UM COSMOS DIANTE DO COSMOS

 

Teresa Cristina Meireles de Oliveira

 

A transfiguração da história constitui a gênese da estruturação das Liras de Marília de Dirceu. Produto bem datado do século XVIII, as Liras trazem as marcas ideológicas do seu tempo, curvam-se diante do contexto em que foram produzidas. Por outro lado, o cosmos poético revela-se diferente do cosmos factual onde foi gerado: é o reinado de transfiguração do real que o poeta inaugura.

 

Marília de Dirceu ou a transfiguração da história

 

Marília de Dirceu constitui, sem dúvida alguma, a maior obra poética em língua portuguesa de temática lírico-amorosa produzida no século XVII. Este conjunto de poemas ou Liras, que se estabelece a partir de uma composição cuja base é a função apelativa ou conotativa da linguagem – segundo os postulados de Jakobson – e tematiza, à primeira vista, a questão do amor, revela, numa observação mais densa e profunda, o próprio eu poético que se mostra a partir de sua relação com o tu por quem clama. As Liras de Marília de Dirceu, longe de trabalharem o tema do Outro, apresentam, sim, através de um interesse imediato – o amor a Marília –, algo mais complexo, ou seja, as relações que se estabelecem sobrevindas da visão que o ser poético mantém sobre o mundo.

A poesia se faz justamente de um ponto-de-vista subjetivo. Dizemos poesia, que é o nosso caso em questão, mas poderíamos ir além: a Arte se faz Arte a partir do contato e dos desdobramentos deste contato entre o ser e o mundo. De aparências essências e aparentes o mundo é formado e sua decodificação e recodificação permitem ao homem percebe-lo. Daí, para a Arte, encontrarmos a expressão de um mundo novo formado à imagem e semelhança daquele que o expressa.

A poesia não é, assim, o mundo, mas o que o poeta pensa ser o mundo. Por isso, a particularidade da poesia e o espanto que ela traz em si e provoca. Por isso, a exclusão do poeta do ideal platônico. Porque o sentimento do mundo do poeta é sempre dele e aos outros cabe a experiência do estranhamento desse encontro. Porque o que nos concede o poeta é um universo que não tem equivalência no universo; é premissa que não se desenvolve; é jogo sem regras definidas/ definitivas.

Neste caminho, As Liras de Tomás Antônio Gonzaga nos apontam, sobre o tema amoroso do par Dirceu/Marília, o verdadeiro motivo da lírica do poeta, ou seja, as relações poeta/realidade do mundo.

Para análise deste “leit-motiv” de Tomás Antônio Gonzaga, tomaremos como base divisão tripartida correspondente Às três partes de que se compõe Marília de Dirceu. Editadas separadamente em suas primeiras edições, estas três partes desenvolvem um sentimento que confere à obra, como um todo, um singular unidade. Falamos movimento porque não há apenas uma posição do poeta, apesar do tom monocórdio que cerca a fidelidade e a constância ao objeto de sua paixão e a dedicação de toda obra è mesma musa; há um desdobrar-se de um eu que, embora fiel, movimenta seu olhar diante do mundo político, ideológico, existencial e poético de uma época. Tomás Antônio Gonzaga não é só o cantor de uma mulher, de um amor determinado: ele, através desse amor, faz na poesia, o reflexo de sua situação de ser no mundo e o Outro – no caso, Marília – é o instrumento de que se utiliza para cantar a sua própria individualidade. Num momento – o século XVII – em que a literatura epistolar estava no auge, numa tentativa de democratizar idéias e sentimentos em trocas sistemáticas, século também em que o sonho da objetividade perseguia intelectuais e artistas, Tomás Antônio Gonzaga aparece, com sua lírica, subvertendo certas noções estabelecidas e inaugurando certos procedimentos individualizadores que desprezam modelos já consagrados a imitar. O que temo, sim, é a alma do poeta que se deixa revelar; através do amor que se conta é o ser amoroso que se revela e a história, sobretudo, de pensar e o mundo através desse amor e dos fatos que o cercam, a história de um mundo em determinados momentos. Pintando Cupido, o poeta revela, sim, o cosmos. Só que este cosmos é um cosmos transfigurado, poético.

É a partir do real que se produz o poético. Por mais que se queira admitir uma liberdade ou independência de criação, devemos lembrar que a Arte parte da experiencia “physis”. Porém, é hora de nos interrogarmos: como este real aparece nas Liras de Tomás Antônio Gonzaga? Simples reflexo/ cópia do mundo? Contrafação? Avesso? Reprodução fiel? Para respondermos a estas questões, percorreremos caminhos que passam por diversos temas presentes nas Liras e nestas questões encontraremos respostas para o movimento de apreensão do real a que nos referimos.

Uma questão prévia fica evidente: simulando a audiência de Marília, portanto, pressupondo um entendimento e uma implícita resposta do primeiro receptor a quem dedica suas Liras, Gonzaga trabalha com o que o literário tem de lúdico: o jogo do dizer encoberto/descoberto, a trilha falsamente clara e, finalmente apresenta a figura daquele privilegiado, que é o emissor no espelho.

