A vigência erótica da memória em poemas de Maria Teresa Horta

 

Osmar Soares

(Mestre em Teoria Literária - UFRJ)

 

Da memória do eu-poético de Maria Teresa Horta, poetisa portuguesa da geração do grupo Poesia 61, emerge um poderoso “cavalo”, de crinas ardentes, de dementes crinas que, tais quais uma estranha lâmina temporal, vão desvelando tudo o que houve, há e haverá sobre todo corpo e sobre todo o humano. A “memóri”a é, um “cavalo” onisciente, que avança perigosamente para o futuro sem deixar pra trás o que se passa, pois que absurdamente guarda em seu dorso inchado tudo o que há, na experiência de quem a galopa, na experiência de quem é violentamente traspassado por seu tenebroso tropel. O inominável galope do animal nos direciona para a vigência erótica da lembrança, para a vigência erótica de nossa existência, como sempre requereu Eros, Natureza, e outros deuses que vêm-se propondo reinantes em nosso imaginário. Ao Cavalo da memória [1], a voz poética roga, implora, “Não erga meu cavalo/ as crinas da memória”, pois que, se sabe que o anúncio perigoso, mas verdadeiro de seu trote tem por empresa desvelar tudo o que há. Senão vejamos:

 

“Não ergas meu cavalo

as crinas da memória

 

nem o espaço do tempo

que te fica nas patas

 

Nem o dorso das horas

nem o dorso da pátria

 

nem o ventre do sol

nem o fruto da raiva

 

Não ergas meu cavalo

as crinas destas vagas

 

os seios destes vícios

os ventos deste mapa

 

(magoadas mágoas

já me trazes

nos restos da noite sobre as águas)

 

Não ergas meu cavalo

as crinas desta prata

 

(sobre as coxas do linho

onde os corpos se abatem)

 

não deixes o que é teu

e os outros não sabem

 

nem debruças o sexo

no começo das lágrimas

 

Oh, que fazes?

que fendas!

 

E que fundas as fráguas

 

as tréguas

as trevas

 

que se abrem e se rasgam

 

Contemplemos a imponência de memória... Eis que ela parece requerer a passagem do tempos, que “fica nas patas”, reconhece o “dorso das horas”, domina o mapa do tempo, e aquilo que se propõe como representação do tempo, “o ventre do sol”, “os ventos deste mapa”. Memória abarca a geografia humana dos “vícios”, “do fruto da raiva” e entende a proximidade aderente “sobre as coxas do linho/ onde os corpos se abatem”. É seu afã a contemplação e a responsabilidade, agregadora, pelo mundo que se apresenta, desde sempre, como verdade, como realidade imposta; é de total responsabilidade do seu galope, porém, o “abrir” e o “rasgar” desconstrutor de qualquer realidade impostora. Assim, memória examina a realidade, contempla-a, mas no seu exercício de reportagem ao passado, propõe a sua fragmentação, o questionamento de sua inteireza. Por responsabilizar por tudo, pela apreensão de tudo, a memória humana é uma atividade primordialmente erótica .

Quanto sobre a responsabilidade por tudo, devemos nos voltar para o mito teogônico de Eros, “ que não gostava de viver escondido nas trevas. Por isso sob a luz de Fanes, que até então se guardava no ovo de prata, o Amor começou a desnudar a natureza. E uniu Céu e Terra num abraço violento e apaixonado, do qual nasceu tudo o que faltava nascer ” [2]. Ora, o que faz Amor senão deleitar-se em revelar o que está oculto? Além disso, seu prazer está também em conduzir a alma humana à contemplação final de toda a beleza, de encaminhar ao mundo das idéias e de mediar, como faz a matemática, o homem nos caminhos entre a sensibilidade e a compreensão pura do que há. Por Hesíodo, na Teogonia , o ser é o mediador, o balizador entre o homem e Natureza; permite, por seu turno, a conjugação da criatividade com a destrutividade, unifica todo o conhecer a tudo o que deseja conhecer, procura saciar o anseio louco da alma de amparo pelo mundo, de fusão com o universo. Requer o mundo como seu .

