BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O FEMININO CELTA:

ENTRE A MULHER SOL E A MÃE DE DEUS

Mônica Amim (Doutoranda em Literatura Comparada – FL/UFRJ)

 

Devido aos muitos movimentos migratórios e aos inúmeros territórios ocupados pelos celtas, nem sempre podemos falar de um povo celta ou de uma civilização celta stricto sensu . Muitas vezes, ao nos depararmos com algum dado (objetos, manifestações religiosas, palavras) com características celtas, deveríamos falar de uma civilização ou de um território onde eles exerceram alguma influência.

Tendo dominado um vastíssimo território ocupado por uma variada gama de populações, a civilização celta desenvolveu-se, então, em um meio bastante heterogêneo. As dominações eram sem dúvida de natureza político-militar, porém não podemos precisar se possuíam superioridade numérica ou não, e há muitas divergências sobre isso entre os estudiosos. O que nos parece importante ressaltar é que, se a princípio, os vencedores celtas se constituíam como uma classe dominante que mantinha intacta suas características fundamentais, inclusive étnica, com o passar dos séculos é certo que se miscigenavam às populações autóctones, absorvendo-as. Essas, por sua vez, adquiriam rapidamente os costumes e a língua dos conquistadores, mesclando-os aos seus próprios hábitos. Esta constante integração com outros povos pode ser um dos motivos para algumas diferenças importantes entre as estruturas das civilizações de origem celta e as de outros povos indo-europeus.

Essas diferenças refletem-se na organização sócio-política, nas estruturas familiares e nas instituições jurídicas, porém, para nós, seu reflexo mais forte pode ser notado sobremaneira nos códigos de conduta e costume, estejam esses expressos ou não em leis, e na posição da mulher nas sociedades celtas. É exatamente sobre esse último aspecto do cotidiano celta que faremos agora algumas observações.

Notamos que há um diferencial importante entre as sociedades celtas e as outras de origem indo-européia: o conjunto de normas relativas ao casamento. As mulheres eram livres para escolherem seus maridos e as famílias não podiam casá-las contra sua vontade, sendo necessário, porém, haver acordo entre as famílias dos futuros cônjuges. Na literatura de origem celta, encontramos a personagem Rhiannon – por exemplo - em duas narrativas do Mabinogion (conjunto de estórias galesas medievais composto de onze narrativas): em Pwyll, príncipe de Dyfed e em Manawydan, o filho de L y r. No primeiro conto, ela se recusa a casar com o pretendente escolhido pelo pai, e utiliza uma série de estratégias para que aceitem aquele que ela deseja, Pwyll. Na outra estória, anos depois, ela já está viúva com um filho adulto, e este tem que consultá-la antes de concretizar a união dela com seu amigo Manawydan.

Além disso, cada indivíduo levava seus bens pessoais para o casamento, sendo que o pai da mulher (e na falta desse o irmão) recebia um tipo de dote e a própria mulher recebia, na ocasião, presentes de família ( Tinnsera ). Após o casamento, a mulher continuava a ter bens próprios e não perdia sua origem familiar, isto é, não entrava para a família do marido. Devido a esta independência financeira das partes, em caso de separação ou morte de um dos cônjuges, uma parte nada herdava da outra, levando consigo apenas o que trouxera para o casamento e dividindo entre si, ou com a família do morto, o montante adquirido após a união. Assim, os direitos adquiridos pelo marido após o casamento limitavam-se aos filhos e ao corpo da mulher. Neste particular, encontramos algumas regiões onde o pai da mulher recebia uma quantia compensatória como Preço da Virgindade ( Cowyll ). Entenda-se, todavia, que o Preço da Virgindade não dizia respeito a uma reparação decorrente de uma visão pecaminosa do sexo; estava, sim, relacionado a um profundo respeito pelo corpo e pela pessoa feminina, considerada então um ser moralmente superior. Achava-se então relacionado à honra, mas não no sentido moralista e sexual das civilizações judaico-romano-cristãs, pois para os celtas a honra encontrava-se na face e no nome de cada um, daí a difusão do uso de máscaras e do sobrenome, visto que ao conhecer a face e o verdadeiro nome de uma pessoa pode-se dominá-la, já que neles estão contidos a essência dos ser, sua honra (MARKALE,1989,pp.50-51). Em outra narrativa do Mabinogion, intitulada O sonho de Macsen Wledig , a personagem Elen ao se casar com o imperador Macsen pede – e recebe – como dote por sua virgindade as terras da Ilha da Britânia.

Concluímos, assim, ser o casamento apenas um contrato sem caráter sagrado ou obrigatório; rompida umas das cláusulas, rompia-se o casamento, e isso talvez explique a grande ocorrência de divórcios. Ora, para os celtas o divórcio não tinha a idéia de repúdio, como em outras sociedades, devido à igualdade de condições das partes. Assim, o marido que quisesse o divórcio, sem motivos justificados, deveria pagar uma recompensa à esposa, e esta, em caso semelhante, perdia o direito à parte conjunta dos bens. Comprovamos ainda a existência da poligamia e talvez da poliandria (entre os pictos), havendo inclusive o Concubinato Legal, que todavia só poderia ocorrer com o consentimento da esposa legal ( cétmuinter ).

Podemos assim perceber o status das mulheres na sociedade celta pois, se o homem era o chefe da família, a chefia do casal cabia a quem tivesse mais dinheiro, e em caso de igualdade verificava-se a total independência das partes para realizar todo tipo de negócios, havendo intervenção da outra parte apenas se a transação se mostrasse desfavorável. O marido que não era chefe do casal, portanto sem autoridade, era denominado homem de serviço ( fer fognama ) e, na Bretanha e no País de Gales, algumas mulheres foram até chefes de família e tiveram o direito de reinar, quando em linha sucessória e eleitas. Verifica-se ainda a sucessão matrilinear e, em vários textos, inclusive literários (como vemos em Tristão e Isolda ), a adoção do nome da mãe pelos filhos, fatos dos quais deriva o direito avuncular, pelo qual o filho herdava do tio materno, em total igualdade com os próprios filhos deste, não só os bens como também o direito à sucessão real. (MARKALE,1989,p.58).

