O poeta consagra sempre uma experiência histórica, que pode ser pessoal, social, ou ambas as coisas ao mesmo tempo.
(Otávio Paz)
Constitui objetivo da presente monografia apreciar, no livro Júbilo, memória, noviciado da paixão, de Hilda Hilst, a recorrente presença do corpo, como artifício simbólico de inquestionável vínculo com a memória, cuja relevância é indiscutível para a construção do discurso lírico-narrativo.
Muitas foram as razões que nos fizeram parecer especialmente destacável a presença do corpo, entre os variados e ricos recursos representativos da referida obra poética. A força simbólica deste elemento abre caminhos para múltiplas interpretações e leituras acerca da obra em si, dos personagens, das relações que guardam entre si, dos espaços que preenchem, das articulações discursivas que interiorizam.
Considerando sempre a flexibilidade dos conceitos a serem examinados, além da ideologia estética vigente à época, abordamos, especialmente, a presença, ora contrastiva, ora associativa, dos conceitos anteriormente mencionados.
Júbilo, memória, noviciado da paixão promove um trajeto rumo aos intrincados espaços e processos de construção poética, em que se apresentam irmanados os conceitos de memória, esquecimento, materialidade, poesia e história. Este último conceito, aliás, abordado tanto do ponto de vista empírico, pessoal; quanto ligado à noção de coletividade.
Também constituiu nosso objetivo promover, sempre que possível, o diálogo entre textos críticos, teóricos, e o corpus literário selecionado.
O prazer, a inquietação, o fascínio e o êxtase, gerados pela leitura, fundamentam a reflexão atenciosa quanto ao percurso evolutivo da poesia brasileira dentro do tempo, e de seu estabelecimento como forma de representação, simultaneamente singular e universal. Sob esta orientação e buscando, sobretudo, a elaboração crítica de nossas considerações, desenvolvemos nosso trabalho.
1. Evocações memoriais do amor: o corpo como síntese e origem
A certa altura de Júbilo, memória noviciado da paixão , precisamente na seção inicial de poemas, reunidos ao subtítulo de “Dez chamamentos ao amigo”, um verso evidencia-se como representação metonímica e sintética de um provável significado da obra: “Tatuada de memória e confidência”. (HH, 2001, 24)
Na referida seção da obra, e menos intensamente ao longo do texto na íntegra, em plena ambiência representativa de poesia contemporânea, há um notável e produtivo diálogo com a lírica tradicional, através da utilização do formato das canções de amigo, e de estruturas poéticas de vocação eminentemente neoclássica.
Nos citados “chamamentos ao amigo”, a leitura surpreende o lirismo de uma amante distanciada do amado, em espera quase devota, imersa em seu canto de amor, e que escuta, paciente, as próprias palavras, alcançando alguma sobrevida, diante da dor. A ausência do amado desencadeia na escritura poética uma constante tensão erótica, em que simultaneamente opõem-se e complementam-se o sentimento amoroso e o pensamento filosófico.
No verso destacado anteriormente, “Tatuada de memória e confidência”, explicita-se uma associação entre a materialidade corporal e a memória. O corpo tatuado cumpre a funcionalidade de constituir o veículo para toda lembrança, ou qualquer abstração do tempo presente, via pensamento. É pertinente observar a escolha simbólica da tatuagem que, além de representar uma comunicação física marcadamente incisiva, relaciona-se inevitavelmente à dor. A permanência da marca do amado no corpo da amante lírica e a consciência temporal a ela associada são anunciados, no mesmo “poema-chamamento” , logo no primeiro verso: “Foi Julho sim. E nunca mais esqueço.” (Ibid.)
A ambiência dialética no texto poético de Hilda Hilst encontra acréscimo em um recorrente e dúbio liame entre memória e esquecimento: ora tratados como conceitos essencialmente avessos, excludentes ; ora como fundamentalmente associados.
