A linguagem e o indizível em Nietzsche

 

 

Vitor Henriques – Mestrando em Teoria Literária

 

 

Para Roland Barthes, a vida de um amante é uma vida demoníaca, no sentido goethiano do termo encontrado em Werther, para quem os demônios somos nós, que nos expulsamos do paraíso. O amante para Barthes é aquele que fabrica sua Queda. E de que o demônio é feito? De linguagem.

 

Uma força precisa arrasta minha linguagem em direção ao mal que posso fazer a mim mesmo: o regime motor do meu discurso é a roda livre: a linguagem vai girando, sem nenhum pensamento tático da realidade. Procuro me fazer mal, expulso-me a mim mesmo do meu paraíso, empenhando-me a suscitar em mim as imagens (de ciúmes, de abandono, de humilhação) que podem me ferir [...]. A vida demoníaca de um amante assemelha-se à superfície de uma solfatara [1]: grandes bolhas (ardentes e lamacentas) eclodem uma após a outra; quando uma baixa e apazigua-se, retorna à massa, uma outra, mais adiante, se forma, infla. As bolhas “Desespero”, “Ciúme”, “Exclusão”, “Desejo”, “Incerteza de conduta”, “Pavor de perder a dignidade” (o mais perverso dos demônios) fazem “ploc” uma após a outra, numa ordem indeterminada: a desordem mesma da Natureza. [2]

 

 

No contato com a dor, procuramos sempre um termo que a explique (“A dor sempre pergunta pela causa, enquanto o prazer é propenso a ficar junto de si próprio e não olhar para trás.” [3]). Podemos, na dor ou na alegria, ter sentimentos confusos, embaralhados e ambíguos, entretanto, aprendemos a lhes dar algum tipo de definição: um nome, um demônio. Nietzsche, para quem “a vida não é um argumento”, sabe como somos enredados pelo demônio que tecemos. Para ele, essas “bolhas” infernais são, em sua maioria, estados para os quais, por serem extremos, temos palavras, logo, consciência.

As considerações de Nietzsche em torno da linguagem passam antes por considerações sobre a consciência. Esta, segundo ele, nasceu sob o signo da necessidade de comunicação. O animal-homem precisava do auxílio de outro animal-homem para que pudesse ter suas necessidades e medos atendidos. Nesse sentido, ele precisava exprimir o que lhe faltava, o que ele sentia e o que ele pensava; para isso, fez-se necessário ter consciência do que lhe faltava, do que ele sentia e do que ele pensava, podendo assim ser compreendido pelos demais.

 

A consciência é apenas uma rede de comunicação entre homens; foi nesta única qualidade que se viu forçada a desenvolver-se: o homem que vivia solitário, como animal de presa, poderia ter passado sem ela. [...] O desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento da consciência (não da razão, mas somente da razão que se torna consciente de si própria), esses dois desenvolvimentos caminham a par. [4]

 

 

Consciência e linguagem são gregárias por excelência, elas se desenvolvem em nome de uma necessidade de comunidade, comunicação e agenciamento do homem social. Justamente por conter esse aspecto generalizante de integração, que a consciência não digere a diferença, o singular, sendo ela uma máquina de homogeneização.

Nietzsche, no mesmo aforismo, diz que poderíamos pensar, sentir e querer sem que tivéssemos consciência desse pensar, sentir e querer. A consciência não é um corredor necessário para a vida, que “seria possível sem que, por assim dizer, se visse no espelho”. Para Nietzsche, a consciência não é o resultado e nem o apogeu da evolução intelectual do homem, ela tem sua importância fisiológica como qualquer outra parte do corpo, “como o estômago”: assimila, processa, reduz e simplifica tanto quanto este. É um aparelho dotado de signos que, como tudo que existe, nasceu para atender uma necessidade. A consciência se define por apresentar para o outro e para nós mesmos aquilo que de mais grosseiro, visível, coletivo e mediano nós temos; um filtro, portanto, que cumpre a sua função: comunicar e promover o entendimento. É imprescindível, para a eficácia da comunicação, a não ambigüidade, a não sutileza, a não individualidade. Está na essência da linguagem (pois atrelada à consciência, logo, à comunicação) a simplificação e redução daquilo que nomeia e faz existir.

 

Todo conceito nasce por igualação do não-igual. Assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual a uma outra, é certo que o conceito de folha é formado por arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do que é distintivo, e desperta então a representação, como se na natureza além das folhas houvesse algo, que fosse folha [...]. Denominamos um homem “honesto”; por que ele agiu hoje tão honestamente? – perguntamos. Nossa resposta costuma ser: por causa de sua honestidade. A honestidade! Isto quer dizer, mais uma vez: a folha é a causa das folhas. [5]

 

 

Para Nietzsche, a noção de Verdade só foi possível porque primeiro se acreditou nas representações das palavras diante das coisas. Nada mais contrário à condição humana do que a adjetivação. “Honestidade”, “desonestidade”, “sinceridade” e “falsidade” não definem o que é um caráter, são palavras que só existem enquanto palavras, pois não dão conta das vivências e circunstâncias de um homem, já que cada uma exige e pede um tipo de comportamento específico, isto é, ora sincero, ora não sincero, ora honesto, ora desonesto, o que vai depender do interlocutor em jogo e do interesse daquele que atua.

