Um corpo estranho

Ricardo Alexandre Rodrigues

UFRJ. Faculdade de Letras. Semiolgia

 

no que o homem se torne coisal – corrompe-se nele os veios comuns do entendimento” [1]

 

Uma das temáticas pelas quais podemos percorrer os escritos poéticos de Manoel de Barros refere-se ao corpo tocado pela poesia. Diferente do corpo social que possui valor mercadológico por ser fonte de energia motriz para as engrenagens da sociedade, trata-se de um corpo que não serve e nem é servido, abandonado à potência de vir a ser, despido de razão. Logo, o corpo inventado na poesia é um corpo “à toa”, fora do paradigma útil/inútil.

Diferente de outras literaturas que escrevem corpos externos (do outro ou do próprio artista), refletimos aqui sobre uma produção literária lembrada por rascunhar corpos que são delineados pelos sentidos. Quase sempre, sabe-se da existência de um corpo porque chegam até nós, leitores, relatos de sensações experienciadas. Bernardo da Mata, um dos seres que habita a poesia de Manoel de Barros, é composto de sensações primitivas (sem afetação do meio social) oriundas do contato com o mundo e, por isso, constantemente retomado em vários poemas com outras existências: árvore, pedra, animais... Sua estrutura é frágil porque é vulnerável a variações do estado de espírito. A nossa existência é de natureza encarnada e não há outra possibilidade de conhecermos, estarmos ou discutirmos o mundo a não ser munidos de nossos corpos. Tais idéias podem ser arrumadas na frase escrita por Merleau-Ponty nos escritos de 1948: " Não temos um corpo, somos incorporados" [2].

Como podemos ver, o organismo inventado nos poemas de Manoel de Barros está aquém das denominações de indivíduo, sujeito, cidadão, que são apenas variações do corpo propriamente dito, abordado por um ângulo particular que pode ser político, espiritual, biológico... Trata-se de um elemento polimorfo que absorve qualquer possibilidade de representação, inviabilizando a consumação de um retrato-falado. Sua materialidade expressa antes um esboço de múltiplas potencialidades do que uma formalização precária dessa potência. Assim, tal organismo pertence ao tempo futuro, pois é uma projeção daquilo que pode ser produzido mas ainda não existe.

Se essas criações poéticas pretendem realizar algum feito, é tão-somente inquietar nosso estar no mundo, apresentar outras vias de acesso ao plano do real. Desse modo, sem pretender fixar normas, a poesia barreana nos convida a repensar o lugar institucional do corpo e o que ele pode realizar. Nessa expressão poética, é desenhado um corpo estranho, alheio às maneiras: o corpo coisal .

 

No que o homem se torne coisal—, corrompe-se nele os veios comuns do entendimento.

Um subtexto se aloja.

Instala-se uma agramaticalidade quase insana, que empoema o sentido das palavras.

Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas

Coisa tão velha como andar a pé.

Esses vareios do dizer. [3]

 

Nesse poema, deseducar os sentidos parece ter sua origem no esgotamento de um modelo adotado para se relacionar com o mundo. Diante desse cansaço, surge o desejo de outras experiências e descobertas, o que exige retornar ao estágio anterior à razão ou a moral, de onde possa contemplar o mundo em sua potência criadora. A linguagem despe-se de toda a lógica e volta ao seu estado primitivo com suas melodias e improvisações de imagens soltas e confusas, tal como a língua de uma criança. O que chamamos de subversão do código instrumentalizado, para Manoel de Barros, não é mais do que um regresso às origens, a primeira linguagem.

No exercício efetivo das funções corporais não há vez para detalhes, aprofundamentos ou reflexão. Tudo se passa na superficialidade do automatismo. O questionamento cede lugar à aceitação e acomodação. Ficamos isolados no instantaneismo e na fugacidade dos valores dos objetos. No poema transcrito do livro C antigas por um passarinho à toa (2003) lemos a tarefa de atribuir outras dimensões a existência das coisas. O estado de à toa oferece ao pensamento a oportunidade de deambular sem ter que se cansar para produzir razão. A essa errância do pensamento chamamos imaginação. No pequeno poema, faz-se notar a preocupação do poeta em buscar outros ângulos para ter novas percepções sobre as coisas já conhecidas:

 

Do alto de uma figueira

onde pouso para dormir

posso ver os vagalumes:

são milhares de pingos de luz

que tentam cobrir o escuro

 

Para perceber o mundo em sua singularidade ou dizer a intimidade é preciso antes despir os signos lingüísticos de seus significados convencionais, a fim de evitar que o seu peso impeça a expressividade do espírito lírico. A escrita barreana aprecia discutir aspectos formais da criação poética, mais do que se preocupar com o caráter representativo da realidade. Daí, o poeta inventar a seu modo um novo enredo para cada coisa que compõe seu cotidiano. A redistribuição dos papeis é transitória e implica uma experiência única que desestrutura o lugar comum das classificações.