No quinto “chamamento” de Júbilo, memória, noviciado da paixão , ainda dentro da seção inicial da obra, há uma clara referência à transitoriedade da matéria, implicação óbvia da própria transitoriedade temporal: “Nós dois passamos porque assim é sempre / É singular e raro este tempo inventivo / Circundando a palavra. Trevo escuro // Desmemoriado , coincidido e ardente / No meu tempo de vida tão maduro.” (HH, 2001, 21)
Interessa observar que a abordagem da materialidade, aqui, apresenta-se em dois níveis distintos: no corpo amadurecido pelo tempo de vida, e na própria palavra, objeto, instrumento da construção poética. No fragmento citado, ela aparece cercada ou envolvida por um tempo qualificado como “inventivo”, o que não deve constituir mero acaso. Pouco antes, no mesmo poema, referindo-se ao amado, define-o de maneira reveladora: “E tu, lúcido, fazedor da palavra, / Inconsentido, nítido” (Ibid.)
Também por meio deste fragmento, pode-se conferir à palavra uma ampla dimensão de materialidade, em que ela aparece modelável, voluntariamente, ao gosto do amado, e por sua corporalidade – boca ou mãos. A construção metafórica que apresenta a palavra como “trevo escuro desmemoriado” pode apontar para uma possibilidade de escrita de livre associação, para a qual a releitura, numa oposição à memória, possa significar esquecimento.
Ora, se a poesia fatalmente relaciona-se com recriação e memória, lembranças cujas origens se remodelam em processos contínuos, permanentes; importa também, dentro da ambiência poética, contemplar as fendas da memória, um seu possível avesso, na forma do esquecimento. Quanto à relação entre estes dois conceitos aparente e inicialmente antagônicos, mas provavelmente complementares, indispensáveis, postula Jerusa Pires Ferreira:
Poderíamos mesmo dizer que o esquecimento seria responsável pela continuidade, pela memória e até pela lembrança. Segundo Lévi Strauss é o esquecimento que vem quebrar uma certa continuidade na ordem mental, sendo responsável pela criação de uma outra ordem. A noção de quebra, hiato, para futuras e renovadas retomadas e reconstruções é algo como a morte provisória que se faria seguir de ressurreição. [1]
Assim, voltando à idéia da palavra poética como trevo escuro, desmemoriado, poderíamos sugerir que o esquecimento, sobretudo em se tratando de uma lírica eminentemente amorosa e marcada por uma ausência que gera dor, funcione como uma espécie de defesa, podendo ser, inclusive, volitivo, tal como teoriza Jerusa Ferreira: “ A vontade de esquecimento se identifica com uma realização frágil da experiência pessoal a fim de que renasça, no seio da linguagem, uma vida mais assegurada.” [2]
Ainda na primeira parte de Júbilo, memória, noviciado da paixão, localiza-se o poema que mais estreitamente se vincula ao jogo simultâneo de contraste e associação, entre os conceitos de memória e esquecimento. Nele, o amado, anteriormente identificado como “fazedor de palavra” , assume agora a posição de “fazedor de desgosto”:
De luas, desatino e aguaceiro
Todas as noites que não foram tuas.
Amigos e meninos de ternura
Intocado meu rosto-pensamento
Intocado meu corpo e tão mais triste
Sempre à procura do teu corpo exato.
Livra-me de ti. Que eu reconstrua
Meus pequenos amores. A ciência
De me deixar amar
Sem amargura. E que me dêem
A enorme incoerência
De desamar, amando. E te lembrando
- Fazedor de desgosto –
Que eu te esqueça.
(JMNP, p. 25)
É interessante o jogo poético aqui representado entre os conceitos anteriormente mencionados, no momento em que a pastora lírica sinaliza ao amado uma lembrança específica: o projeto de esquecê-lo.
São particularmente destacáveis as imagens de “aguaceiro” e “desatino”, contidas no verso inicial, quando toda a disponibilidade corporal da amante lírica se manifesta numa busca infrutífera pelo corpo do amado: as noites não foram dele.