Não nos esqueçamos de que uma das regras de arte poética do século XVIII privilegiava o fingimento poético sob o pretexto da imitação. Tomás Antônio Gonzaga, no jogo dessa ambigüidade, vai escrever a sua história – em tom autobiográfico – ou seja, a sua versão da história. Estamos, portanto, diante da questão de uma história dita oficial, dos papéis timbrados que visam a reprodução fidedigna do real e de certas certezas estabelecidas e estereotipadas, o poeta nos fornece a versão individual, de protagonista e de testemunha de um tempo que permanece encoberto e duvidoso. A Inconfidência e as confidências de Gonzaga – realidade, ficção, fidedignidade, (in)fidelidade, história, sonho, verdade, mentira, fato, ilusão. Todos são componentes de que Gonzaga se utiliza para compor um universo outro: um cosmos diante do cosmos. Marília de Dirceu é a história transfigurada por trabalhar não com a imitação mas com a criação. E a Poesia admite tudo, desde que haja realmente poesia em tudo – até que a versão subjetiva seja sempre a verdade universal em seus domínios poéticos. 

 

O século das máscaras e das Luzes

 

Para entendermos o universo poético de Marília de Dirceu e a noção de apreensão que o poeta adota, devemos observar o que foi a Arte no século XVIII. Tendo como base a ideologia de uma burguesia endinheirada, atuante e ávida pelo poder político, e de uma aristocracia blasé, mais preocupada com o gozo imediato se seus privilégios de classe, a Arte dos Setecentos vai criar obras que deleitem este público consumidor em suas necessidades de diversão e prazer estético. Este é o século que produz Mozart, Watteu, Fragonard e Laclos. A marca visível em todos estes homens de criação é a do mascaramento e do fingimento. A realidade é algo escamoteado na ópera “A Flauta Mágica” de Mozart, respira-se a atmosfera onírica; as sonatas, fantasias e concertos mozartianos, mesmo sendo divinos. Muitas vezes soam a deliciosas pantomimas; extrapolado a obra e penetrando a vida, o genial compositor e seu inimigo Salieri representam um jogo de representação de  semelhanças e arestas orquestradas não se sabe bem por que mãos. É o século XVIII  o momento da intriga velada das cortes, do jogo sutil do poder, da presença arguta da Igreja e da velada e misteriosa maçonaria, é o momento do minueto com seus movimentos estilizados e pré-determinados executados por dançarinos que parecem fantoches empoados atrás de máscaras e de um artificializado tácito. Os exercícios de virtuosismo de Mozart, cultivados desde a infância do compositor, revelam a busca da superação de sim mesmo, uma “brincadeira” cíclica em que as variantes e voltas do tema principal não só deleitam os ouvidos mas também delicadamente os enervam, tal a carga de reprodução que parece se estender “ad infinitum”.

Os pintores Watteu e Fragonardnão ficam nada a dever ao músico austríaco. Manehando o pincel com extrema habilidade e requinte, reproduzem, em perfeito mimetismo, uma sociedade que se afasta da realidade coêtanea e busca, num artificial campo grego, as delícias que as cidades lhe negavam. Tudo é calma aparente nestas telas. Basta lembrarmos “A Volta de Citera”, “Festa Veneziana” e “Reunião ao Ar Livre”, de Watteau, e o “O Jogo da Cabra-Cega” e “As Banhistas”, de Fragonard, para encontrarmos exemplo dessa atmosfera. A natureza, cenário regrado, quieto, repousante, a tudo assiste sem interferências; ela rege o jogo humano sem se declarar. Jovens se divertem – não há feiúra, velhice, decadência, morte – são todas as figuras pintadas pelos jovens belos, de peles louçãs, reforçadas artificialmente pelo “rouge”; todos se divertem, comedidos, em jogos, leituras, conversas amenas, desempenhando seus papéis sociais. Atrás do rosto empoado, estas figuras enfeitadas representam um jogo pastoril fictício em que a fantasia adotada revela, atrás do rubor e dos olhares oblíquos, o cansaço de uma peça exaustivamente encenada. O hedonismo responsável pela sensualidade e leveza dos quadros esconde a realidade que o Rococó tenta enfeitar à exaustão. Atrás do cenário, a natureza proclama o bordão “Tempus Fugit” e alerta para o fim do espetáculo.

Laclos é a figura emblemática desse momento na literatura. O seu As Relações Perigosas contém todos os elementos aqui assinalados e explicita , pela linguagem, como esta pode ser manipulada no jogo verdade/mentira. O narcisismo da época, em selvagem e escamoteado componente sádico, aí está no preciosismo do diálogo epistolar, nos vários pontos de vista que, como espelhos refletidos em espelhos, deturpam os contornos do real e só nos apresentam visões. Onde está a realidade? Como aprender o real?