Amor é, antes de tudo, uma força que está sempre entre : liga e desliga os constituintes da realidade, faz e desfaz com seu dom de fomentar a atração e repelir os pontos; ele está, sem dúvida, ligado às noções matemáticas de subtração, pela qual ocorre a ausência e se inaugura a falta, mas ao mesmo tempo multiplica e faz somar, para a constituição do próprio universo, para a feitura de “tudo por tudo”. Não seria também o Amor esse perigoso “cavalo da memória”? Mas por que usarmos adjetivo tão drástico (“perigoso”) ao nos referirmos ao galope e às crinas de Amor, à sua vigência erótica e impassível? Ora, a fusão com tudo atendida pelo cavalo desbravador da lembrança é perigosa e paradoxalmente instrutora por revelar ao homem “a verdade”.

Na construção e manutenção de tudo pela deusa Natureza e no desnudar dos seres por Eros, está o mais intrigante dos exercícios de revelação: o Amor, que faz a concretização da Justiça dos céus, por mostrar ao mundo os seus constituintes, desvelando-os, desocultando-os, num resgate do mundo das trevas, isto é, investiga a realidade intrínseca aos seres, mostra aos mortais o interior dos fatos, inaugura a verdade perigosa em que Édipo se aventurou ao buscar sair da cegueira promovida pela não revelação dos fatos e lembrar (sendo lembrado pelos outros) aquilo que estava oculto – a sua tragédia. Assim, a Justiça de Amor caminha por vias desastrosas, violentas, gozosas, que criam e recriam a realidade. No caso de Édipo, o rei sai do esquecimento de seu passado para a lembrança de sua ruína; instaura-se uma nova cegueira, pelo desespero do homem que arranca os próprios olhos, como que querendo fugir à verdade. Mas uma ética foi cumprida, e tudo se pôs no seu lugar como sempre quis Natureza – “tudo por tudo”, isto é, ao ser revelado o incesto de Édipo, Amor e Natureza agindo, trazendo à memória aquilo que era factual, aquilo que não se podia destinar à ocultação. No caminho do rei, duas cegueiras: a primeira da inconsciência do passado, a segunda pela mutilação advinda da aventura da verdade. O desvelar de Eros é, no instaurar dessa verdade perigosa, mas instrutora, a possibilidade de vir à tona tudo que há, como temos dito. Tudo que há, então, pela estratégia erótica, é a verdade .

Ao que nos parece, a memória, com sua mítica fortaleza, percebe o espaço, o tempo, os números, as horas, os itens que nomeamos e que nos nomeam para imprimirem-se em nós. Há um movimento erótico no lembrar, um dar-se e receber-se constante, um agir perene sobre o mundo, a que o filósofo francês Henri Bergson (1990) chamou percepção . Ao nos movermos como seres corpóreos que somos, experenciamos a realidade circundante, submetendo-nos ao enredor e modificando-o. As memórias que temos dessas experimentações do estar-no-mundo vão se mantendo em nós na forma de ação havida, ação que fica, que permanece, se abotoa em nosso corpo, dá-se como a nossa verdade, em face da verdade das coisas todas. É como se tudo o que vivemos, nesta perspectiva, imponentemente se mantivesse em nós, no corpo; para se reapresentar no exercício memorialístico de revelação do que se manteve, da verdade que não se esqueceu, como nos mostra Maria Teresa Horta no poema que segue:

 

Memória [3]

Retenho com os meus dentes

a tua boca entreaberta

 

e as palmas das mãos

dormentes

resvalam brandas e certas

 

As tuas mãos no meu peito

e ao longo

das minhas pernas

 

Em Horta, o corpo é testemunha e depositário da memória – ele é a própria memória das sensações eróticas, galopa e é o próprio cavalo, é todo um construto de sensações e memória . Ele é o limite de nossas antecipações e avanços. Por ele medimos nossas ações, precipitações e investimentos no espaço em que nos inserimos por viver. A consciência desse status é, em “Memória”, o que permite a reconstrução das afecções passadas. O passado sentido (e retido no corpo) é cantado pela recriação do prazer conferido pelo toque de outro corpo, um outro constituinte de ações possíveis e mensuráveis. É essa relação de ida e vinda, ação e reação, investimento e saldo que nos leva à noção bergsoniana de representação. É papel do sujeito poético confessar o isolamento da imagem, o isolamento da dor ou do prazer dizendo “Retenho”.