O desatino, imediatamente unido à idéia de aguaceiro, faz, de modo inevitável, pensar no processo de escritura poética da amante, motivado pela ausência do amado, e pela conseqüente memória do mesmo. No referido processo, possivelmente será verificada a livre associação de idéias e palavras que, enquanto técnica de psicanálise, assim foi teorizada por Freud:
A auto-observação fornece tudo o que vem à cabeça, mesmo que lhe seja desagradável dizê-lo, mesmo que lhe pareça sem importância ou realmente absurdo. Se, depois dessa injunção, conseguir pôr sua autocrítica fora de ação, nos apresentará uma massa de material – pensamentos, idéias, lembranças – que já estão sujeitas à influência do inconsciente, que muitas vezes são seus derivados diretos ... [3]
Também relacionado às noções de memória e esquecimento, está o conceito freudiano de repressão, a respeito do qual tece relevantes considerações:
... um desejo violento em contraste com os demais desejos do indivíduo (...) Produzia-se um rápido conflito e o desfecho desta luta interna era sucumbir à repressão a idéia que aparecia na consciência trazendo em si o desejo inconciliável, sendo a mesma expulsa da consciência e esquecida, juntamente com as respectivas lembranças. [4]
No poema que encerra os “dez chamamentos ao amigo”, verifica-se a ocorrência mais incisiva do enlace entre corporalidade e memória: “A memória de nós. É mais. É como um sopro / De fogo, é fraterno e leal, é ardoroso / É como se a despedida se fizesse o gozo / De saber / Que há no teu todo e no meu, um espaço / Oloroso, onde não vive o adeus.” (HH, 2001, 27)
Os versos iniciais conferem à memória referida uma potencialidade de superação, à medida em que ela extrapola alguma limitação, sendo “mais”, não se fechando em si mesma. Assim, abandona a dimensão meramente ideal e ligada a um sentimento de abstração, para atingir uma condição física, corporal. A idéia de sopro, por exemplo, obriga pensar em sensação física, bem como as noções de “fogo”, “oloroso” e “gozo”. A propósito desta questão, convém lembrar a distinção proposta por Henri Bergson acerca das noções de sensação e percepção, bem como de exterioridade e interioridade:
Nossas sensações estão, portanto, para as nossas percepções assim como a ação real de nosso corpo está para a sua ação possível ou virtual. A ação virtual concerne aos outros objetos e se desenha nesses objetos; a ação real concerne ao próprio corpo e se desenha por conseqüência nele. Tudo se passará, enfim, como se, por um verdadeiro retorno das ações reais e virtuais a seus pontos de aplicação ou de origem, as imagens exteriores fossem refletidas por nosso corpo no espaço que o cerca, e as ações reais retidas por ele, no interior de uma substância. Eis por que sua superfície, limite comum do exterior e do interior, é a única porção da extensão que é ao mesmo tempo percebida e sentida. [5]
2. O esquecimento a serviço da memória: novas ordens para a construção poética
Na seção “O poeta inventa viagem, retorno, e sofre de saudade, de Júbilo, memória, noviciado da paixão, alguns versos do poema inicial assumem relevância destacável, a propósito do tema sobre o qual tratamos: “E se te lembras do brilho das marés / De alguns peixes rosados / Numas águas / E dos meus pés molhados, manda-me dizer: / - É lua nova - / E revestida de luz te volto a ver.” (HH, 2001, 31)
Neste fragmento, a lembrança do amado, evocada pelo discurso lírico, aparece diretamente associada a elementos pertencentes ao âmbito da materialidade e ao campo sensorial. Luminosidade, brilho e cor tomam o espaço textual poético, junto às experiências sensoriais da visão e do tato. Os pés da amante lírica podem ser representação metonímica de uma corporalidade inteira ,“revestida de luz”. Mais a frente, no poema imediatamente seguinte, em que a voz lírica nomeia seu interlocutor, o amigo a quem se dirige, ressurge a dualidade anteriormente citada entre a concreção do sentimento e a abstração do pensamento: “E circulando lenta, a idéia, Túlio, / Foi se fazendo matéria no meu sangue.” (HH, 2001, 52)
É pertinente a reflexão acerca das palavras de Bergson, a respeito de uma dualidade correspondente ou afim da que mencionamos:
Pretende-se que, por um processo necessário e uniforme, o objeto faça surgir sensações, e as sensações idéias que se prendem a elas: então, como não há razão para que o fenômeno, inicialmente mecânico, mude de natureza no caminho, chega-se à hipótese de um cérebro onde poderiam se depositar, adormecer e despertar estados intelectuais. Num caso como no outro se desconhece a função verdadeira do corpo. [6]
Uma possível função para o corpo representado nos poemas de Hilda Hilst é insinuada nos versos em que um clamor específico se levanta: “Mais te valendo percorrer meu corpo / Do que a matriz da terra. Tu me dirias: / Louca, pastora do meu tempo, te demoraste / Eterna.” (HH, 2001, 53)
E podemos novamente, no poema seguinte, ouvir os ecos de uma dialética amorosa e intelectual, em que o corpo revela-se como matriz: “E de viver a idéia, de mim mesma / Do rosto, dos cabelos, do meu corpo / Dos amigos também ando esquecida. / Rodeiam-me sem rosto, me perguntam: / E a idéia? E se vão apreensivos / Pois dupla vida é o que vive o poeta: / Entendimento e amor, duplo perigo.” (Ibid.)
