que é uma releitura do “Epipsychidion”, começo a traçar o curso descendente do mito de Shelley, a consciência de sua própria derrota. “Adonais”(1821) seria o meu tema seguinte, mas relutantemente excluí uma leitura do poema deste livro. Muito nele francamente nega o mito ao invés de debruçar-se sobre a sua derrota. As últimas dezessete estrofes de “Adonais” são tão excelentes quanto tudo o mais no poeta, mas elas nem iluminam nem são iluminadas pela dialética da mitopoéia de Shelley. O nono e último capítulo é uma releitura do fragmento, postumamente publicado, “O Triunfo da Vida”. Com o triunfo da vida no mito da relação de Shelley meu argumento se completa. Poemas longos e valiosos como “Julian and Maddalo”, “The Cenci”, e “Hellas” foram excluídos porque não tem relação com o meu tema, ou o meu tema com eles. Dois poemas longos que admiro particularmente, os “Versos Escritos entre os Montes Euganeses” e a “Carta para Maria Gisborne,” foram omitidos pela mesma razão. Muito da lírica de Shelley e dos seus poemas curtos teriam servido ao meu propósito, mas foram excluídos por falta de espaço. Eu particularmente lamento nada dizer sobre “Os Dois Espíritos: uma Alegoria”, uma peça mitopoéica notável composta em 1820. Não fui capaz de responder, sequer para uma satisfação de foro íntimo, uma questão crucial. Blake, Shelley e Keats, além de serem criadores de mitos, são de um modo ou de outro, contrários ao Cristianismo. Blake se autodenomina cristão, mas com persuasão redefine o Cristianismo, tratando- o como um humanismo apocalíptico de sua própria extração. Shelley se coloca contra o cristianismo histórico e institucional em toda a sua poesia, desde “Queen Mab” até o “Triunfo da Vida”.Keats acredita apenas na santidade dos afetos do coração, mas sempre se satisfaz com não polemizar contra o cristianismo formal na extensão em que o fazem Blake e Shelley. Qual teria primazia: o impulso criador de mitos e o compromisso com o modo mitopoéico, ou a postura religiosa contra o cristianismo? Não me cabe decidir, pois cada compromisso induz ao outro. Nos Hinos de 1816, de Shelley, a negação explícita do mito cristão e a formulação, vivificada pela tentativa, do próprio mito do poeta existem lado e nenhuma tem precedência. Embora eu não possa responder à questão, reconheço sua importância e validade. De minha parte gostaria de acreditar que a primazia aqui pertence ao próprio impulso mitopoéico. Embora eu me refira a Blake, Wordsworth, Coleridge, Byron e Keats com freqüência nesses capítulos, este é um estudo não de mitopoéia romântica em geral, mas apenas de Shelley. Mesmo as analogias que traço (especialmente no Capítulo 3) entre o romantismo e o titanismo falham, se aplicadas a um número excessivo de poetas. Blake, Byron e Shelley são prometéicos, titãs; Keats em “Hyperion” tenta mediar entre Titãs e Olímpicos. O Coleridge maduro e Wordsworth se alinham com os deuses celestes. Nenhuma generalização fácil resolverá o assunto; a precisão exige algo mais. Mesmo assim, a despeito dessa reserva, Shelley não é único, como criador de mitos, no romantismo. Coleridge e Wordsworth são influências poderosas, negativas e positivas, sobre o poeta dos ‘Hinos de 1816’. O prometeísmo de Byron é ativo no drama lírico de Shelley, e “Manfred” é certamente uma obra mitopoéica. Muita coisa em Keats poderia, com bons resultados, ser estudada como fatura mítica. Mas Blake se junta a Shelley aqui como sendo primordialmente um poeta mitopoéico. Yeats, o maior criador de mitos da moderna poesia, descende igualmente de Blake e de Shelley, numa proporção que os capítulos a seguir farão evidente. Porque Blake é um criador de sistemas, um mitógrafo que cataloga seus