A linguagem promove, no mundo, um outro mundo, “um mundo próprio ao lado do outro”. [6] Ela tem em sua origem uma vontade e um fracasso. O homem passou a acreditar que o universo dos signos pudesse falar sobre o universo das coisas; “falar sobre” para então melhor apreender e controlar a realidade. Essa vontade da linguagem, porém, transparece e revela um fracasso diante da vida: “toda palavra torna-se logo conceito justamente quando não deve servir, como recordação, para a vivência primitiva, completamente individualizada e única à qual deve seu surgimento [...].” [7] Essa noção da linguagem é o ponto de encontro entre Nietzsche e Alberto Caeiro: entendem-na como um substituto falho e fraco do mundo, fruto de uma debilidade primeira e direta para com as coisas. Em ambos, o universo simbólico é o resultado de afetações convertidas (tornadas conscientes) em sinais uniformes e reconhecíveis, sinais que transparecem uma perda de vigor sensorial com a realidade; úteis, sim, para o convívio entre os homens, mas dispensáveis para o reconhecimento de toda forma e caráter individualizados.

Os dois autores alinham consciência, linguagem e subjetividade. Segundo Nietzsche, quando os instintos vitais não podem agir no mundo exterior, quer dizer, quando são reprimidos, sua direção é invertida, voltando-se para dentro: cria-se a interioridade, crescendo no homem o que depois será chamado de “alma”. [8] O que Nietzsche diz sobre consciência e subjetividade pode ser dito igualmente por Caeiro. [9] O “entrar em si” seria necessário para uma saída alheada de si, isto é, a subjetividade é uma condição para a linguagem; ambos negam a necessidade da formação de um eu interiorizado e consciente para o contato humano com a vida.

A noção de uma subjetividade (portadora do livre-arbítrio) foi articulada a partir da idéia da vontade como causa primeira. Nietzsche, na verdade, aponta três dados, sempre considerados como naturais, para a construção da subjetividade: o querer, a consciência e o sujeito. A crença na vontade como causa justifica a crença da consciência de si, portanto, da identidade e do próprio querer como manifestação do sujeito. A partir do momento em que o homem se vê como possuidor de uma interioridade, a realidade passa a ser concebida como algo fora do indivíduo, como algo que possa sofrer sua investigação, o que acaba promovendo a invenção de uma exterioridade antropomórfica: "Primeiramente deduzo a noção do ser da noção do eu, representando-se as coisas como existentes a sua imagem e semelhança, de acordo com sua noção do eu enquanto causa. Que tem de estranho que depois tenha encontrado nas coisas apenas aquilo que eu mesmo tinha colocado nelas?”. [10]

Assim como Caeiro, Nietzsche vincula a linguagem simbólica à metafísica, discurso que contribui para o afastamento do homem em relação às sensações do mundo, que ele chamou algumas vezes de “efetividade”. Nietzsche acredita que conceitos como “Deus”, “Espírito”, “Alma”, “Eu” (que o filósofo chamou de “causas imaginárias” - criadas pelas religiões) ganharam substância de uma forma proporcional a um desprezo em relação às pulsões tônicas que vigoram no homem, tudo em nome de uma hostilidade em relação ao prazer e em prol de supostas virtudes da alma. Nietzsche pergunta, e ele mesmo dá a resposta, para o porquê dessa aversão à vida: “Quem é que tem razões para se mentir para fora da efetividade? Quem sofre com ela.” [11]

Como podemos ver, palavras são criadas: mundos são criados. Mas o que é uma palavra para Nietzsche? “Um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda metáfora.” [12] Ver (um estímulo nervoso) é fabricar uma imagem sintetizada dentre várias impressões, imagem esta condensada em um conceito. A metáfora, que se define pela utilização do igual para identificar o desigual, é o que fundamenta a linguagem. O mundo só passa a ser controlado e apreendido no momento em que o homem empresta ao mesmo uma capa metafórica de entendimento, em que o não familiar é sempre conduzido para o familiar; o absurdo, o inaudito e as diferenças ganham regularidade e explicação através de um olhar metafórico-conceitual.