É importante ressaltar o retorno da noção de esquecimento, vinculada à pastora lírica que, a essa altura da obra, mostra os primeiros sinais do cansaço da espera, o que transforma de algum modo a trajetória narrativa de Júbilo, memória, noviciado da paixão. Com fundamento nas idéias de Freud, Jerusa Ferreira postula sobre a relação entre esquecimento e fluxo narrativo:
Fala-se do olvido como coisa passageira e pede que se observe não só o sentido como os efeitos do lapso. Com isso nos remete a problemas de curso narrativo, superando a instância sociológica/antropológica e apontando para o mecanismo da própria concepção poética. [7]
3. Lembrar, esquecer, lembrar: o previsível ciclo temporal que envolve morte e sobrevida.
A seção “Prelúdios intensos para os desmemoriados do amor”, de Júbilo, memória, noviciado da paixão , conforme o próprio título sugere, é de pertinência inquestionável para a temática a que se propõe o presente trabalho. Depois de uma longa série de poemas em que, no jogo entre memória e esquecimento, a primeira prevalecia, através de um corpo latente e cheio de sentidos agravados; agora a ênfase parece recair sobre o esquecimento.
A presença da materialidade parece ainda mais intensa, como podem confirmar a primeira estrofe do poema que abre a referida seção: “Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca / Austera. Toma-me AGORA, ANTES / Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes / Da morte, amor, da minha morte, toma-me / Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute / Em cadência minha escura agonia.” (HH, 2001, 71)
Num discurso lírico aparentemente mais súplice, o texto poético revela uma preocupação com a corporalidade e sua finitude, ante à passagem do tempo. Enfatiza-se a consciência de que a matéria é absolutamente transitória, por isso a urgência da pastora lírica em ser tomada, “antes”, “agora”.
É interessante notar que, dentro do campo temático da materialidade, no que diz respeito aos sentidos, o tato assume importância destacada. É como se a poeta lírica, “desmemoriada do amor”, precisasse recompor a memória através do exercício sensorial. Por meio do seu corpo em movimento, ela busca possíveis reconhecimentos: “Tateio. A fronte. O braço. O ombro. / O fundo sortilégio da omoplata. Matéria-menina a tua fronte e eu / Madurez, ausência nos teus claros / Guardados.” (Ibid., 72)
Novamente o corpo, nos versos acima, fragmentado, significa a matriz, a origem de toda tentativa de guardar, preservar os componentes da memória. Eis um pensamento de Bergson que se relaciona a estas idéias: “Tudo se passa como se, nesse conjunto de imagens que chamo universo, nada se pudesse produzir de realmente novo a não ser por intermédio de certas imagens particulares, cujo modelo me é fornecido por meu corpo.” [8]
Verifica-se que nesta seção de poemas, dedicada aos “desmemoriados do amor”, o tempo condiciona o esquecimento, que cumpre a funcionalidade de representar a morte, a perda. Por uma analogia previsível, poderíamos situar o conceito de memória na mesma esfera semântica da permanência, da sobrevida.