De modo sutil, o fazer literário se desembaraça dessa liberdade prescrita num conjunto de códigos, no sentido de “ poder de agir, no seio de uma sociedade organizada, segundo a própria determinação, dentro dos limites impostos por normas definidas ”, como marca o dicionário Aurélio. No exemplo de MB, a poesia não quer ser livre; ela inventa sua própria liberdade no esvaziamento semântico das palavras, deixando-as abandonadas à existência estética. Percebemos que significante poético está vazio, oco de significado, porque ele aparece justaposto a outros de maneira inusitada. O vazio tão apreciado pelo poeta pantaneiro surgirá como possibilidade de manifestar a liberdade poética em todo seu mistério e desmesura. Tal como percebido no poema O menino que carregava água na peneira , “ os vazios são maiores/ e até infinitos [4].

Forjar sua própria liberdade sublinha na poética barreana um contraste com o racionalismo exacerbado que move a sociedade capitalista. Ela mostra afinidade com os atos de livre associação normalmente atribuídas ao universo infantil e ao estado delirante da alma, por onde vaza a essência, o que há de naturalmente humano. O termo vazar, neste caso, lembra conotativamente a pressão realizada por um líquido a fim de escapar do represamento; forçar os limites impostos pelo recipiente para escorrer sem direção e sem forma. Na construção desse pensamento, podemos dizer que a manifestação da essência humana depende menos de qualquer causalidade que inspiração e encantamento.

Pela idéia sugerida no verbo vazar, foi também que Manoel de Barros forjou sentidos para os vocábulos poeta e poesia . Tal associação se inicia no que se refere à liberação indesejada de um determinado conteúdo represado. Poeta e poesia encenam corpos rebeldes à procura de experiências alternativas, zerados de ensinamentos e regras.

 

Poesia, s.f.

(....) Espécie de réstia espantada que sai pelas frinchas de um homem

 

***

Poeta, s.m. e f.

(....) Espécie de vazadouro para contradições [5]

 

No modo de ver do poeta, crianças, loucos, bêbados e pessoas esquisitas são aptas a vazadouro porque transcendem os limites impostos ao corpo. Por uma frincha surge o inesperado, semelhante a uma semente que germina por uma fresta no solo, a água que vasa pela rachadura e uma criança que nasce por entre a fenda da vagina: movimentos de deixar vir à tona provocam a quebra da linearidade do terreno e rompem com a homogeneidade pautada no tripé início-meio-fim. Instaura-se o espaço do evento fortuito onde é possível pensar “ sem apertar o botão” [6].

Como sugere o poeta, num poema citado anteriormente, só se pode sair da obviedade pelo desregramento dos sentidos. Conseqüentemente, a afetação do poeta o impede de ser apanhado pelo gregarismo do cotidiano que induz viver em bando. Por esse mesmo caminho, segue o pensamento do poeta francês, Arthur Rimbaud, que aponta para um estado fora do normal, uma espécie de “corpo doentio”. A doença instaura a interrupção temporária do fluxo da sanidade sob o organismo, porque este não responde aos comandos previstos, nem executa de modo eficaz as funções básicas. Uma passagem do texto “carta dita do vidente” nos ajuda a pensar melhor esse comportamento doentio sugerido pela insanidade do pensar e agir:

 

“digo que é preciso ser vidente, se fazer vidente. O poeta se faz vidente por meio de um longo, imenso e refletido desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura ele mesmo, ele esgota nele todos os venenos, para só guardar as quintessências.” [7]

 

O “desregramento dos sentidos”, como sugere Rimbaud, além de transgredir o gregarismo, rasura a individuação, o nome próprio, o “código de barra”... – elos entre o ser e o sistema. Uma das primeiras significações para a palavra sujeito refere-se à qualidade de súdito (vassalo), ou ainda, à pessoa capaz praticar ações. Sujeito é um produto social, de fácil identificação e localização. Por outro lado, aqui, a diluição da identidade sem a pretensão de decalcar uma outra é indicada quando se deseja novas experiências com o mundo. Pois, segundo Bachelard, “ o ser é uma obstrução do movimento, uma parada, uma falha [8] já que sua materialidade insiste em sobrepor-se à inconstância humana. Nesse raciocínio, todo tipo de educação altera o relacionamento natural com o mundo, impossibilitando a passagem das forças da natureza.

O que há de acidental no homem favorece experienciar de uma só vez e ao mesmo tempo todas as sensações provocadas por um elemento da natureza, num complexo de visão, audição, olfação, degustação e tato. O corpo responde de maneira única a cada estímulo. Estar fora de si, inspirado, entusiasmado... contribui para conhecer as intimidades do mundo.

