A EXIGÊNCIA FRAGMENTÁRIA

Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy*


Tradução e apresentação: João Camillo Penna**



Apresentação

Extraído de L’ Absolu Littéraire. Paris: Ed. du Seuil, 1978. A estrutura do volume intercala capítulos de autoria de Philippe Lacoue-Labarthe e Jean- Luc Nancy, com a tradução francesa de conjuntos de textos dos primeiros românticos alemães, feita em colaboração com Anne-Marie Lang, incluindo as primeiras traduções integrais para o francês dos Fragmentos: Lyceum, Athenäum, Idéias, etc. O volume constitui, em grande medida, entre outras coisas, uma generosa introdução e apresentação da obra dos primeiros românticos alemães ao público francês. Enquanto comentário envolvente destes fragmentos, os capítulos “teóricos” – e o presente não poderia ser uma exceção – fazem referências freqüentes aos fragmentos que discutem. A presente tradução remete-se, portanto, à tradução brasileira dos fragmentos citados. Mantiveram-se aqui ainda em sua integralidade as observações de ordem editorial e metodológica sobre os fragmentos que o capítulo apresenta, assim como todas as referências que remetem a outras partes do volume. A opção pode provocar às vezes estranheza no leitor, apresentado a um texto vazado por remissões exteriores ao contorno do capítulo, mas visa antes de mais nada a assegurar a estrutura e a integridade do texto tal qual foi concebido por seus autores. De resto, resvalamos na própria problemática do fragmento, já que, como veremos, “toda a completude tem de parecer faltar algo, como se tivesse sido arrancado.”


Há tanta poesia, e no entanto, nada é mais raro que um poema!
Eis o que faz a abundância de esboços, estudos, fragmentos, tendências,
ruínas e de materiais poéticos.

F. Schlegel
, Fragmentos críticos, Lyceum, 4.1

 
O ROMANTISMO SERIA ENTÃO O QUE PÕE em jogo um outro “modelo” de “obra”. Ou ainda, e sendo mais preciso, o que põe em obra [met l´oeuvre] de um modo diferente.2 O que não quer dizer que o romantismo seja o momento, o aspecto, ou o registro “literário” do idealismo filosófico – nem, de resto, que o inverso seja justo. A diferença no obrar [mise en oeuvre] – pode-se dizer também: a diferença de operação – que precisa ser sinalizada entre Schelling e o Athenäum3 para circunscrever a especificidade do romantismo não remete de forma alguma à diferença entre o filosófico e o literário; antes, ela a torna possível, sendo ela própria a diferença interna que afeta, neste momento de crise, o pensamento da “obra” em geral (moral, política, ou religiosa assim como artística e teórica). Da mesma forma, poder-se-á encontrar sem dificuldades, mesmo que não sem surpresa, em todos os fragmentos que se seguem, muitas proposições concernindo toda sorte de domínios ou de operações estranhas à literatura. E teremos várias vezes a ocasião de constatar que é apenas com a condição de encarar o caráter total da empresa que poderemos situar, com alguma precisão, a “teoria literária” dos Românticos.

Resta, no entanto – e é daí que é preciso partir –, que é bem uma idéia da obra literária ou poética, qualquer que seja, por ora, o seu conteúdo exato, que orienta e informa precisamente a empresa em sua totalidade. E que orienta e informa, em primeiro lugar, pelo gênero em que são escritos os textos sem dúvida mais célebres dos Românticos de Jena, o gênero ao qual ele é mais ou menos inevitavelmente associado: o fragmento. Mais ainda do que o “gênero” do romantismo teórico, o fragmento é considerado a sua encarnação, a marca mais distintiva de sua originalidade, e o signo de sua radical modernidade. E é bem, de fato, o que reivindicaram ao menos os próprios Friedrich Schlegel e Novalis,4 se bem que cada um de uma maneira diferente. O fragmento é precisamente o gênero romântico por excelência.

Isto, no entanto, só é absolutamente exato sob certas condições, que convém precisar, antes de poder abordar o gênero em si mesmo.

A primeira destas condições consiste em lembrar que o gênero do fragmento não é uma invenção de Jena. Longe disso, Friedrich Schlegel recebe, ao contrário, a revelação do fragmento, se podemos dizer assim, da primeira publicação de Pensamentos, Máximas e Anedotas, de Chamfort, publicação póstuma que teve lugar em 1795.5 Através de Chamfort, o gênero e o motivo do fragmento remetem a toda a tradição dos moralistas ingleses e franceses (digamos, para reter apenas os dois nomes sintomáticos: Shaftesbury e la Rochefoucauld), a qual por sua vez, através da publicação dos Pensamentos de Pascal, nas condições que conhecemos, obrigam-nos a remontar ao “gênero” cujo paradigma é erigido em toda a história moderna, pelos Ensaios de Montaigne. Deveremos retornar adiante à significação desta filiação, aqui esboçada mais do que grosseiramente. Contentemo-nos, por ora, em salientar que, com o fragmento, os Românticos recolhem de fato uma herança, a herança de um gênero que se pode caracterizar, pelo menos do exterior, por três traços: o relativo inacabamento (“ensaio”) ou ausência de desenvolvimento discursivo (“pensamento”) de cada uma de suas peças; a variedade e a mistura dos objetos que podem ser tratados por um mesmo conjunto de peças; a unidade do conjunto, por outro lado, como constituída de certa maneira fora da obra, no sujeito que se dá a ver aí ou no juízo fornecido por suas máximas. Sublinhar esta parte considerável da herança, não tem por finalidade reduzir a originalidade dos Românticos: trata-se, ao contrário, de aquilatar o que eles tiveram a originalidade de querer realizar até o fim – e que constitui justamente o próprio gênero da originalidade, o gênero, falando absolutamente, do sujeito, à medida em que este não possa ou não possa mais ser concebido sob a forma de um Discurso do método6 e cuja reflexão ele ainda não empreendeu verdadeiramente enquanto sujeito.

A segunda condição consiste em colocar em relevo um estado de coisas que é, um pouco freqüentemente demais, desconhecido ou negligenciado: a saber, que os fragmentos escritos pelos membros do grupo de Jena estão longe de constituir um conjunto homogêneo e indiferenciado do qual todos os fragmentos seriam “fragmentos” ao mesmo título, como o deixa entender a menção, corrente em citações, como: “um fragmento de Novalis diz que...”. Só existe, em realidade, um conjunto, aquele que foi publicado sob o título único de Fragmentos, que responde em todos os pontos (se isso é de todo possível) ao ideal fragmentário do romantismo, notadamente pelo fato de que nenhum objeto particular lhe seja consignado e por ser anônimo, sendo composto de peças de vários autores. A bem dizer, estes dois traços são também os que, na forma, distinguem-nos de seus modelos anteriores. Sem objetivo, e sem autor, os Fragmentos do Athenäum querem-se de certa forma postos por si mesmos, absolutamente. Mas eles são os únicos a representar, assim, a “pureza” do gênero, e qualquer que seja a importância de seu volume total, esta existência única, paradoxalmente pontual, não é certamente indiferente à caracterização do gênero. Os Fragmentos críticos de F. Schlegel anteriores são especificados por seus epítetos e pela assinatura. Assim é quase de forma idêntica com os que Novalis publicou, igualmente antes dos Fragmentos, no Athenäum: mais precisamente, entre o seu título (Pólen), o exórdio e a “conclusão” (o último fragmento),7 eles enfeixam uma teoria do próprio fragmento como semente em vista de um tipo de obra inédita. É quase desnecessário, de outra parte, mencionar o outro conjunto de fragmentos – ou de aforismas – devidos a Novalis, de tal forma o seu título, Fé e Amor, é suficiente para distingui-lo dos precedentes. Quanto ao segundo conjunto publicado no Athenäum por F. Schlegel, e que contém, ele também, em sua conclusão, uma teoria de sua forma, ele representa sem dúvida um desvio ainda mais decisivo já no próprio título: Idéias, o qual consiste, em suma, em anunciar outra coisa que não puros fragmentos. Será preciso retornar a estas diferenças, e bem especialmente, já o percebemos, à última.

Mas é preciso, além disso, e sem delongas, dissipar uma outra confusão: da quantidade considerável de escritos póstumos dos Românticos (sobretudo quando se trata de F. Schlegel), costumamos citar excertos com a indicação de “fragmento” (não se precisa nem sempre mesmo “póstumo”), sem buscar adiante distinguir se se trata de esboços interrompidos ou de fragmentos destinados à publicação como tal.8 Entretemos assim – e às vezes exploramos – uma indistinção entre, digamos, o trecho marcado de inacabamento e aquele que visa à própria fragmentação. Deixamos assim, em uma penumbra propícia, o essencial do que o gênero implica: o fragmento como propósito determinado e deliberado, assumindo ou transfigurando o acidental e o involuntário da fragmentação.

É preciso enfim acrescentar uma última condição: o fragmento está muito longe de ser a única forma de expressão dos Românticos. O próprio Athenäum comportou no todo mais textos longos – ensaios, resenhas, diálogos e cartas – do que fragmentos, para não falar dos textos publicados alhures pelos autores do grupo, nem dos numerosos cursos e conferências proferidas pelos irmãos Schlegel. Ou seja, os próprios Românticos estão longe de haverem se limitado ao enunciado considerado como “romântico” – o fragmento – da teoria; eles a expuseram (em todo o caso, os Schlegel) na forma clássica de exposição, e sabemos, por seus escritos póstumos (trata-se agora mais de F. Schlegel e Novalis), que eles esboçaram projetos de exposição completa, inteiramente articulada – ou seja, sejam quais forem as diferenças que estes projetos possam apresentar com relação ao tratado filosófico clássico (com relação ao de Fichte ou do Schelling do Sistema do idealismo transcendental), eles também visaram à apresentação sistemática da teoria, sua apresentação propriamente teórica. Seremos conduzidos adiante a complicar esta afirmação: mas nos é necessário, em primeiro lugar, partir desta observação de que o fragmento não exclui a exposição sistemática. O que não quer dizer que esta seja um acréscimo ou um resto de hábitos universitários. A co-presença do fragmento com o sistemático tem uma dupla e decisiva significação: ela implica que tanto um quanto o outro se estabelecem, em Jena, no mesmo horizonte – e que este horizonte é o próprio horizonte do Sistema, cuja exigência o romantismo recolhe e relança.