Se sugerirmos a expressividade do prefixo re-, teremos a seguinte noção: re-tenho , isto é, “tenho de novo”, re-vivo , re-memoro. Essa experiência duplicada é o que conhecemos tradicionalmente por memória. A possibilidade promovida pela inconsciência de uma volta ao passado. Assim, os próprios termos utilizados para designar memória justificariam essas interpretações. Utilizaríamos: re-cordar (pôr de novo no coração), re-contar , repetir (fazer, realizar ou usar novamente), representar (apresentar-se ao espírito). Este último é o que Bergson utiliza como sinônimo de reminiscência, lembrança. Porém, é a constatação poemática da retenção que mais nos intriga. Segundo a concepção dicionarizada, reter denota: “1. Ter ou manter firme; segurar com firmeza. 2. Guardar em seu poder (o que é de outrem). 3. Conservar, manter. 4. Impedir o movimento ou fluxo, de saída; impedir de sair, deter. 5. Reprimir, conter. 6. Conservar na memória” [4]

A retenção destas sensações só se dá pela contribuição do alheio, como pregara o poeta brasileiro contemporâneo Waly Salomão: “A memória é uma ilha de edição/ A memória é uma ilha de edição/ Meu sonho é um pequenino sonho meu/ Na ciência dos cuidados fui treinado/ Agora, entre o meu ser e o ser alheio/, a linha de fronteira se rompeu” [5]. A frase poética que pressupõe a fusão entre os seres (do corpo do eu com o corpo do outro ) é bastante emblemática do que temos dito aqui, de que estamos submetidos a um esquema de dependência entre os objetos e que perceber requer a participação permanente do alheio, bem como reter ou guardar o que é de outrem em domínio próprio – estamos constantemente devotados a um relacionamento com o muito ora imposto, ora escolhido. Esse paradoxo guia nossas ações e constrói nossas experiências. Neste sentido, somos seres ilhados – cercados de outros por todos os lados. De fato, a nossa consciência do mundo não provém somente de nós mesmos – imaginar é reportar-se ao que há, transformá-lo em possível tornar- se, desfazendo as fronteiras entre o meu ser e o ser alheio.

Assim, nossos corpos estão irremediável e eroticamente devotados a uma aderência com os outros seres. Estar no mundo é ligar-se eroticamente à totalidade do universo, à imponência esmagadora da realidade, à matemática sempre acertada da Natureza. Reféns de uma aderência milimetricamente calculada, nós, seres de memória, sob ou sobre o cavalo errante da lembrança, como bem nos mostra Horta, sucumbimos ante a verdade imposta.

Chuva

É um dia

de chuva aparente

 

de insetos macios

 

e de cor curva

 

de intimidades baças

aderentes

 

de indício

de clima

e de espessura [6]

 

Assim, o que sugere a chuva? Seu poder de transformar as casas e as praças, de obrigar a todos a tomar o rumo dos abrigos permite a edificação da intimidade erótica da aderência, em que o elo fusional entre os corpos se logrará por advento de uma contundência da Natureza... A conservação dos elos e da espessura dos elos só se dá, como sugere o texto, pela aparência da chuva, força exterior e incontrolável – por isso mesmo natural e erótica – que subjuga os homens à benesse (erótica) da congregação.