Boileau, com sua Arte Poética, foi, paradoxalmente, grande responsável pelo perfil estético da literatura setencentista. Rejeitando os excessos barrocos, a espiritualidade conturbada, os hiperbólicos e fantásticos episódios, as metáforas em cascata, prega o teórico francês o retorno impossível a um mundo estético irreproduzível, já que morto. O que os postulados de Arte Poética pediam era a volta aos clássicos, a imitação de um modelo testado e aprovado, numa reprodução fiel da matriz. Carnavalizava-se, no dizer de Bakhtin, a arte pois a nova obra reproduzida por meio de volteios ao velho tema, esconde sob a máscara grotesca, a verdadeira face. Artificialismo, virtuosismo, imitação. É a mímesis platônica exercida em vários graus. A ordem, a disciplina e a demarcação de fronteiras para o mundo poético que não admite limites. Daí o baile de máscaras que a literatura do século promove, para se ver livre das amarras das normas estéticas, utilizando, muitas vezes, a ironia que Voltaire, por exemplo, usa tão bem como antídoto contra a farsa.

O sentido do real, portanto, subvertido e transformado por regras impostas, crias uma outra realidade fantasmagórica, embora galante, cortês, ligeira, suavemente rodeada por uma pretensa festa campestre.

Em contrapartida, este mesmo século XVIII, das máscaras fantasiosas, é o chamado “Século das Luzes”, logo, da iluminação, da clarificação das coisas, da recusa à mentira e ao engano. Estamos falando do século da ciência que procura estatutos autônomos, desvinculados dos postulados religiosos. Deseja-se medir e ordenar as coisas do mundo para conhecê-las e domina-las. Este é o século que deseja os homens iguais e fraternos e fundamentalmente livres de imposições de qualquer ordem. A Revolução Francesa, a independência das colônias americanas, a Enciclopédia, a Revolução industrial, o clamor por educação pública e laica, tudo facilitava nova ordem que exigia o desnudamento do Ancien Régime e estabelecia novas relações entre o homem e a sociedade. A realidade dos homens “iluminados”, os iluministas, era a realidade factual, sensorial, observável, objeto inestimável da ciência, campo e observações e experiências, realidade que se quer democrática para que todos os seus componentes, igualitariamente, possam dela interferir e, portanto, transforma-la. Para isso, a necessidade da luz que é tanto a luz diante dos olhos como a luz das consciências, a luz da razão, da certeza, da determinação.

Máscaras e luzes, fingimento e ciência, fantasia e precisão. Estas contradições que compõem o século XVIII de Marília de Dirceu.

Vendo o Brasil dos Setecentos e, mais particularmente, as Minas Gerais dos Ciclos do Ouro e, fechando o cerco, Vila Rica, constatamos, nos chamados “poetas inconfidentes”, semelhanças com a mentalidade européia de então. Com formação coimbrã, leituras iluministas na cabeça, burgueses detentores de certo poder político e partidários da máxima liberal laissez-faire, laissez-passer, os poetas de Vila Rica, que constituem nosso maior tesouro poético daquele século, são inconfidentes. Fazem versos às suas Nizes e às suas Eulinas, praticam, em seus poemas, jogos amorosos pueris, falam de uma natureza edênica e pacificadora, e à noites, embuçados, tramam a luta por liberdade, igualdade e fraternidade. É o episódio da Inconfidência Mineira. Como no bal masque, de dia, cidadãos ilustre e bem assentados, à noite, inflamados visionários. Não é necessário relembrar a vida dupla, contraditorialmente coerente, desses poetas que sonharam demais diante de uma realidade mesquinha e repressora. Seu destino, os livros de História do Brasil nos contam, os Autos da Devassa atestam, o Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, ilumina. Aqui, o que desejamos é ver, entre todos, a figura de Tomás Antônio Gonzaga, o mais ambíguo de todos os poetas conjurados. Sobre ele, o que a história nos relata é sua ascendência dupla, metade portuguesa, metade brasileira, sua formação dupla, na Bahia, com os jesuítas, e e, Coimbra, sua atividade dupla,  Ouvidor de Sua Majestade em Vila Rica e, talvez, chefe da Conjuração Mineira. Fantasia e realidade? Máscara e rosto? Onde encontrar a verdadeira face? Estudiosos vêm se debruçando sobre esta figura que não vai, provavelmente, nunca deixar de alcançar.  Em relação as acusações da Devassa, tudo nega Gonzaga nos interrogatórios e, nos versos a Marília, diz-se fiel à Rainha, sujeito de modestíssimas ambições, preocupado somente com o amor de sua pastora. Por outro lado, escapam dos autos e dos versos possíveis evidencias da autoria do Movimento e da ambição de ser o legislador do novo país ou, até mesmo, seu dirigente máximo. Não nos interessa aqui a verdade do cidadão Gonzaga. Servem estas observações para que se note como a dicotomia ilusão/realidade setencentista atinge até a biografia do poeta.

Passando para Marília de Dirceu, vamos perguntar como o poeta, dentro desse quadro histórico e artístico – contraditório e rico – do século XVIII, apresenta o real. Como é este real trabalho, que desdobramentos acarreta. E, principalmente, que sentido tem este real em Marília de Dirceu. Que realidade é passada pelo ambíguo Gonzaga? O que é a história se os seus personagens usam máscaras? O que a obra nos diz além de Gonzaga? O que se chama o real transfigurado?

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