Estas observações preliminares justificam em primeiro lugar a escolha dos textos publicados nesta seção. Trata-se de dois conjuntos de fragmentos mais propriamente (ou menos impropriamente) ditos, aos quais, bem entendido, é preciso não deixar de associar o Pólen de Novalis. As Idéias de F. Schlegel pertencerão à seção seguinte, por razões que podemos, sem dúvida, adivinhar e que serão precisadas adiante. Encontraremos portanto aqui:
– Os Fragmentos críticos publicados em 1797 por F. Schlegel na revista Liceu das belas-artes (em Berlim, 1o volume, 2a parte) dirigida por Reichardt. São os primeiros fragmentos publicados pelo autor, para quem a descoberta de Chamfort, e do gênero, era recente. Eles são ao mesmo tempo contemporâneos do projeto de fundação do Athenäum, que deveria começar a sair no ano seguinte, e observaremos que o fragmento 114 constitui uma chamada à fundação de um grupo e de uma revista que se consagrava exclusivamente a “realizar aos poucos a também ne cessária crítica” (DF p.38). De resto, F. Schlegel brigou com Reichardt por causa da zombaria, no fragmento precedente (113), feita ao filólogo Voss, cuja tradução de Homero gozava de autoridade.

– Os Fragmentos publicados no segundo número do primeiro volume do Athenäum, em 1798. Desde a publicação anônima destes fragmentos, seja a declaração de certos autores (em particular A. Schlegel, desde 1801), seja os trabalhos modernos de erudição, permitiram imputar a tal ou qual autor um número bastante importante de fragmentos. As edições correntes se fundamentam ainda em particular sobre a lista atribuída a F. Schlegel por seu editor Minor. Entretanto, trabalhos mais recentes, e em particular os de Eichner na edição crítica do mesmo F. Schlegel,9 tornaram menos segura uma parte não negligenciável destas atribuições. Reproduzimos, ao final da tradução dos Fragmentos, o quadro das atribuições tal qual ele foi estabelecido por Eichner.10
As precauções que devem ser tomadas para abordar, do exterior, o fragmento, consistem em propô-lo como um gênero ou uma forma precisa, determinada, tendo a ver com o propósito ou o projeto geral do Sistema. Em nenhum lugar, no entanto, qualquer um dos Românticos deu uma definição do fragmento que permitisse, sem delongas, fornecer um conteúdo a este quadro. É da prática dos fragmentos que é preciso partir para tentar apreender a natureza e o que está em jogo no fragmento.

E, em primeiro lugar, do uso do termo fragmento. Não ocorre praticamente nunca nestes textos que o seu emprego o confunda com o puro e simples trecho separado,11 resíduo de um conjunto partido (razão pela qual os Românticos digam Bruchstück, “trecho”, literalmente: “peça rompida”), nem com o bloco errático (como as “boas massas”, aqui, Massen, salvos em Jean Paul, no Athenäum 42. DF pp. 132-134).12 Se o fragmento é bem uma fração, ele não põe em primeiro lugar, nem exclusivamente, o acento sobre a fratura que o produziu. Ele designa no mínimo, se podemos dizer, tanto as bordas da fratura como forma autônoma quanto à informidade ou à disformidade do rasgo. Mas é também porque o fragmento, termo erudito, é um termo nobre: ele possui antes de mais nada uma acepção filológica – e teremos que retornar à ligação capital entre o modelo antigo e o estado de fragmento de muitos dos textos da Antigüidade. O fragmento filológico pode investir, na tradição de Diderot em particular, o valor de ruína. Ruína e fragmento reúnem as funções do monumento e da evocação: e o que é desta forma lembrado como perdido, e apresentado como uma espécie de esboço (quase de depuração), é sempre a unidade viva de uma grande individualidade, obra ou autor.

O fragmento é também um termo literário: já publicara-se no século XVIII, mesmo na Alemanha, “Fragmentos”,13 ou seja, precisamente pela forma, ensaios à maneira de Montaigne. O fragmento designa a exposição que não pretende à exaustividade, e corresponde à idéia, sem dúvida propriamente moderna, de que o inacabado pode, ou mesmo deve, ser publicado (ou ainda à idéia de que o publicado não é nunca acabado). Desta maneira, o fragmento se delimita por uma dupla diferença: se, de uma parte, ele não é puro trecho, de outra, ele não é tampouco nenhum destes termos-gêneros de que se serviram os especialistas: pensamento, máxima, sentença, opinião, anedota, observação. Estes têm mais ou menos em comum a pretensão a um inacabamento da própria cunhagem do “trecho”. O fragmento, ao contrário, compreende um inacabamento essencial. É por isso que ele é, segundo o Athenäum 22, idêntico ao projeto, “fragmento do futuro” (DF p.50), à medida em que o inacabamento constitutivo do projeto é precisamente o que ele tem de melhor, devido a sua “capacidade de ao mesmo tempo idealizar e realizar imediatamente” (ibidem).14 Neste sentido, todo fragmento é projeto: o fragmento-projeto não vale como programa ou prospecto, mas como projeção imediata daquilo que, no entanto, ele inacaba.

Quer dizer que o fragmento funciona simultaneamente como resto de individualidade e como individualidade – o que explica também que ele não seja nunca definido, ou que estas aproximações de definição possam ser contraditórias. Quando F. Schlegel anota “os aforismas são fragmentos coerentes”, 15 ele indica que uma propriedade do fragmento é a falta de unidade e de completude. Mas o célebre fragmento 206 do Athenäum enuncia que o fragmento “tem de ser (...) acabado em si mesmo como um porco-espinho” (DF, p. 82). Seu dever-ser, senão seu ser (mas não é preciso entender que há apenas ser enquanto dever-ser, e que este porco-espinho é um animal kantiano?), é formado precisamente pela integridade e pela integralidade da individualidade orgânica.

Mas devemos, de fato, ler este fragmento 206 inteiro: “Um fragmento tem de ser como uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundante e perfeito e acabado em si mesmo como um porco-espinho” (ibidem). A fragmentação é, portanto, compreendida aqui como separação, isolamento, o que vem a reconduzir exatamente à completude e à totalidade. Para emprestar um termo de uma tradição posterior, mas que não será sem relação com o romantismo, a de Schopenhauer e de Nietzsche, seremos ten tados a dizer que a essência do fragmento é a individuação. Este termo, enquanto indicador de um processo e não de um estado, terá para si o grande fragmento 116 do Athenäum, que dá como “essência verdadeira” da poesia romântica “a de só poder vir a ser, jamais ser de maneira perfeita e acabada” (DF, p. 65). E de uma certa maneira, o fragmento 116 volta, de fato, a definir a totalidade da “poesia romântica”, ou seja, a totalidade da poesia, como fragmento. Da mesma forma acabamos de ler que o fragmento deve ter os traços da obra, e da obra de arte.

Entretanto, além do fato de que uma definição circular do fragmento pela poesia “universal progressiva”, e reciprocamente, não faz mais do que aguçar ainda mais a questão do fragmento – e mesmo negligenciando de outra parte, por ora, o fato de a poesia “romântica” do fragmento 116 não esgotar a idéia ou o ideal da poesia total, infinita, dos Românticos –, o fragmento não é tampouco simplesmente a obra-projeto desta poesia. Ele é ao mesmo tempo mais e menos. Ele é mais na medida em que propõe a exigência de seu total acabamento, em suma, o inverso da poesia “progressiva”. Mas é menos na medida em que, no fragmento 206, como em vários outros, ele é proposto apenas como comparação com a obra de arte – e com uma pequena obra de arte. A obra fragmentária não é direta nem absolutamente obra. Mas é, no entanto, em sua relação com a obra que é preciso entender a sua individualidade própria.

A individidualidade fragmentária é, antes de mais nada, a multiplicidade inerente ao gênero – os Românticos pelo menos não publicaram um Fragmento único –; escrever sob a forma de fragmento é escrever em fragmentos. Mas este plural é o modo específico pelo qual o fragmento visa, indica, e, de uma certa maneira, põe o singular da totalidade. É até certo ponto legítimo aplicar a todos os Fragmentos a fórmula empregada por F. Schlegel para as Idéias: cada um deles “indica o centro” (Idéias, 155. DF, p.164). Entretanto, nem um nem outro conceito empregado aqui pertencem ao espaço dos Fragmentos propriamente ditos, e é preciso dizer que não se trata com eles exatamente nem de um “indicar” nem de um “centro”. Antes, a totalidade fragmentária, conforme o que deveríamos nos arriscar a nomear a lógica do porco-espinho, não pode ser situada em nenhum ponto: ela está simultaneamente no todo e na parte. Cada fragmento vale por si mesmo em sua individualidade acabada. Da mesma forma é a totalidade plural dos fragmentos que não compõem um todo (de um modo, digamos, matemático), mas que replica o todo, o próprio fragmentário, em cada fragmento. Que a totalidade esteja presente como tal em cada parte, e que o todo seja não a soma mas a co-presença das partes enquanto co-presença, finalmente, do todo a si mesmo (já que o todo é também separação e acabamento da parte), tal é a necessidade da essência que se desdobra a partir da individualidade do fragmento: o todo-separado é o indivíduo, e “para cada indivíduo há infinitas definições reais” (Athenäum, 82. DF, p.59). Os fragmentos são, para o fragmento, suas definições, e é o que instala a sua totalidade como pluralidade, e o acabamento como inacabamento da infinitude.