E se nos propusermos à solidão, escapamos do trote do cavalo da memória? O sociólogo alemão Maurice Halbwachs (1994) procura dizer que não há individualidade possível no corpo social, nunca estamos sós, uma vez que lembrar é um reportar-se ao mundo exterior e o mundo exterior está impregnado de realidade, da realidade que nos circunda e se nos apresenta com um paradoxo entre o plural, o múltiplo em que as variedades se elaboram e o individual em que a experiência totalizante se singulariza. Corpos unos que formam um corpo maior, a própria sociedade. A memória, responsável no seu trote pelo todo, é também reveladora do trato do indivíduo. “Nunca estamos sós”, diz o Autor, pois que nosso corpo é como um objeto translucido atravessado pelas luzes do mundo por todas as direções, a solidão é uma falácia e a negação da vigência erótica da memória um entregar-se perigoso ao esquecimento:

 

Mulher-solidão

Entre a tristeza-mulher

e a saudade,

 

um vago pátio interior

onde flutua

 

mansamente nos olhos

e ao fluir dos lábios

 

a solidão dos dias

sem ternura [7]

 

Mas uma saída do vago pátio interior, espaço do isolamento esquecente, é proposta pela construção erótica de um “jardim de inverno”, em que florescem pessoas, animais, plantas, em que o corpo que compartilha sua verdade com a verdade do mundo cresce e se modifica e percebe tudo e recebe tudo naturalmente . Eis o florescimento da memória no poema:

Jardim de inverno

 

Jardim de inverno

suspenso na manhã

(...)

É como um útero

secreto

e encontrado

onde se adivinha uma semente

 

E sobre a pele

oásis

pelos olhos

 

e nos sentidos

brandura

reiventada

 

como outro gesto

detido nas paredes

no mais interior

que tem a casa

e ai detenho

e tu

nos encontramos

 

e aí penso

seguro

e me debruço

 

sentindo o teu corpo

sobre o meu

 

e o mundo batendo

no meu pulso [8]

 

No “jardim de inverno”, onde se cultiva a experiência de conluio carnal com o outro e se nega a “solidão/ dos dias sem ternura” da mulher-solidão, florescem reminiscências de boas sensações, de afecções prazerosas. Essa comunhão do corpo feminino com a natureza, recriada no poema como sendo um “útero” “onde se adivinha uma semente” é promotora de um eu-lírico que confessa: “detenho”; prazer que não só permanece na lembrança, como também se detém no mundo enredor, se espalha, germina a realidade, faz nascer (unindo Eros e Natureza), por uma estratégia memorialística, plantas, animais, cheiros, sabores, o “mundo batendo no pulso”... Se inaugura a celebração de um prazer que não será atropelado por galope algum do esquecimento, mas que é o próprio tropel, perigoso, mortal, mas paradoxalmente edificante e revelador...

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DISCOGRÁFICAS


BERGSON, H. (1990) Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito . Tradução de Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes.

CUNHA, Helena Parente. (1992) Ecologia: um retorno que mobiliza o avanço : considerações sobre o relacionamento mulher-natureza. In: TEMPO BRASILEIRO. Ecologia e Literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro p.77-92 (Comunicação 7).

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. (1999) Novo Aurélio século XXI : o dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

HALBWACHS, Maurice. (1994). Les cadres saciaux de la memoire . Ed. Albin Michel, Paris.

----. (1990) A memória coletiva . Tradução de Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Edições Vértice.

HORTA, Maria Teresa. (1994). Antologia Poética. Lisboa: Circulo de Leitores.

---------. (1983) Mulheres de Abril. In: ----. Poesia Completa 2 . Lisboa: Litexa.

PARMÊNIDES DE ELÉIA. (1973) “Sobre a Natureza”. Tradução de José Cavalcante de Souza. In: ---. Fragmentos . São Paulo: Editora Nova Cultural. (Os pensadores).

SOARES, Angélica. Nas águas do erótico/ecológico (rompimento das margens na poesia feminina brasileira contemporânea). In: TEMPO BRASILEIRO. (1992) Ecologia e Literatura . Rio de Janeiro. (Comunicação, 7).

 

1. HORTA, M.T. 1994: 214

2. SOARES, A. 1992: 41

3. HORTA, M T. 1994 :112

4. FERREIRA, A B H. 1999 : 1758

5. O RAPPA. O salto. IN: ---. O silêncio que precedo o esporro. Warner: 2003 faixa 11

6. HORTA, M T. 1994 :151

7. HORTA, M T. 1983 : 226

8. HORTA, M. T. 1994: 137, 138

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