próprios significados, não hesitei em usá-lo como contraste iconográfico a Shelley nessas páginas, especialmente em relação ao arquétipo do paraíso inferior, a terra de Beulah. Ao longo desses capítulos utilizei a edição das obras completas de Shelley, de Thomas Hutchinson, The Complete Poetical Works of Shelley (London, Oxford University Press, 1904), para todas as citações e referências à poesia de Shelley. Onde me desviei do texto de Hutchinson, principalmente em “O Triunfo da Vida”, tentei dar conta das divergências e indicar a fonte do meu texto alternativo. Notas 1 Mythopoeic no original. 2 I-Thou and I-It, no original 3 Henri Frankfort, Mrs. H. A. Frankfort, John A. Wilson, Thorkild Jacobsen, Before Philosophy, London, Penguins, 1949. Chapters I, “Myth and Reality,” and 8, “The Emancipation of Thought from Myth,”ambos escritos pelos Frankforts, são relevantes para o meu tema. Eu-Tu é contrastado a Eu-Isso nas páginas 12-14, em particular. 4 Frankfort et al., p. 12. Seguindo citações das pp. 14,15,16,22, 32. 5 Mythology and the Renaissance Tradition in English Poetry, Minneapolis, Univ. of Minnesota Press, 1932; e Mythology and the Romantic Tradition in English Poetry, Cambridge, Harvard Univ. Press, 1937, com um capítulo sobre Shelley. 6 Frankfort et al., p. 19 7 Ibid., p.13 8 Buber, p. 63. 9 Eu interpreto “the weary day turned to his rest”, do verso 19 (estrofe III) como um “Dia” diferente do “Dia” da estrofe II. O Dia da estrofe II é um Dia mítico, o contrário da “Noite” que o poema endereça. O “Dia” do verso 19 é o Sol, assim como acostumei-me a ler o poema. Pottle compara essa “exuberância de invenção”, que pode inegavelmente tornar-se confusa, às diversas representações da terra em “Prometheus Unbound.” N da T. “Naturalmente, em português é inevitável que o dia seja masculino e a noite feminina.” 10 A partir desse parágrafo Bloom antecipa a análise que desenvolverá ao longo do livro, o que é natural, uma vez que o capítulo que aqui se publica é uma introdução ao Shelley Mythmaking. Entretanto não deixa de ser, esse texto que aí se inicia, uma freada brusca, uma pisada no pedal, ao modo drummondiano, contrastantes com o clima de alta tensão romântica tanto da sua prosa quanto do poema shelleyano. Os sons que antes se ouviam são abafados e mantidos em suspensão. Creio que este é um modo poético próprio da prosa de Harold Bloom, constatável em grande parte dos seus textos. Sem mais notícia resvala ele para o terreno da informação mais concreta, por vezes episódica e banal. ___ *HAROLD BLOOM, “Sterling Professor” de Ciências Humanas pela Universidade de Yale, é autor de inúmeras obras, como: Shakespeare: A invenção do Humano (1999), Um Mapa da Desleitura (1975), O Cânone Ocidental (1994) e A Angústia da Influência (1973), O Apocalipse de Blake (1963), A Companhia Visionária (1961) e Shelley: Engenho de Mitos (1957), estas três últimas sem tradução para o português. **SUELI CAVENDISH, professora de Literatura de Língua Inglesa na Universidade de Pernambuco/UPE, é ensaísta e tradutora. Entre ensaios publicados se incluem: “A Fúria Poética em ‘Carcassonne´” de William Faulkner (Revista Continente Multicultural, 2002) e “Edgar Allan Poe: Entre o Lógico e o Louco” (Revista Continente Multicultural,2002). Entre as traduções se incluem os contos “Carcassonne” (Revista Continente Multicultural, 2002) e “A Tarde de uma Vaca” (no prelo). de W. Faulkner e o livro “Deleuze: Um Aprendizado em Filosofia” de Michael Hardt (Editora 34 Letras, 1996). A tradução do poema “À Noite”, de Shelley, é de Paulo Henriques Britto, que contribuiu também com sugestões à tradução deste artigo. |
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