É também o que, aliás, obrigaria a analisar – mas nós o assinalamos aqui simplesmente de passagem – o modo como o “gênero” fragmentário não é talvez, de fato, limitado à forma-fragmento dos Românticos. Pode-se ler em Athenäum 77 a maneira como diálogo, cartas e “memórias” (outra forma de monumento) remetem ao fragmentário; poderemos ver também nas seções seguintes como os textos “longos” [suivis] dos Românticos – aqueles mesmos que invocamos há pouco, a título de exposição “sistemática” – apresentam- se de fato freqüentemente, em sua composição, sob o regime que precisa ser denominado fragmentário. Isto se deve sem qualquer dúvida, e em parte, a uma espécie de inaptidão ou de incapacidade de praticar uma verdadeira exposição sistemática, no sentido mais ordinário do termo. Mas isto testemunha sobretudo da impossibilidade fundamental de proceder a uma tal exposição, já que falta uma ordem de princípios a partir da qual se desdobra a ordem das razões. Uma tal ordem falta aqui – mas é em suma por excesso, por assim dizer, mais do que por falta. A exposição não saberia se desenvolver a partir de um princípio, ou de um fundamento, já que o “fundamento” pressuposto pela fragmentação consiste precisamente na totalidade fragmentária, em sua organicidade. O fragmento constitui-se assim na escrita mais “mimológica”16 da organicidade individual. É assim que leremos no fragmento 103 do Lyceum o elogio, contra as “obras apreciadas pelo belo encadeamento”, das que consistem em “uma diversificada porção de achados” (DF, p.35), cuja identidade profunda, substancial, repousa sobre o “convívio livre e igual” das partes. Uma política ideal – e, conseqüentemente, segundo a mais constante tradição da política metafísica, uma política orgânica – fornece o modelo da fragmentação. De maneira análoga, se a Bíblia permanece ou torna-se o modelo do livro, é, como o vemos várias vezes, mas em particular em Idéias 95, como o livro plural (ta biblia), e, enquanto tal, Um.

É a mesma lógica obedecida pelo princípio, colocado em prática ao menos uma vez, da escrita coletiva17 dos fragmentos. O anonimato apaga os autores apenas para melhor assegurar, por aquilo que é nomeado em alguns lugares “sinfilosofia” ou “simpoesia”, a universalidade da visada do todo. Mais ainda, aqui não se trata de uma universalidade obtida por acréscimo, nem mesmo unicamente pela complementariedade dos indivíduos. Trata-se, de fato, do próprio método (e é de propósito que retomamos a palavra-mestra de Descartes) que convém ao acesso à verdade. A comunidade faz parte da definição da filosofia, como o prova o fragmento 344 do Athenäum: e isso porque seu objeto, o “conhecimento universal”, tem ele mesmo a forma e a natureza da comunidade, ou seja, o caráter orgânico. Aqui, de fato, como em Descartes – e por causa de Descartes – o objeto da filosofia determina-se segundo o objeto, e o anonimato dos Fragmentos, como o do Discurso, está aí para melhor assegurar a posição absoluta de seu sujeito: neste sentido, forçamos apenas um pouco as coisas ao dizer que os primeiros são simplesmente a coletivização do segundo.

Eles são também, em um outro sentido, a sua radicalização ou exacerbação. O objeto – o pensamento que a filosofia deve pensar –, em razão do seu fundamento subjetivo (cf. ainda aqui, Athenäum 77, que propõe o fragmentário, o fragmentário ideal, como identidade do objetivo e do subjetivo [DF p. 58]), deve doravante ser dotado de “fisionomia” (Athenäum, 302. DF, p.101). A fisionomia é o que deve, antes de mais nada, ser caracterizada “com alguns rabiscos” a lápis (ibidem): a fisionomia chama o esboço ou o fragmento como método filosófico. E, da mesma forma, esta filosofia de “pensamentos entremesclados” (ibidem DF, p. 100) implica a pluralidade dos autores. Pois não se chega à verdade pela via solitária da demonstração (tornada derisão em Athenäum 82), mas pela troca, pela mescla, pela amizade18 – e, voltaremos a isso adiante –, pelo amor. A sinfilosofia implica a troca ativa e o afrontamento dos indivíduos-filosófos. Ela implica também o diálogo, esta “coroa de fragmentos” (Athenäum 77. DF, p. 58), e sem nenhuma dúvida esta perfeição do diálogo que deve ser o ideal do drama romântico tal como dever-se-ia seguir o seu motivo discreto mas insistente, através dos Fragmentos, para localizar aí em particular o ideal da troca natural, e de sua encenação por sua vez natural. O acabamento do fragmento se perfila então na troca [échange] – ou troco [change] – absoluto, absolutamente natural, de pensamentos-indivíduos entre os indivíduos-pensamentos, que é também, em cada fragmento, a produção deste mesmo natural verdadeiro como obra de arte. A verdade do fragmento não está portanto completamente na “progressividade” infinita da “poesia romântica”, mas na infinitude em ato, pelo dispositivo fragmentário, do processo mesmo de verdade. E se desta forma o fragmento não é exatamente diálogo, é também talvez porque ele seja antes, o que faz a passagem do dialógico ao dialético, sob o modo pró prio ao romantismo. Com a condição de entendermos este termo, com Heidegger, no sentido recoberto por ele, para toda a metafísica, do pensamento da identidade pela mediação da não-identidade.19 Pois é aí exatamente que se assenta a totalidade fragmentária.

É preciso então necessariamente chegar a colocar – e sempre seguindo as análises de Heidegger, mas também, neste sentido, as de Benjamin20 – que a fragmentação constitui a visada propriamente romântica do Sistema, se por “Sistema” (que por esta razão munimos de uma maiúscula) entendermos não a ordenação dita sistemática do conjunto, mas aquilo pelo qual um conjunto se mantém junto, e se erige por si mesmo na autonomia do ajuntamento consigo mesmo que faz a sua sýstasis, para retomar as palavras de Heidegger.21 Que sobretudo não nos enganemos: não se trata de sustentar que o pensamento romântico é um pensamento sistemático. Podemos verificá-lo de muitas maneiras nos textos: ele se opõe a este tipo de pensamento. Mas poderemos antes verificar que ele se impõe como pensamento do Sistema, e segundo o esquema de que Benjamin fornece, sem dúvida, a melhor formulação, quando escreve de F. Schlegel: “De qualquer forma, o absoluto era para Schlegel, na época de Athenäum, o sistema na figura da arte. Mas ele não buscou compreender sistematicamente este absoluto; antes, ao contrário, tentou compreender de maneira absoluta o sistema.”22

E é por esta razão, porque o próprio Sistema deve ser absolutamente apreendido, que o fragmento como individualidade orgânica implica a obra, o organon. A sýstasis tem necessariamente lugar como organicidade de um organon, que este seja um vivente natural (o porco-espinho), sociedade, ou obra de arte. Ou melhor, que ele seja tudo isso ao mesmo tempo – como o indica a ausência de objeto especificado para a totalidade dos Fragmentos. Ou mais precisamente ainda, que, sendo tudo isso ao mesmo tempo (e segundo o “ao mesmo tempo” da fragmentação e da sinfilosofia), ele só possa finalmente ser, como obra de arte.

Não que o fragmento como tal encarne a obra. Já vimos que ele só se apresentava como analogon da obra – e é preciso voltar a isso adiante. Em nenhum lugar encontraremos nos textos uma teoria da obra como fragmento, pura e simplesmente – se bem que se possa vislumbrar por toda a parte traços e índices disso. A obra não cessa de implicar para os Românticos o motivo fundamental do acabamento. Através dele, tal motivo é mesmo levado ao seu cúmulo. A obra verdadeira, a obra absoluta, harmônica e universal, é esta “vida do espírito” em que “vivem todos os indivíduos”, tal como a apresenta o último dos Fragmentos (Athenäum 451. DF, p.142), e tal qual ela se distingue precisamente das “obras da poesia e da filosofia isoladas” (portanto, fragmentadas), cujo acabamento mesmo permanece inacabado. A obra neste sentido é ausente de obras – e a fragmentação é sempre também o sinal desta ausência. Mas este signo é ao menos ambivalente – segundo a lógica mais persistente deste tipo de pensamento cujo modelo é a teologia negativa –, e o lugar vazio contornado por uma coroa de fragmentos desenha muito exatamente os contornos da Obra. Basta apenas mais um passo, que consiste em pensar que a Obra como obra, como organon e indivíduo, dá-se precisamente por sua forma, para compreender simultaneamente que a Obra é, para além de toda a arte “isolada”, obra de arte, e que o “sistema de fragmentos” (Athenäum 77. DF, p. 58) desenha muito exatamente, por meio dos traços de sua configuração fragmentária, os contornos sem dúvida exteriores, mas que são os contornos próprios à Obra de arte, à sua Fisionomia absoluta.

Desta maneira, o fragmento em si fornece também, imediatamente, de certa forma, a verdade de toda obra. Além ou aquém da obra, ele propõe a sua operatividade mesma. Pois a obra é indivíduo – toda a obra é indivíduo, todo o conjunto de obras, como a Antigüidade, é indivíduo, conforme se lê em muitos fragmentos. O que é ainda mais propriamente individual que o indivíduo, ou o que torna a sua individualidade radical, é a abertura e a manifestação de sua vida e de sua verdade mais íntima (é a este motivo que é consagrado o mais longo dos Fragmentos, Athenäum 336. DA p.106s). Esta manifestação é necessária às obras – e de maneira ao mesmo tempo paradoxal e doravante previsível, é pelo fragmento que esta pode ter lugar. Da mesma forma como o fragmento da Antigüidade entrega a essencial originalidade da obra antiga, o fragmento moderno “caracteriza” esta originalidade, e pelo mesmo gesto esboça o “projeto” da obra futura, cuja individualidade reunirá e renderá [relèvera]23 dialeticamente (estamos de fato – salvo no que toca à arte – bem perto de Hegel) o diálogo pensante, vivo e operante dos fragmentos antigos e modernos.