Ana Cristina Chiara, em estudo acerca do escritor Pedro Nava, formula importantes considerações sobre a questão:
A memória converte-se (por uma capacidade de reconstituição do passado) ao que podemos chamar de vigília da vida contra o sentimento de perda, de desolação diante do que já foi (...) Evocamos o gesto do homem quando se debruça sobre o branco do papel para dar ordem ao caos de suas lembranças: confronto fatídico com a própria imagem no espaço especular do texto; um ajuste de contas com o destino por meio de uma tarefa de dar perenidade àquilo que o constitui como ser, antes que a morte venha para cumprir seu ritual de aniquilamento que torna tão irrisória nossa estada no mundo, que nos faz poeira de estrela, espectros. [9]
O tempo, acompanhando as propriedades do corpo, manifesta-se, também, a certa altura da poética de Hilda Hilst, como matéria, conforme no poema seguinte:
Que boca há de roer o tempo? Que rosto
Há de chegar depois do meu? Quantas vezes
O tule do meu sopro há de pousar
Sobre a brancura fremente do teu dorso?
Atravessaremos juntos as grandes espirais
A artéria estendida do silêncio, o vão
O patamar do tempo?
Quantas vezes dirás: vida, vésper, magna-marinha
E quantas vezes direi: és meu. E as distendidas
Tardes, as largas luas, as madrugadas agônicas
Sem poder tocar-te. Quantas vezes, amor
Uma nova vertente há de nascer em ti
E quantas vezes em mim há de morrer.
(JMNP, p. 74)
4. Poesia e história: da memória individual à coletiva
A última seção de poemas de Júbilo, memória, noviciado da paixão é intitulado “Poemas aos homens do nosso tempo”. Encerrando a obra poética aqui contemplada, poemas dedicados a sujeitos históricos, empíricos, representantes de uma memória coletiva, e não apenas individual.
Nos textos que integram a referida seção, a leitura possibilita a reflexão sobre o entrelaçamento da poesia e da história, num sentido mais específico e restrito, uma vez que apresenta suas relações também com a sociedade. Eis o que nos afirma Ida Maria Santos Ferreira Alves, em seu ensaio “A poesia em sua vibração histórica”:
O texto poético é o espaço de diálogo e sua tessitura revela tanto o homem que a produz, como a sociedade que a acolhe ou a rejeita. Sua ação é política, porque intervém sempre no real contra a autoridade do senso comum e da palavra convencional e autoritária. O poema é, portanto, um documento cultural e social, ainda que seu enunciado escamoteie qualquer referencial direto, pois a “verdade” e a originalidade da poesia estão na sua elaboração e recepção e não apenas nos termos veiculados. [10]
Consideramos especialmente destacável e relevante o poema dedicado a Federico García Lorca, cujos versos intercalam-se com citações de Lorca, e que em certa medida ilustram e concretizam as idéias acima referidas:
Companheiro, morto desassombrado, rosácea ensolarada
Quem senão eu, te cantará primeiro. Quem, senão eu
Pontilhada de chagas, eu que tanto te amei, eu
Que bebi na tua boca a fúria de umas águas
Eu, que mastiguei tuas conquistas e que depois chorei
Porque dizias: “amor de mi entrañas, viva muerte”.
Ah, se soubesses como ficou difícil a Poesia.
Triste garganta o nosso tempo, TRISTE, TRISTE.
E mais um tempo, não será lícito ao poeta ter memória
E cantar de repente: “os arados van e vên
dende a Santiago e Belén.”
Os cardos, companheiro, a aspereza, o luto
A tua morte outra vez, a nossa morte, assim o mundo:
Deglutindo a palavra cada vez e cada vez mais fundo.
Que dor de te saber tão morto. Alguns dirão:
Mas está vivo, não vês? Está vivo! Se todos o celebram
Se tu cantas! ESTÁS MORTO. Sabes por quê?
“El passado se pone
su coraza de hierro
y tapa sus oídos
com algodón del viento.
nunca podrá arrancársele
un secreto.”
E o teu futuro é de sangue, de aço, de vaidade. E vermelhos
Azuis, brancos e amarelos hão de gritar: morte aos poetas!
Morte a todos aqueles de lúcidas artérias, tatuados
De infância, o plexo aberto, exposto aos lobos. Irmão.