Nietzsche vincula diretamente o nascimento da linguagem às noções de sobrevivência e necessidade. Para o filósofo, o conhecimento é fruto do medo; a pluralidade caótica e sem sentido do mundo precisa sofrer algum tipo de controle para que possa ser suportada: a linguagem é o suporte. Cria-se, como apontamos acima, dois mundos paralelos. No entanto, o mundo dos sinais inventados passa a tomar o lugar do próprio mundo das efetividades, como se aquele pudesse se converter neste último, já que revestido por critérios de verdade. Mas o que é a verdade para Nietzsche?

 

Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas. [13]

 

 

Apesar de identificar no sistema de códigos um instrumento de abreviação da realidade, Nietzsche não deprecia a linguagem em si, mas sim à paralisia que a noção de verdade sobre ela provoca diante da pluralidade do mundo. Não há desvalorização, já que para o filósofo, as ficções são imprescindíveis para a conservação e manutenção da espécie. Além disso, segundo Nietzsche, quando a necessidade de comunicação e linguagem se fez presente entre os homens, surgiu dela “um excedente dessa arte e dessa força, uma espécie de tesouro que o tempo empilhou e que espera um herdeiro que o desperdice [...]”; para ele, o artista é esse herdeiro. [14] Desta forma, a critica nietzschiana volta-se contra o esquecimento do processo de invenção das palavras, isto é, contra o abandono do caráter ficcional da linguagem em nome de uma crença em seu poder de representação da realidade, conseqüentemente, em seu poder de produzir discursos verdadeiros sobre a mesma. Quando Nietzsche diz: “Temo que não nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática...” [15], ele aponta para a condição de a palavra estabelecer e definir o que uma coisa é. Quando o conceito instaura a verdade de um ente, atua como um Deus.

Sabe-se que Nietzsche falou de uma “grande razão”, que seria uma razão corporal, e não intelectual, uma razão pautada pelos afetos do corpo, que “não diz eu, mas faz o eu”. A noção de linguagem no filósofo deve ser entendida na esteira dessa razão sensível. Assim sendo, perante as necessidades vitais e concretas de sobrevida social, o homem implanta uma “bússola” lingüística, quer dizer, através de afetações estabelecem-se códigos que permitam um maior controle sobre os afetos do mundo. A linguagem é um sintoma de uma vontade de vida e de apropriação, é tão “fisiológica” e com expectativas de dominação quanto à consciência, o que levou Nietzsche, como vimos, a associá-las. Assim é formado o sujeito do conhecimento, que através da linguagem busca um domínio, logo, uma simplificação, de si e da realidade:

 

Esse algo imperioso a que o povo chama “espírito” quer ser senhor e sentir-se senhor, em si e à sua volta. Denota vontade de partir da multiplicidade para a simplicidade, uma vontade restritiva, escravizadora, sequiosa de mando e realmente dominadora. Suas necessidades e capacidades são nesse ponto as mesmas que as estabelecidas pelos fisiólogos para tudo o que vive, cresce e se multiplica. Manifesta-se a força do espírito ao apropriar-se de coisas estranhas numa forte tendência de assemelhar o novo ao antigo, de simplificar o complexo, de desprezar ou rejeitar o totalmente contraditório. [16]

 

Nietzsche avalia o mundo e se avalia como fruto de uma produção lingüística. Se a “alma é somente uma palavra para alguma coisa no corpo”, como disse em Zaratustra [17], o mundo é somente uma palavra para alguma coisa no homem.

 

1. Abertura por onde saem os vapores em terrenos vulcânicos.

2. Barthes, R. Fragmentos de um discurso amoroso . Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.111-112.

3. Nietzsche. A Gaia Ciência . Trad. Jean Melville. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004, §13.

4. Ibidem, §354.

5. Nietzsche. “Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral”. In: Obras Incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. (Coleção "Os Pensadores").

6. Nietzsche. Humano, Demasiado Humano. In: Obras Incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. (Coleção "Os Pensadores"), §11.

7. “Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral”.

8. Nietzsche. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, segunda dissertação, §16.

9. “Ser real quer dizer não estar dentro de mim”. Pessoa, Fernando. Obra Poética . Rio de Janeiro, José Aguilar Editora, 1976, Poemas Inconjuntos.

10.Crepúsculo dos ídolos . Trad. Edson Bini e Márcio Pugliesi. São Paulo: Hemus, 1976, “Os quatro grandes erros”, §3. - “Mas a primavera nem se quer é uma coisa / É uma maneira de dizer” (Alberto Caeiro – “Poemas Inconjuntos”).

11. Nietzsche. O Anticristo. In: Obras Incompletas . Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. (Coleção “Os Pensadores”), §15.

12. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral.

13. Ibidem.

14.A Gaia Ciência , §354.

15.Crepúsculo dos Ídolos , “A ‘razão' na filosofia”, §5.

16. Nietzsche. Para Além do Bem e do Mal . Trad. Alex Marins. São Paulo: Editora Martin Claret, 2005, §230.

17. Nietzsche, Assim Falou Zaratustra . Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1998, “Dos Desprezadores do corpo”.

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