A relação entre fragmento e Sistema, ou melhor, a absoluta apreensão fragmentária do Sistema, liga-se portanto à dialética que se trava no fragmento por ocasião [au sujet de] da Obra. O fragmento é, de fato, de uma certa maneira, a própria obra, ao menos “como uma pequena obra de arte”, à medida em que ele tem como tarefa apreender e “bosquejar” em todas as coisas – poema, época, ciência, costumes, pessoas, filosofia – a sua silhueta própria, se é que as coisas têm silhueta, ou seja, à medida em que ela seja (e se tenha) formada em obra. (O que explica o motivo tão constante e capital em todos os fragmentos da Bildung em seus dois valores de formação/tomar forma e de formação/cultura. O homem assim como a obra de arte só é o que é se gebildet, ao tomar forma e figura do que deve ser. O motivo da “educação do gênero humano” desabrocha e se transfigura em Jena, para além de Lessing, Herder e Schiller, no motivo da tomada de forma total de uma humanidade absolutamente essencial e absolutamente individual, na qual “todo indivíduo infinito é deus” e “há tantos deuses quanto ideais” (Athenäum 406. DF p. 128): o que consiste em dizer, ao mesmo tempo, que o acabamento da Bildung é a manifestação-em-forma do ideal (o qual não é o “inacessível”, mas a realidade da idéia, cf. Athenäum 412), ou o ideal como obra, e que o ideal, como o indivíduo, é tão numeroso quanto o fragmento – ou que é a idealidade que faz a pluralidade do fragmentário).

“Pequena obra”, o fragmento o é, portanto, também, sem dúvida, enquanto miniatura ou microcosmo da Obra. Mas o é também pelo fato de, detendo assim de alguma forma a função de obra da obra, ou da operação [mise en oeuvre] da obra, operar, em suma, ao mesmo tempo nas fundações da obra [en sous-oeuvre] e na cobertura da obra [en sur-oeuvre]. O fragmento figura – mas figurar, bilden e gestalten, é aqui obrar, e apresentar, darstellen – o fora do corpo da obra [hors-d’oeuvre] essencial à obra, mais essencial à obra do que a própria obra.24 Ela funciona como a [palavra francesa] exergue [exórdio], nos dois sentidos do verbo grego exergazômai: inscrevendo-se fora da obra, e completando-a.25 O fragmento romântico, longe de encenar a dispersão ou o despedaçamento da obra, inscreve a sua pluralidade como exórdio da obra total, infinita.

É sem dúvida também porque o infinito se apresenta apenas por seu exórdio – e que se a Darstellung do infinito constitui, após Kant e apesar dele, a preocupação essencial do idealismo, o romantismo, pela literatura em fragmento, forma o exórdio do idealismo filosófico. É aqui que os Românticos ocupam, juntamente com Hölderlin, a posição já lembrada por nós, e associada ao seu nome, na “Abertura”. O acabamento puramente teórico é impossível – é bem o que enuncia o fragmento 451 e muitos outros como ele, todos aqueles que reclamam a reunião da filosofia com a poesia –, pois o infinito teórico permanece assimptótico. O infinito em ato é a infinitude da obra de arte. Diferentemente de Hölderlin, e, no entanto, em uma proximidade muito maior com o idealismo, os Românticos propõem-se simultaneamente os motivos do infinito presente, efetuado, em uma obra resumida obstinadamente pela lógica do fragmento, segundo os contornos do seu ideal, e – o que é no fundo o correlato do que precede – do próprio infinito potencial enquanto atualidade da obra. De fato, para voltar ao fragmento 116 do Athenäum, é pela sua própria “progressividade” e infinitude de seu movimento que a “poesia romântica” forma, desde a Antigüidade e para todo o futuro, a verdade de toda poesia. O romantismo em ato, como sabemos, não está nunca aí – e sobretudo não na época daqueles que, aliás, não se nomeiam Românticos, nem mesmo quando escrevem o fragmento 116 –, já que “ainda não há nenhum que seja fragmentário” (Athenäum 77. DF p. 58): mas é exatamente não estando aí, nunca ainda aí, que o romantismo e o fragmento são, absolutamente. O work in progress enuncia doravante a infinita verdade da obra.

Em outras palavras ainda – e retomando o termo explorado aqui –, a poesia infinita do fragmento 116, ou “espírito em devir” da poesia do fragmento 93 (Lyceum. DF p. 34), ou a “poesia infinitamente valiosa” (Lyceum 87. DF. p. 33), são essencialmente poesia na medida de sua natureza poiética. O que é poético é menos a obra do que o que obra, é menos o organon do que o que organiza. E é aqui que o romantismo visa ao coração ou às profundezas – nesta “intimidade mais profunda” de que os textos são semeados, e que nos enganaríamos em remeter a uma interioridade sentimental – do indivíduo e do Sistema: sempre a poiesis, ou, para usar um equivalente, sempre a produção. O que faz um indivíduo, o que o faz manter-se junto, é a sýstasis que o produz; o que faz a sua individualidade é a sua capacidade de produzir, e, antes de mais nada, produzir-se a si mesmo, por esta “força formadora” – bildende Kraft herdada do organismo de Kant, e que o romantismo transcreve em vis poetica – interior que faz com que “no eu, tudo se forma organicamente” (Athenäum 338. DF p.112), e que “todos os homens cultos devem, em caso de necessidade, poder ser poetas” (Athenäum 430. DF p.138).

Trata-se, portanto, definitivamente de consignar o Sistema como Poesia, e de apreendê-lo no lugar mesmo de sua produção e como produção – de exibi-lo como produção original. É preciso, então, também apreender nesta mesma profundeza a unidade dialética da produção artificial – da arte – e da produção natural: da procriação, da germinação e do nascimento. Não devemos nunca nos esquecer, quando nos textos encontramos o termo ingênuo [naïf] (especialmente a propósito da poesia ingênua dos Antigos), que, desde Schiller,26 esta palavra recobre, ao mesmo tempo, a ingenuidade (a inocência) e a natividade. O motivo da reunião do Antigo e do Moderno, tal como podemos vê-lo circular tão freqüentemente nos fragmentos, consiste sempre na exigência de fazer renascer, segundo a poesia moderna, a antigüidade ingênua. O que reconduz ao fragmento: o fragmento é apenas em germe já que ele não é inteiramente completo (Athenäum 77), e o frag mento é um germe, uma semente; segundo o último Pólen de Novalis: “Fragmentos desta espécie são sementes literárias. Pode, sem dúvida, haver muito grão mouco entre eles – mas contanto que alguns brotem.”27A fragmentação não é portanto uma disseminação,28 mas a dispersão que convém à semeadura e às futuras colheitas. O gênero do fragmento é o gênero da geração.

Se o fragmento assinala assim o seu pertencimento profundo à ordem do orgânico é em primeiro lugar, com toda evidência, porque o próprio orgânico deve engendrar-se do fragmento e pelo fragmento e porque o orgânico é essencialmente a auto-formação, ou a forma verdadeira do sujeito. No eu, já o vimos acima, “tudo toma forma orgânica”. O fragmento, a este título, é tanto a forma da subjetividade – para retomar a palavra de Heidegger – quanto o é o discurso especulativo, tal qual ele se completa em Hegel.

Ou mais exatamente, ele forma o duplo ou o reverso deste discurso. Para este, como já para Fichte, a própria discursividade é tornada possível, em definitivo, pela presença original do organon total que pode engendrar todo o resto. Ainda que negligenciemos a extrema dificuldade do “começo” em Hegel, para considerá-lo em sua oposição ao gesto romântico, resta que no discurso filosófico a potência sistemática deve ser doada, em ato, desde o início. Basta que nos desviemos apenas um pouco deste dado de origem – e é este desvio que abre a possibilidade do romantismo no seio do idealismo, e do gênero literário como tal – para esbarrarmos, por exemplo, e sem nem mesmo sair da filosofia, na dificuldade ainda mais obscura (e que permanece obscura para o seu próprio autor) da Indiferença original de Schelling. Embora a Indiferença (que encontraremos adiante como Witz schlegeliano) façase conceito. Mas o organon romântico agrava ainda mais o seu caso, se podemos dizer assim, pelo fato de seu conceito, a sua própria concepção, seu sistema seminal, dar-se como fragmento e, portanto, sempre, apesar de tudo, nas fundações da obra [en sous-oeuvre]. A organicidade do fragmento designa também a fragmentação do organon, e – em vez do puro processo de crescimento – a necessidade de reconstituir a individualidade orgânica assim como de constituí-la. O modelo – mas que talvez não atinja completamente o status de modelo verdadeiro, de arquétipo – permanece sendo ainda aqui a Antigüidade em fragmentos, a paisagem em ruínas. O indivíduo – Grego, Romano, Romântico – é, antes de tudo, a ser reconstruído.

O que quer dizer, já que “ainda não há nenhum que seja fragmentário”, 29 que o fragmento representa também o trecho separado, o bloco errático. Não segundo uma alternância de valores da palavra “fragmento” ou das fun ções de diversos fragmentos: mas é absolutamente ao mesmo tempo e pelo mesmo gesto da fragmentação que o fragmento, por assim dizer, sistematiza- se e não se sistematiza. O fragmento sobre o fragmento-porco-espinho é este porco-espinho em sua proposição mesma, por meio do qual ele enuncia simultaneamente que o porco-espinho não está aí. O fragmento bloqueia em si mesmo, de certa forma, o acabamento e o inacabamento, ou de maneira ainda mais complexa, não seria sem dúvida impossível dizer que ele acaba e inacaba ao mesmo tempo a dialética do acabamento e do inacabamento. A este título, a fragmentação consistiria em concentrar ou precipitar sobre um ponto o processo pelo qual o discurso filosófico, ainda em Hegel, pode designar seu próprio inacabamento, controlá-lo e fazê-lo passar ao elemento do “puro pensamento”, que é o acabamento. O fragmento sobre o porcoespinho desenha, e faz todos os que o circundam desenharem, o puro contorno do porco-espinho, da Obra ausente; este mesmo gesto – simplesmente a escrita do fragmento – consiste, conseqüentemente, também em subtrair este fragmento da Obra, na ambigüidade indefinidamente renovada da pequena obra de arte, e consiste, em suma, em fragmentar o fragmento. Consiste, conseqüentemente, em deslocar a unidade orgânica do porco-espinho e apresentar a fragmentação dos Fragmentos apenas como um conjunto de membra disjecta: ou seja, ainda, se se quiser, em reinvestir de pronto, justamente no cerne do valor artístico do fragmento, sobre o seu valor filológico, e entregar a Modernidade a si própria apenas do modo com o qual ela recebe a Antigüidade, ou seja, sob o modo da perda completa da grande Individualidade.