Grande parte do conhecimento científico foi construída através da observação apaixonada, em que o observador se deixa invadir e invade o objeto observado, a ponto de uma completa indistinção. Desse contato íntimo nasceu a astronomia, os fundamentos da física, química... a gramática, a filosofia... Todas têm sua origem admiração; no encantamento do olhar perante a manifestação das coisas; na transposição da mecanicidade contida na ação de enxergar. Esta parece ter a função de esquadrinhar um objeto, exigindo, por isso, um estado de atenção e alerta. Torna-se oportuno relembrar as falas do personagem Werther, no romance “Os sofrimentos de Werther” [9], em que também opina sobre a interferência da razão no contato com a natureza: (....) “ contudo, digamos o que disserem, a regra prejudica e perturba o sentimento da natureza e sua verdadeira manifestação .” (p.52)

Não ter explicação para os mistérios da vida, ser ignorante em matéria de querer encontrar razão em tudo que vê, desfaz as distinções entre os seres. Não há diferença entre o homem racional (sabedor de conteúdos acadêmicos) e uma borboleta, como nos faz pensar os versos:

 

Entrar na Academia já entrei

mas ninguém me explica por que essa torneira

aberta

neste silêncio de noite

parece poesia jorrando...

(...)

Sou bugre mesmo

me explica mesmo:

se eu não sei parar o sangue, que me adianta

não ser imbecil ou borboleta? [10]

 

Para Manoel de Barros, a ignorância e a incompletude são traços predominantes na composição do organismo humano e também dínamo de inconstantes movimentos. O estado de inacabamento desfigura a categoria social de sujeito porque inviabiliza a rotulação estereotipada. Não se pode classificar aquilo que escapa dos padrões de normalidade, restando ao corpo irregular a exclusão e isolamento. Conseqüentemente, não possuir um papel – uma função social – permite escapar da repetição servil imposta em cada circunstância pelas regras e finalidades, oferecendo um caráter polimorfo ( outros ) ao corpo inoperante. A incompletude, sempre vazada, é a qualidade que possibilita as várias maneiras de apresentar-se no mundo, sem concretizar nenhuma delas separadamente. O incompletude também pode figura o Neutro, proposto por Barthes.

Durante a leitura dos poemas de Manoel de Barros somos surpreendidos com algumas maravilhas inventadas no plano poético. No processo da criação fantasiosa podemos notar pontos de interseção com a performance de (re)invenção de novos enredos para elementos com lugares marcados na sociedade. Em ambos exercícios de criação há a experiência aleatória com a matéria já conhecida como se quisesse perguntar: “o que pode a matéria ?”.

Para essa etapa do presente trabalho, foi essencial percebermos a utopia do resgate – acreditar na possibilidade de dizer de maneira idêntica o referente – que governa a linguagem instrumentalizada. Como também, foi importante notarmos a consciência do poeta a respeito dessa falência e o seu esforço na estruturação incomum da linguagem poética, a fim de superar a deficiência de dizer singularmente as coisas. Na etapa seguinte, está proposta uma leitura da poética de Manoel de Barros pelas coisas inúteis e sem valor. Por gozar de um estado de repouso, as inutilidades podem ser transformadas em qualquer coisa, estando sempre a nos surpreender. Então, tal como as coisas sem préstimo (cacos, detritos, trapos, restos) quando re-combinadas, as palavras, ao perderem a funcionalidade, podem manifestar o devir que ocorre no mundo.

 

Desenho de Manoel de Barros na contra-capa do livro Matéria de Poesia .

 

Ricardo Alexandre Rodrigues

rodriguesufrj@yahoo.com.br

 

1. BARROS, Manoel de. “Guardador de águas” . In: Gramática expositiva do chão ( poesia quase toda). (P 299)

2. MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas-1948 . São Paulo: Martins Fontes, 2004. pág 45

3. Barros, Manoel. “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada.” In: Gramática expositiva do Chão . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. pág 276

4. BARROS, Manoel de. “o menino que carregava água na peneira”. In: Exercícios de ser criança. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999

5. Idem. Gramática Expositiva do chão . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. pág 215

6. BARROS, Manoel. Matéria de Poesia. Rio de Janeiro:Record, 2001. (pág 30-32)

7. RIMBAUD, Arthur. “ Carta dita do vidente”. In: Uma Estadia no Infern o. São Paulo: Martin Claret, 2002. (pág 80)

8. BACHELARD, Gaston. “A ‘preguiça' da filosofia”. In: Epistemologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983, (pág 19)

9. GOETHE. Os Sofrimentos de Werther . 7ª edição. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. pág. 52

10. BARROS, Manoel de. Poemas Concebidos sem Pecado . Rio de Janeiro: Record, 1999. pág. 27

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