Companheiro. Que dor de te saber tão morto.
(JMNP, p. 109-110)
Morte, vida, esquecimento, permanência, tudo se concentra no denso poema com o qual Hilda Hilst elogia Lorca. Logo no primeiro verso, surpreendemos uma imagem de firmeza e permanência: rosácea. Nos versos imediatamente seguintes, a poeta lírica revela a exposição de sua corporalidade à dor, provocada pela perda do “companheiro”. A oposição central do poema – vida e morte – faz pensar na biografia de Lorca, e em quanto ela propicia a sua permanência na memória da coletividade. Toda referência à materialidade, no texto, parece apontar para um corpo exposto, ferido, aberto, violado. E o efeito último na sensação da poeta é a presentificação de sua dor. Na sensação do leitor um cruzamento inevitável e produtivo entre os limites da poesia e da história. Quanto a tal cruzamento, afirma ainda Ida Ferreira Alves:
Lembramos o sentido de histor (testemunha, aquele que vê, que sabe) para juntá-lo ao de poiesis (ação de fazer, criar alguma coisa). O poeta, portanto, faz ver, cria algo a ser visto e conhecido. É também testemunha de seu tempo e sua produção situa o seu mundo. Poeta e historiador se encontram numa mesma ação. [11]
5. Conclusão
Conclui-se, ao fim do presente trabalho, que, no discurso lírico-narrativo de Júbilo, memória, noviciado da paixão, de Hilda Hilst, há um nítido entrelaçamento dos conceitos de materialidade e memória.
O corpo representa nesta ambiência literária uma espécie de origem de toda a evocação poética, constituindo uma espécie de sede primária, ou ponto de partida, para que as lembranças sejam desencadeadas.
O esquecimento, conceito aparentemente avesso ao da memória, antes lhe é complementar e benéfico, uma vez que permite, através da quebra de uma certa linearidade na ordem mental, a instauração de uma nova ordem, possivelmente a produção poética.
Perpassando, absoluto, todas as dialéticas decorrentes de uma dialética mais ampla e central na obra – a que relaciona poesia e história – localiza-se o conceito do tempo, vinculado, simultaneamente, à permanência e à morte.
A reflexão mais válida a que chegamos, portanto, é a de que o campo da chamada realidade concreta, sensorial, é também território propenso a percepções ligadas à idealidade, numa possibilidade de intersecção entre esferas de significado tradicionalmente marcadas pelo radicalismo de suas proposições.
6. Notas
1. FERREIRA, J. P. (1991) p. 15.
2. Ibid. p. 17.
3. FREUD, S. (1978) p. 240
4. Ibid. p. 13.
5. BERGSON, H. (1999) p. 58-59.
6. Ibid. p. 122.
7. FERREIRA, J. P. (1991) p. 16.
8. BERGSON, H. (1999) p. 12.
9. CHIARA, A. C. (2001) p. 37.
10.FERREIRA ALVES, I. M. S. (1998) p. 1080.
11. Ibidem.
7. Referências bibliográficas
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1999.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). 2ªed. São
Paulo: Martins, 1964, v.2.
................................. Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
CHIARA, Ana Cristina. Pedro Nava, um homem no limiar . Rio de Janeiro: Eduerj, 2001.
COMITTI, Leopoldo. Romance, história e ficção. In: COUTINHO, Eduardo de Faria (org.)
Cânones e contextos. Rio de Janeiro: [s.n.], 1998, vol. III.
COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1986.
FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da memória. Salvador: FCJA, 1991.
FERREIRA ALVES, Ida Maria Santos. A poesia em sua vibração. In: COUTINHO,
Eduardo de Faria (org.) Cânones e contextos . Rio de Janeiro: [s.n.], 1998, vol. III.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad.: Laura Fraga de Almeida Sampaio. 9ª
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FREUD, Sigmund. Coleção Os Pensadores. In: Esboço de psicanálise . Trad.: José Octávio
de Aguiar Abreu. São Paulo: Abril, 1978.
HILST, Hilda. Júbilo, memória, noviciado da paixão. São Paulo: Globo, 2001.
WEINRICH, Harold. Lete – arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001.