A origem romântica é assim o sempre-já-perdido do Organon e é, conseqüentemente, pura e simplesmente o caos. A “diversificada porção de achados” do Lyceum 103 pode perfeitamente ser apreendida, segundo o seu “espírito”, como a harmonia de um verdadeiro sistema, resta, no entanto, ainda, que ele se dá, imediatamente, como “diversificada porção” – e que a época dos Românticos é a do caos das obras, ou das obras caóticas. F. Schlegel havia escrito, antes dos Fragmentos:30 “Quando observamos com igual atenção a ausência de regras e de objetivos do conjunto da poesia moderna e a excelência das partes tomadas isoladamente, a massa desta poesia aparece como um oceano de forças em luta onde as partículas da beleza dissolvida, os pedaços da arte dislocada se entrechocam na desordem de uma mistura turva. Podemos chamar de caos a tudo o que é sublime, belo e sedutor.” Assim, Jean Paul nos Fragmentos (Athenäum 421) é considerado um “caos”, o mesmo Jean Paul sobre o qual a Conversa sobre a poesia dirá que ele é, no entan to, “um dos únicos produtos românticos de nossa época tão pouco romântica”. Não apenas a época literária, mas, bem entendido, toda a época é caótica, como o sublinha entre outras coisas a Revolução Francesa (Athenäum 424). O caos é de fato a situação da “ingenuidade” sempre-já perdida da arte absoluta nunca advinda, e neste sentido o caos define também a condição do homem: “somos seres orgânicos em potência”, “caóticos”, diz um fragmento póstumo de F. Schlegel (e a este título é legítimo reconhecer na especificidade do romantismo uma espécie de persistência ou de resistência, no seio do idealismo, de uma parte ao menos do pensamento kantiano da finitude31).

Há, entretanto, se ousamos dizer, caos e caos. O fragmento 389 do Athenäum opõe ao “grotesco” moderno os “pavilhões chineses” da literatura (e o contexto faz aqui do grotesco um companheiro do caos), o “sábio caos”32 de várias filosofias antigas que “tiveram solidez bastante para durar mais que uma igreja gótica” e “da qual se poderia apreender a desorganização, ou nas quais a confusão é ordenadamente construída e simétrica” (DF p. 125). É preciso também, conforme os preceitos dos Românticos, ler a verdade da ironia33: o caos é também algo que se constrói, e é a partir daí que seria preciso agora fazer ainda uma leitura suplementar do fragmento sobre a “diversificada porção de achados” (DF, p. 35). A tarefa propriamente romântica – poiética – não é dissipar ou reabsorver o caos, mas construí-lo ou fazer Obra da desorganização. Para “seres orgânicos em potência”, a organização a geração podem e devem ter lugar no seio da desorganização – ao mesmo tempo como a sua própria paródia e segundo o verdadeiro “método e simetria” do Sistema. A este título, o fragmento é o gênero da paródia da operação da obra [mise en oeuvre], ou da produção paródica da obra, e termina sempre remetendo ao “caos” também como Obra exemplar, especialmente na sátira romana e mais ainda no drama shakesperiano (cf., por exemplo, Athenäum 383). Afirmando-se desta maneira ainda como dramatização, a fragmentação remeteria assim, ao mesmo tempo paródica e seriamente, ao seu próprio caos como gênero da Obra.

Ora, é nesta duplicidade bem conhecida da paródia que se refugiou justamente, e desde o início, um outro valor do caos. É preciso seguir algumas linhas do texto citado acima sobre o caos da poesia moderna para ler o seguinte: “Poderíamos chamar de caos a tudo o que é sublime, belo e sedutor, um caos que, semelhantemente ao caos antigo a partir do qual a lenda diz que se ordenou o mundo, está à espera de um amor e de um ódio para separar as partes diferentes, mas reunir as que se assemelham.” O caos é também o lugar das gerações possíveis, ele é potência de produção – e, desde Descartes, é reconstruindo o mundo a partir de um caos primitivo que o sujeito dá a medida do seu saber e de seu poder, ou seja, simplesmente, constitui-se em sujeito.

Seria preciso voltar adiante sobre o desenvolvimento deste motivo do caos, que não ocorre por acaso nas Idéias, fora dos fragmentos propriamente ditos. Contentemo-nos em reter, por ora, que a fragmentação enquanto caos é também a matéria oferecida ao criador de um mundo – neste sentido o Fragmento romântico ratifica e instala definitivamente a figura do artista como Autor e Criador.

Este criador, no entanto, não é o sujeito de um cogito, nem no sentido de um saber imediato de si, nem no sentido da posição de uma substância do sujeito.34 Ele é – por intermédio, portanto, da crítica decisiva que sofreu em Kant – o sujeito do juízo, o sujeito da operação crítica precisamente, ou seja, da operação que distingue os incompatíveis e constrói a unidade objetiva dos compatíveis. Nada além, em suma, do que o sujeito da operação “do ódio e do amor” pelo qual, segundo F. Schlegel, o caos poético moderno estaria à espera, ou melhor ainda, nada além do sujeito enquanto esta operação. À visada da Obra responde o estatuto que é preciso chamar operatório do sujeito.

É este estatuto operatório que é destacado em um dos motivos mais conhecidos do romantismo, o motivo do Witz [chiste], que tem para com a fragmentação o mais estreito vínculo.35 Com o Witz tocamos, sem dúvida, no elemento último e mais específico desta fragmentação, da mesma forma como, por outro lado, se quisermos medir o romantismo pelo Witz, somos conduzidos a traçar uma circunscrição mais estreita que o ordinário ao redor dele – em torno unicamente, ou quase, de F. Schlegel, Jean Paul, e mais tarde, Solger, acrescentando a isso um aspecto, mas apenas um aspecto, de certos textos de Novalis –, circunscrição em torno da qual, não por acaso, a crítica hegeliana da arte romântica se concentrará.

O Witz toca no fragmento em primeiro lugar enquanto ambos os “gêneros” (se podemos nomeá-los desta maneira) implicam o “achado” (Einfall, a idéia que “cai por cima” de nós, segundo a qual o achado é menos achado do que recebido). A “diversificada porção de achados” implica algo do Witz, exatamente como – já que “alguns achados chistosos são como o supreendente reencontro de dois pensamentos amigos após uma longa separação” (Athenäum 37. DF p. 53) – o Witz parece implicar nele toda a estrutura fragmentária, dialógica e dialética que acabamos de esboçar. A essência do “achado” é ser síntese de pensamentos. De uma tradição que remonta pelo menos ao século XVII, o Witz recebeu a qualificação fundamental de ser a reunião de heterogêneos, ou seja, ao mesmo tempo o substituto da verdadeira concepção (que tem lugar em e pelo homogêneo), e o duplo julgamento (que apenas liga o heterogêneo sob o controle do homogêneo). É porque de fato, desde a sua origem semântica (Witz duplica Wissen, “saber”), e através de toda a sua história sob as espécies do esprit francês e do wit inglês, o Witz constitui como que o outro “conceito” de saber, ou o nome e o “conceito” de um saber outro: ou seja, do saber outro que não o saber da discursividade analítica e predicativa. O que consiste em dizer que o Witz, tal qual os Românticos o recolhem e o enobrecem, constitui-se o mais perto possível daquilo que Hegel vai fixar com o nome de “saber absoluto”, que é menos absoluto por ser um saber sem limites do que por ser o saber que se sabe ao mesmo tempo que sabe o que sabe, e que forma assim o infinito em ato do saber, e o seu Sistema.36 O Witz representa muito exatamente uma síntese a priori, no sentido kantiano, mas desbastada das condições limitativas e dos procedimentos críticos de Kant, e comportando junto com a síntese de um objeto a do sujeito – ou pelo menos a síntese do poder produtor-sujeito: o Witz é em suma a este título a solução do enigma do esquematismo transcendental, tal qual o evocamos na “Abertura”.

Assim, o Witz não é apenas uma “forma” ou um “gênero” (aliás, como podemos ver nos Fragmentos, o gênero mais próprio da conversação, da sociabilidade (cf. Lyceum 9), o gênero de uma literatura representada como troca viva e livre de propósitos, de pensamentos e de sentimentos em uma sociedade de artistas, em um grupo como o dos Fragmentos) – é ao mesmo tempo, também, segundo uma pluralidade de valores que poderíamos localizar nos textos, uma qualidade atribuível a toda sorte de gêneros ou de obras, uma faculdade do espírito, um tipo de espírito. Ou talvez o espírito-tipo, aquele que apreende com um golpe de vista, e com a rapidez do relâmpago (a assonância Blitz-Witz foi muito praticada, embora não apareça nos Fragmentos), na confusão de um caos heterogêneo, as relações novas e inéditas, em suma, criativas que ele é capaz de dar a lume. “O Witz é criador, ele fabrica semelhanças”, escreve Novalis em Pólen. O Witz é um saber-ver imediato, absoluto: ele é a visão devolvida ao ponto cego do esquematismo, e a visão mergulhando, conseqüentemente, diretamente sobre a capacidade produtiva das obras. No Witz romântico se produz precisamente a assunção daquilo que nos é permitido nomear eidestética: ele se assemelha, resume e leva ao auge a metafísica da Idéia, do saber-de-si da Idéia em sua auto-manifestação. Ele não é de maneira alguma reservado a uma categoria de produções – grotescas, picantes, insólitas, em geral “bizarras”, para retomar a pala vra que encontramos, dentre outros lugares, em Athenäum 429 (DF p.137s): veremos, ao contrário, na leitura deste fragmento, como o “infinitamente bizarro” pode se estender a todos os gêneros e até à “suprema formação (Bildung)”, em outras palavras, como, de fato, se o bizarro pode ser infinito, é sem dúvida porque o infinito só pode ser bizarro em sua manifestação, senão em sua essência. Por estas bizarras combinações de heterogêneos, o Witz desempenha nada menos do que o papel mesmo do saber especulativo (também pode ser dito “fim em si”, Lyceum 59. DF p. 29; cf. também Lyceum 16 e 126).

Em sua Teoria da linguagem, um autor próximo dos Românticos, Bernhardi, escreverá em 1805 (e A. Schlegel citará a passagem em sua resenha da obra) que a “essência da verdade é ser Witz , pois toda ciência é Witz da inteligência, toda a arte é Witz da fantasia, e toda piada é witzig somente na medida em que ela lembra o Witz da verdade”. Veremos, percorrendo a rede de Fragmentos sobre o Witz que, se não encontramos aí – e por razões que ficarão claras adiante – uma fórmula absolutamente idêntica, estamos freqüentemente muito perto dela. Em tudo isso, o Witz fornece, no fundo, a essência do fragmento, e é precisamente o que o qualifica, no fragmento 9 do Lyceum (DF p. 22): “Chiste é espírito social incondicionado, ou genialidade fragmentária.” O que deve, antes de mais nada, ser entendido como genialidade do fragmento, genialidade poética da produção no instante, na luminosidade do relâmpago, da forma acabada do Sistema no seio do inacabamento do Caos. Na conflagração do Witz (cf. Lyceum 34 e 90), opera- se a especulação fragmentária, a identidade dialética do Sistema e do Caos.

Ao mesmo tempo, no entanto, o Witz reproduz ou manifesta o deslocamento fragmentário. Poderemos percorrer, na rede do Witz, a série de fragmentos que nos põem em alerta contra um Witz baixo, equívoco ou perigoso. Este gesto de desconfiança perante o Witz da parte de seus próprios praticantes é tão antigo quanto toda a sua tradição. O Witz nunca pôde ser verdadeiramente assimilado a um gênero ou a uma obra. Sua combinatória absoluta é sempre ameaçada pelo baixo de seu caráter infame, fugaz e quase informe. Também o Witz deve ser poetizado, como o diz o fragmento 116 do Athenäum. Idéia absoluta da Obra, ele é também o ainda-não-obra que deve ainda ser obrado. O motivo do Witz é, conseqüentemente, quase sempre dividido em dois: por um lado, convém reter ou conter o Witz “caótico”, “telúrico”, que provoca “calafrio e coagulação”, segundo os termos de vários fragmentos póstumos de F. Schlegel; mas por outro, é preciso, no entanto, e é mesmo a exigência maior quanto ao Witz, abandonar-se ao seu caráter fundamentalmente involuntário (cf. Athenäum 32, 106). Querer ter Witz é sossobrar na Witzelei [zombaria] (Athenäum 3237), o Witz forçado, artificial, o “pavilhão chinês” no lugar do drama shakespeariano. A soluçaõ paradoxalmente – e se podemos nomeá-la solução – encontra-se no fragmento 394 do Athenäum (DF p.126): “só se pode entender o verdadeiro chiste se é escrito.” É preciso retirá-lo às condições imediatamente explosivas, perigosas, de sua existência de salão. Ou seja, é preciso fazê-lo passar à obra.38 A escrita do fragmento constitui portanto, em suma, a Aufhebung dialética da antinomia interna do Witz. A “genialidade fragmentária” conserva o Witz como obra e o suprime como não-obra, sub-obra [sous-oeuvre] ou anti-obra. O que supõe, evidentemente, que a genialidade forma também a Aufhebung do voluntário e do involuntário.

Escrita e genialidade fornecem, portanto, as chaves do fragmento. A escrita enquanto passagem à forma, à legalidade formal da obra, podemos dizer, explorando sem excesso a comparação encontrada em Athenäum 394 (DF p. 126): “só se pode entender o verdadeiro chiste se é escrito, como as leis”; – e a genialidade como a auto-assunção do Witz, do espírito no Witz, segundo Athenäum 366: “Entendimento é espírito mecânico, o chiste é espírito químico, gênio é espírito orgânico” (cf. Athenäum 426). Que a verdade do organon se torne acessível na genialidade não é nada supreendente: nisso o romantismo é menos romântico do que herdeiro do século XVIII e de Kant. O que provém mais propriamente do romantismo é antes o fato de, a propósito do gênio – que no final das contas não é mais bem definido do que o fragmento nem do que o Witz –, travar-se nos Fragmentos toda a problemática do fragmentário. A começar por isso: que se “o chiste é genialidade fragmentária”, mas se por outro lado, para além do Witz, a obra verdadeiramente poética permanece tomada pela própria infinita “progressividade” romântica, temos o direito de nos perguntar se o gênio “orgânico” pode se apresentar na época do caos. Ele não pode, sem dúvida, tendo em vista que “a antigüidade inteira é um gênio, o único gênio que se pode chamar sem exagero grande, único e inatingível” (Athenäum 248. DF p. 91). Como o indivíduo, e porque é Indivíduo, o gênio é sempre-já perdido, e, como a Antigüidade, existe apenas como fragmentos.

Da mesma forma, podemos perceber em mais de um texto que o termo “gênio” designa de fato alternadamente o Gênio único, o indivíduo-Antigüidade, e um tipo que, por ser o tipo do criador, não deixa de ser inferior ou retirado com relação a este outro tipo, ou melhor, ideal, que constitui o homem culto (gebildet). O homem culto, absolutização romântica do honnête homme [homem honesto] e do Aufklärer, é o sujeito de uma razão superior acabada em sua forma total: tal é o “acabamento” celebrado no Athenäum 419, “divindade plácida sem a força trituradora do herói e a atividade formadora do artista” (DF p. 132). A Bildung enquanto acabamento designa alguma coisa que se subtrai ao devir e ao esforço do próprio bilden. Ela constitui de certa forma o Sistema como pura conjunção da forma consigo mesma, o Bild – ou a Idéia –, enfim, apresenta, e, em primeiro lugar, apresenta-se a si mesma. O gênio, ao contrário, implica, como o Witz, uma relativa informidade – senão disformidade – como potência de formalização [mise en forme]; ele implica o desvio da visão e da obra que se destaca em Athenäum 432 (“do conhecimento mais intuitivo e da visão do que deve ser produzido, o salto até aquilo que é perfeito e acabado permanecerá sempre infinito”, DF p.138s), o desvio infinito que o gênio transpõe, mas transpõe, se ousamos dizer, com um salto informe e cego. A produção das obras não é ainda, não é nunca o que ela é e deve ser essencialmente: a auto-produção igual a si mesma da Obra-Sujeito, da Obra-Saber-de-si-mesmo. É no entanto esta autoformação que é visada, veremo-lo suficientemente doravante, pelo dispositivo fragmentário. Mas esta visada implica precisamente, no mínimo, estas três exigências que formam os limites mesmos do fragmento (os limites que o definem e que resgatam todo fragmento da fragmentação absoluta):
– uma poesia capaz de perder-se a si própria no que ela apresenta (cf. Athenäum 116);
– a ironia como assunção sublime do Witz, posição da identidade absoluta do Eu criador e do nada das obras, a “bufonaria transcendental” (Lyceum 42. DF. 26s; cf. Lyceum 108);
– uma “arte combinatória” absoluta, permitindo à filosofia não ter de “esperar por achados geniais” (Athenäum 220. DF p.84s) e, portanto, escapar a acidentalidade do Witz e do gênio.
Como vemos, estas três exigências delimitam exatamente a forma requerida para o ideal do fragmento-porco-espinho. A Obra não deve ser outra coisa senão a auto-produção absolutamente necessária onde se nadificam todas as individualidades e todas as obras. Não é exatamente na genialidade artista, mas, mais rigorosamente, no que o Ideal faz dela – no sentido romântico da palavra –, na auto-produção necessária e na auto-necessidade da produção que se instala doravante a estrutura do Sistema-Sujeito, o Bild, para além de qualquer Bild, do fragmento, ou seja, do absoluto – ab-solutum, separada de tudo –, já que o porco-espinho não figura outra coisa.

Na via do absoluto, da absoluta absolução fragmentária, o romantismo segue a partir daí duas vias distintas e indefinidamente cruzadas. Uma, a de Novalis, redefine o Witz ao mesmo tempo como combinação e como dissolução: “Chiste, como princípio das afinidades, é ao mesmo tempo menstruum universale” (Pólen, loc.cit. p. 67). O dissolvente universal desfaz o sistemático, desfaz a identidade do poeta e o leva rumo a esta “dissolução no canto” evocada em um fragmento póstumo a respeito de Heinrich von Ofterdingen, e que comporta o sacrifício – em toda a sua ambigüidade – do poeta (“ele será sacrificado nos povos selvagens”). Mas a ambigüidade do sacrifício (a sacralização) responde à ambigüidade do motivo da dissolução, que reconduz a química do Witz à alquimia do menstruum, e, portanto, à Grande Obra, ao mesmo tempo que reconduz também à Auflösung (dissolução) no sentido que encontramos em particular em Kant, da assimilação orgânica, da “intussuscepção”.39

A outra via – schlegeliana – poderia ser a do fragmento 375 do Athenäum: a via que tende à “energia” ou ao “homem energético” definido pela “infinita plasticidade” de uma “força universal, por meio da qual todo homem se forma e age” (DF p.121s). A energia é levada ao infinito da obra e do sistema. Mas o que é esta plasticidade, senão precisamente a capacidade infinita da forma, do absoluto da forma – e o que é a energia, en-ergeia, senão o próprio obrar [mise en oeuvre], senão o organon acabado do qual todas as obras (de gênio) são apenas a potência (o ato aristotélico é a energeia, por oposição à dunamis, a potência)?

A dissolução e a energia, formas últimas do fragmento, reconduziriam, portanto, sem falta à obra-sujeito.

Resta, no entanto, ainda que o fragmento sobre a energia é único, é apenas um trecho errante no conjunto dos Fragmentos, e que se Novalis não compôs o texto da “dissolução do poeta”, não é apenas por ter morrido, mas porque esta obra, como todos os seus maiores projetos, não pararam de se perder na multiplicação de suas própria sementes. O que poderia talvez querer dizer que – pelo menos no que toca ao fragmento – o gesto mais específico do romantismo, aquele pelo qual ele se distinguiria de maneira infinitesimal e todavia mais decisiva do idealismo metafísico, seria aquele pelo qual, no seio mesmo da busca ou da teoria da Obra, ele abandona ou suprime discretamente e, no final de contas, sem querê-lo verdadeiramente, a própria Obra – e modifica-se de maneira apenas perceptível em “obra da ausência de obra”,40 como a qualifica Blanchot. É a particularidade finíssima, mas cortante, desta mutação que o motivo (e não a forma, nem o gênero, nem a idéia) do fragmento nos levou constantemente a perceber, sem no entanto nô-la dar a ver. Trata-se aqui, antes, não de uma mutação, mas de um deslocamento, ou de uma decalagem ínfima que constitui sem dúvida o que há de mais romântico – de mais moderno, para além de toda modernidade – no romantismo, e que são, no entanto, o que o romantismo não pára de ocultar de si mesmo, por detrás da própria Idéia de romantismo e de modernidade.

Digamos que o que o fragmento faz pressentir sem parar – para falar romanticamente, não sem ironia... –, anulando-o ao mesmo tempo sempre, é – para falar desta vez com Blanchot – “a busca de uma nova forma de acabamento que mobiliza – torna móvel – o todo ao interrompê-lo e através dos diversos modos de interrupção”. A este título, “a exigência fragmentária não exclui e sim ultrapassa a totalidade”. A este título, também, a dispersão seminal de Novalis excede ou extenua em si mesma a geração, e a dissemina. Há de fato, na obra romântica, interrupção e disseminação da obra romântica: na verdade, elas não são legíveis na própria obra, mesmo e sobretudo não ao privilegiar nela o fragmento, o Witz e o caos. Antes, segundo uma outra palavra de Blanchot, na “inoperância” [désoeuvrement], nunca nomeada, muito menos pensada, que se insinua por toda a parte nos interstícios da obra romântica. A “inoperância” não é o inacabamento; o inacabamento, como vimos, se acaba, e é o fragmento como tal; a “inoperância” não é nada senão a interrupção do fragmento. O fragmento se conclui e se interrompe no mesmo ponto: não é um ponto, uma pontuação, nem um trecho fraturado, apesar de tudo, da Obra fragmentária. O fragmento 383 do Athenäum diz, que podemos talvez apenas começar a reler apesar do que ele diz: “Há um gênero de chiste que, por sua consistência, precisão e simetria, se poderia chamar de arquitetônico. Ao se exteriorizar satiricamente, proporciona verdadeiros sarcasmos. Tem de ser, e todavia também não ser, devidamente sistemático; apesar de toda a completude, tem de parecer faltar algo, como se tivesse sido arrancado(...)” (DF p.124).


Notas

1Tradução de Márcio Suzuki. Schlegel, Friedrich. O dialeto dos fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 21. Daqui por diante referida simplesmente por DF, e seguida do número de página desta edição. (N. do T.)
2 O texto pode ser visto como uma longa meditação em torno do termo francês “oeuvre” (obra), expandindo-se em expressões idiomáticas que o incluem, que modulam o étimo grego, érgon (trabalho, ação), organon (instrumento), chegando a “organicidade”, “orgânico” e “organismo”, e o étimo latino, opera, opus, como em “operar”, “operação”. Até work (em work in progress) ou Werk (não tanto neste capítulo, mas no anterior). O jogo é freqüentemente intraduzível em português, e os equivalentes encontrados às vezes deixam a desejar. Assim, “met l’ oeuvre” (põe em obra); “mise en oeuvre” (obrar, operação), “oeuvre d’art” (obra de arte), “en sous-oeuvre” (nas fundações da obra, sub-obra), “en suroeuvre” (na cobertura da obra), “hors-d’oeuvre” (fora do corpo da obra), “exergue” (exórdio), “en-ergeia” (o “ato” na tradução de Santo Tomás de Aquino, por oposição à dunamis, a “potência”), chegando até o termo blanchotiano “désoeuvrement” (inoperância), em que de fato se fecha, abrindo-se, a leitura da obra fragmentária dos romantismo de Jena. (N. do T.)
3Sem esquecer a outra diferença – já assinalada [no capítulo anterior, “Abertura”] – que separa Hölderlin de toda Jena. Mas veremos adiante que se trata antes, nesta seção, da proximidade inicial entre os Românticos e Hölderlin.
4 Pois A. Schlegel está longe de haver dividido como seu irmão o ideal do fragmento, e parece mesmo de uma certa maneira praticado mais o gênero mais na tradição do século XVIII. Houve mesmo no grupo oposições ao “fragmento”, por exemplo, da parte de Caroline Schlegel. Se o Athenäum foi efêmero, a prática do fragmento o foi mais ainda, e figura de certa forma a “vanguarda” dentro da própria “vanguarda”.
5 Remeteremo-nos a Ayrault, Roger. Genèse du romantismo allemand. Paris: Aubier-Montaigne, 1961- 1976. Volume III, p. 111s, para a história das relações entre F. Schlegel e o texto de Chamfort, para a evolução de sua concepção da prática do fragmento, assim como para toda uma análise do “gênero” que não pretendemos substituir aqui.
6 Na medida, pelo menos – que não pode ser de forma alguma analisada aqui – em que o próprio Discurso remete também, em sua proveniência e em seu gênero mesmo, ao que é instaurado pelos Ensaios. A oposição simplificada de que é preciso fazer uso aqui não nos deve fazer esquecer de como a “crise” romântica é profundamente tributária da operação cartesiana: teremos adiante, sem dúvida, ocasiões suficientes de nos apercebermos disso.
7O exórdio: “Amigos, o chão está pobre, precisamos espalhar ricas sementes/Para que nos medrem colheitas apenas módicas”, em Novalis, Pólen. Fragmentos. Diálogos. Monólogo. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo: Iluminuras, 1988, p.36. Encontraremos mais adiante a citação do último fragmento. Fé e Amor, que evocamos imediatamente após, publicado em 1798, em uma outra revista (cf. op.cit., p. 327).
8 Igualmente sobre esta questão, Ayrault, Roger. loc.cit.
9 Kritische Friedrich Schlegel Ausgabe, hrsg. v. Ernst Behler unter Mitwirkung v. Jean-Jacques Anstett und Hans Eichner, Paderborn-Darmstadt-Zürich, 1958. (N. do T.)
10 Precisemos que os números que acompanham aqui os fragmentos, segundo um hábito cômodo já tradicional em muitas edições, não aparecem nas publicações originais. Nelas, ao contrário, cada fragmento era separado do seguinte por um traço no meio da página.
11 E os casos duvidosos são, sem dúvida, a cada vez, precisamente duvidosos, isto é, convidam a uma dupla leitura do texto, como podemos ver com o fragmento citado aqui em epígrafe (L. 4), ou com Atheneaum 24: “Muitas obras dos antigos se tornaram fragmentos. Muitas obras dos modernos já o são ao surgir” (DF, p. 51), no qual Ayrault vê exclusivamente o valor pejorativo do termo (loc. cit., p.120), enquanto a ironia pode perfeitamente ser acompanhada aqui da consciência da necessidade do fragmento, e, como veremos adiante, do “caos” na poesia moderna. Cf. de resto, a interpretação – ligada ao tema do fragmento-projeto – dada deste fragmento por Szondi, Poésie et Poétique de l’idéalisme allemand. Paris: Ed. du Seuil, 1977, p.104.
12 Cf. também Athenäum 305 (DF, p.101s).
13 Assim como, para tomar apenas dois exemplos, tanto os Fragmentos fisionômicos de Lavater (na verdade suíço e não alemão), quanto os Fragmentos de um anônimo de Lessing.
14 Sobre o motivo do “projeto”, cf. o fim da Carta sobre a filosofia de Friedrich Schlegel. (Em L’absolu littéraire, “Sur la philosophie [à Dorothéa]”, p. 247. N. do T.)
15 Cf. Ayrault, loc.cit., p.119.
16 O termo é emprestado de Gérard Genette. Devemos referir-nos a Mimologiques (Paris: Seuil, 1976) a propósito da concepção romântica da língua.
17 Antes do anonimato coletivo dos Fragmentos, Pólen, assinado por Novalis, continha já alguns fragmentos de F. Schlegel e de Schleiermacher, acrescentados pelo primeiro. É F. Schlegel, igualmente, quem retirou alguns fragmentos do manuscrito de Novalis, reservando-os para a publicação coletiva. Também convém manipular com circunspecção esta prática de escrita coletiva: ela representou um ideal, por um momento, apenas para F. Schlegel, essencialmente, e para Novalis. Ela parece por outro lado – sem que isso impeça de analisar-lhe o ideal como tal – ter também correspondido a uma prática bastante ditatorial de F. Schlegel...
18 Cf. também Athenäum 37.
19 É preciso remetermo-nos aqui a toda a análise decisiva da visada do sistema e do saber absoluto que se encontra no Schelling de Heidegger [curso de 1963, publicado na Alemanha em 1971, e traduzido para o francês por J.-F. Courtine. Paris: Gallimard, 1971], p.91s. Iremos nos basear constamente nela.
20 Benjamin, Walter. O conceito de crítica de arte do Romantismo alemão. (tradução: Marcio Seligmann- Silva. São Paulo: Iluminuras, 1999), o capítulo, “Sistema e conceito”, p. 48s.
21 O termo é de fato grego. Por exemplo no Dicionário de Bailly: sýstasis, do ático antigo, “ação de reunir, de organizar, de dispor.” Do qual se aparenta o próprio tò sýstema, “1) conjunto, total, massa; 2) grupo de homens”. O trecho a que se referem Lacoue-Labarthe e Nancy do Schelling de Heidegger é o seguinte: “O sistema não pode ser rejeitado, pois ele é necessariamente posto desde que o fato da liberdade é posto. Como assim? Se a liberdade de um indivíduo existe efetivamente, isso significa também que ela coexiste de uma certa maneira com a totalidade do mundo. Ora, é precisamente esta coexistência, esta con-sistência [Zusammenbestehen] – sýstasis – que designa o conceito, e mesmo já, o termo de “sistema”. Heidegger, Schelling, loc.cit., p. 93. (N. do T.)
22 Benjamin, loc.cit, tradução Seligmann, p. 53. (N. do T.)
23 “Relève” é a tradução proposta por Jacques Derrida para a Aufhebung hegeliana. Os tradutores de Margens da Filosofia, Joaquim Torres Costa e Antonio M. Magalhães, traduziram o termo por “superar”, o que não dá conta do sentido equívoco do termo alemão, ao mesmo tempo “suprimir” e “manter”. Opto aqui por “render”, que contém ao mesmo tempo o sentido de “substituir”, e o paradoxal (dialético) de “capitular” e “lucrar”. Derrida propõe pela primeira vez essa tradução no ensaio “O poço e a pirâmide”, em Margens da filosofia (São Paulo: Papirus, 1991). (N. do T.)
24 O texto joga com uma série de expressões francesas que contêm a palavra oeuvre, em geral de origem arquitetural. Assim, a primeira edição do Dictionnaire de l’Académie française de 1694, diz o seguinte sobre a oposição “Dans l’oeuvre, hors d’oeuvre”: “Termos de arquitetura, que significam dentro do corpo da obra, fora do corpo da obra. Assim, diz-se que uma escada, que um gabinete é dentro do corpo da obra [dans oeuvre], praticado no corpo da obra, para dizer que ele situa-se no corpo da edificação. E diz-se que ele é fora da obra [hors d’oeuvre], para dizer que ele situa-se fora do corpo da edificação, fora do prumo das paredes”. A este sentido literal de hors-d’oeuvre se somam muitos outros metafóricos, como “fora do assunto tratado”, ou o gastronômico, hoje em dia mais corrente, de: “entrada”, “antipasto”. “En sous-oeuvre”, segundo a edição de 1932-35 do Dicionário da Academia, é uma: “Locução adverbial. Termo de arquitetura. Consertar as fundaçãos [de uma edificação] sem o derrubar, sustentando-o”. (N. do T.)
25A palavra francesa, exergue, “apresentação”, “introdução”, “epígrafe”, que traduzo por “exórdio”, retoma diretamente o étimo grego ergon (etimologia: exergum, “espaço fora da obra”, do grego ergon, “obra”). O sentido primeiro da palavra francesa aparece em português nas palavras dicionarizadas (no Houaiss), mas pouco comuns, exergo (“ espaço, em medalhas ou moedas, destinado à gravação de data ou de inscrição”), e exergásia (“acabamento, trabalho do solo, cultura da terra”). (N. do T.)
26 Em seu ensaio Poesia ingênua e sentimental, surgido em 1795 (Tradução: Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1991), sobre o qual F. Schlegel fala longamente no prefácio de Sobre o estudo da poesia grega. O “ingênuo” recobriria mais precisamente o renascimento ou a ressurreição do natural (perdido) pela arte.
27Trata-se do fragmento 104, na classificação utilizada por Rubens Torres Filho. Polén. loc.cit. p. 93. (N. do T.)
28 No “sentido” tomado pela palavra em Derrida (La dissémination [A disseminação]. Paris: Seuil, 1973) de uma dispersão estéril do sêmen e do sêmico em geral, ou seja, do signo e do sentido.
29 Athenäum 77. DF p. 58. (N. do T.)
30 Em Estudo da poesia grega.
31 Seria preciso, a propósito, referir-se ao motivo do caos em Kant, para quem a necessidade de assegurar um uso regulador das Idéias – e um uso reflexivo do juízo –, sem entretanto poder ultrapassar este uso, é uma proteção contra o caos na qual, sem isso, seria abandonada a razão finita (cf. em particular a Primeira Introdução da Crítica da Faculdade de julgar).
32 Kunstchaos, isto é, o caos produzido pela arte ou pela técnica filosófica – e, conseqüentemente, um caos está para o caos verdadeiro um pouco como o “ingênuo” está para o “natural”.
33 Conforme o que o próprio F. Schlegel escreveu no texto Sobre a incompreensibilidade (i.e. do Athenäum) publicado na última edição da revista, quando ele se espanta que não se tenha ainda compreendido, a partir dos fragmentos sobre a ironia, que dever-se-ia saber decifrá-la nos textos da revista. Sobre o conceito schlegeliano de ironia, que poderemos apenas tocar ligeiramente abaixo, cf. B. Allemann, Ironie und Dictung, (Pfulling: Neske, 1956), p. 55s. Observaremos, aliás, com Allemann (p. 60), que no próprio F. Schlegel (ao contrário do que se produzirá na sistematização posterior de Solger) os conceitos de Witz e de ironia se comunicam freqüentemente.
34 Como o sublinha Benjamin (O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão. Tradução brasileira, loc.cit., p. 38), reside precisamente aí um dos pontos sobre os quais os Românticos se separaram de Fichte: enquanto que este propõe contra Descartes a primazia do Eu substancial sobre o pensamento, aqueles sustentam, apesar de Fichte, a primazia da reflexão, do refletir-se de todas as coisas, sobre o Eu. “ Para Fichte – escreve Benjamin – a consciência é ‘Eu’, para os românticos, ela é ‘si-mesmo’ (Selbst).”
35 Sobre o Witz, cf. o estudo de Ayrault (loc.cit., III, p.139s), assim que Ironie und Dichtung de Beda Allemann (loc.cit). Por outro lado, o tema da mescla química, investido completamente pelo Witz, é estudado por Peter Kapitza. Die frühromantische Theorie der Mischung [A teoria da mescla no primeiro romantismo] (Münich, 1968).
36 Assim, Heidegger, após haver definido a dialética como nós o lembramos acima [no capítulo anterior, “Abertura”], pode escrever (Schelling. loc.cit., p.99): “Friedrich Schlegel diz em algum lugar (Athenäum 82. DF p.59): ‘uma definição que não seja chistosa não vale nada.’ Podemos ver aqui uma transposição romântica da dialética idealista.” Esta afirmação abre, entretanto, ao mesmo tempo, a questão, como podemos ver, do que se joga exatamente na transposição como tal, ou no “jogo” que subsiste entre o idealismo e o romantismo.
37 “Deve-se ter chiste, sem o querer ter; senão surge zombaria [Witzelei], estilo alexandrino do chiste (DF p. 52). (N. do T.)
38 Quanto ao privilégio da escrita em geral, nos remeteremos, no que concerne a F. Schlegel, à Carta sobre a filosofia, e no que concerne a Novalis aos Diálogos (publicados em Pólen. loc.cit.). Qualquer que seja este privilégio, ela não abarca nunca verdadeiramente no romantismo um pensamento da escrita comparável ao da nossa nodernidade, e, mais especialmente ao de Blanchot ou de Derrida. Iremos nos convencer disso, por exemplo, seguindo nos textos o motivo do “espírito da letra” que funciona sempre no mínimo de maneira ambivalente. Se, contudo, o romantismo deixa na verdade abrir-se alguma coisa da possibilidade de um pensamento da escrita – como o observaremos adiante –, será antes a partir do motivo da fragmentação do que do da escrita.
39 Termo de biologia. Segundo o Houaiss: “Modo de crescimento por transformação e incorporação dos elementos formadores, característico dos seres vivos, que contrasta com o crescimento por aposição, observável nos minerais.” Vem do termo francês, intussusception (1650), “introdução de um corpo organizado de matérias nutritivas que ele absorve e assimila”. (N. do T.)
40 “L’ Athenaeum” em L’Entretien Infini, Paris: Gallimard, 1969, p. 517s para as citações que se seguem.

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*PHILIPPE LACOUE-LABARTHE é professor de filosofia aposentado da Faculdade de Filosofia, Ciências da Linguagem e Comunicação, da Universidade de Strasbourg. Autor com Jean-Luc Nancy, além de L’absolu Littéraire (1978), de O título da letra. Uma leitura de Lacan (1972; tradução brasileira: Escuta,1991); O mito nazista (1980;1991; tradução brasileira: Iluminuras, 2002). Publicou sozinho, dentre outros: Le sujet de la philosophie (Typographies I) (1979); La poésie comme expérience (1987); La fiction du politique (1987); Musica ficta (Figures de Wagner) (1991); e Agonie terminée, agonie interminable — Sur Maurice Blanchot (2003). Em português há uma coletânea de seus ensaios, Imitação dos modernos (Paz e Terra, 2000). Além disso é tradutor: Nietzsche. La naissance de la tragédie (1977); e de Hölderlin, L’Antigone de Sophocle (1978;1998) e Oedipe le tyran (1998). E diretor de teatro: Antigone, de Sófocles/Hölderlin(com Michel Deutsch) (1978 e 1979); Les phéniciennes, de Eurípides (com M. Deutsch) (1981); Oedipe le tyran de Sófocles/Hölderlin.

JEAN-LUC NANCY é professor de filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências da Linguagem e Comunicação da Universidade de Strasbourg. Além dos livros escritos em parceria com Philippe Lacoue-Labarthe mencionados acima, publicou sozinho, dentre outros: La remarque spéculative (1973); Le partade des voix (1982); La communauté desoeuvrée (1986); L’expérience de la liberté (1988); Une pensée finie (1990); Corpus (1992); Le sens du monde (1993; 2001); L’intrus (2000; sobre a experiência de seu transplante de coração); L’”il y a” du rapport sexuel (2001); L’évidence du film (com Abbas Kiarostami); La création do monde — ou la mondialisation (2002); Noli me tangere. Essai sur la levée du corps (2003).

**JOÃO CAMILLO PENNA, Doutor em Literatura Comparada pela Universidade da Califónia, Berkeley, em 1993, é professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. É organizador e tradutor da coletânea de ensaios do filósofo Philippe Lacoue-Labarthe, A Imitação dos Modernos (Paz e Terra, 2000).Entre os ensaios publicados destaca-se: “Este corpo, esta dor, esta fome: notas sobre o testemunho hispano-americano” em História, Memória, Literatura. O Testemunho na Era das Catástrofes (Editora Unicamp, 2003) e “Marcinho VP: Ensaio sobre a Construção do Personagem” em Estéticas da Crueldade (Atlântida, 2004).
 
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