Para uma melhor compreensão do papel da mulher nas diversas sociedades, torna-se necessária uma discussão mais aprofundada da relação entre homens e mulheres e da comprovada influência em cadeia desta relação no casal, na família e, por conseguinte, na sociedade. Observamos que as mudanças ocorridas através dos tempos nas estruturas político-jurídicas são, via de regra, superficiais, dado que é importante mudar, primeiro, a estrutura mental (mentalidade) transmitida de geração para geração.

A sociedade é o modo operacional lógico e necessário onde vivem os homens, já que a sociabilidade é um dos fatores componentes da humanidade, sendo esse modo operacional baseado em convenções e postulados fundamentais. A partir do Neolítico o desenvolvimento de técnicas para o aumento da produção agrícola, como a irrigação e a charrua, traduzia as tentativas do homem de dominar a natureza. Na divisão de tarefas então surgida coube ao homem as atividades consideradas mais perigosas e nobres que eram exercidas fora de casa; à mulher destinaram-se as tarefas tidas por menos nobres e perigosas como cuidar dos filhos e da casa. O motivo usualmente alegado para tal divisão é a força física, que constitui uma falácia facilmente constatada se lembrarmos das tarefas pesadas exercidas na agricultura pelas mulheres, ainda hoje, em várias sociedades, inclusive entre os índios e várias tribos africanas.

Dessa forma, o homem apropriou-se então da agricultura, por ser supostamente superior à mulher fisicamente, acarretando o desprestígio desta no campo social. Essa desigualdade, advinda da divisão do trabalho, tornou-se um postulado fundamental e foi sendo paulatinamente introjetada nas estruturas mentais, tendo na educação das crianças um dos veículos fundamentais para a sua difusão. Os avanços técnicos, e o conseqüente progresso material e econômico, criaram um tipo de sociedade baseada no rendimento, que encara a mulher como aquela que diminui o rendimento já que desvia a energia produtiva masculina para a sexualidade. Essa idéia encontra-se representada em Gereint, o filho de Erbin (outra narrativa do Mabinogion ), quando - logo após seu casamento com Enid - Gereint passa a ser criticado pelos membros de sua corte por sua dedicação exagerada à esposa, fato que estaria desviando sua atenção dos assuntos do reino. Nesse sentido, essa visão negativa do feminino, relacionada também ao pecado em algumas sociedades (como a judaico-romano-cristã), colocou a mulher fora do sistema produtivo como mera reprodutora e impingiu-lhe tarefas que, de alguma forma, lhe restringiam a liberdade. Ainda hoje à maior parte das mulheres que exercem atividades remuneradas fora de casa é imputada, apesar da dita emancipação feminina, uma culpa e/ou uma dupla jornada de trabalho. A origem destes problemas reside numa “moral masculina” dominante a partir de Moisés e existente, de alguma maneira, em todas as religiões, principalmente nas de influência judaico-romano-cristã.

Ao ser primitivo eram apresentadas três necessidades fundamentais: a alimentação, a proteção e a procriação. Nas sociedades mais primitivas, que julgavam que só a mulher tinha poder sobre a procriação, ela era vista como um ser mágico que se relacionava com as divindades. Em tais sociedades havia então uma maior importância do feminino no plano social. Verificamos aí a ocorrência de cultos à Deusa, ou divindade com características femininas, notadamente o culto à Deusa-Mãe, responsável também pela nutrição (e sua conseqüente relação com a terra). Vendo a terra como aquela que, além de dar vida, acolhe também o defunto, várias sociedades atribuem às mulheres a responsabilidade pelos funerais, numa clara alusão à idéia de ressurreição ligada ao ciclo morrer e brotar das plantas e vegetais (D'EUABONNE, 1977, pp.29-40).

Ao se dar conta de sua função na procriação, como fecundador da mulher e, por extensão, da própria terra (apropriação da agricultura), o homem assume de vez uma posição de superioridade em relação à mulher, observando-se então no plano místico-religioso o Aparecimento do Deus-Esposo. Podemos, a partir daí, falar em sociedades de tendências patriarcais ou matriarcais e - para não entrar na infindável discussão sobre patriarcado e matriarcado - lembramos que Jean Markale prefere o termo “paternalista”. Ainda segundo Markale, verificamos essa tendência paternalista em todas as sociedades após o Neolítico, período que foi a base de formação de todas as sociedades modernas, inclusive as industriais (MARKALE, 1989, p.16).

Como sempre as mudanças podem ser sentidas através do mitológico com a transformação da Mulher Sol (principal e irradiadora) em Mulher Lua (aquela que apenas reflete, secundária), caso típico de Eva e Lilith. Assim, dessa nova estrutura mental deriva uma nova ordem que deve ser mantida a qualquer custo, tal como o fizeram os romanos e a igreja. Aí está a razão pela qual o Druidismo ameaçava o Estado Romano e a Igreja, sua herdeira, visto que os valores druídicos celtas não eram do tipo paternalista ideal e colocavam em risco as instituições temporais destes, devendo portanto ser combatidos energicamente, como aliás o foram. Algo porém deve ficar claro: as sociedades celtas, como todas de origem indo-européia, eram patriarcais. Todavia, sua mescla com as populações autóctones propiciou a assimilação de sistemas e estruturas que, por sua vez, possibilitaram as condições de igualdade e liberdade aqui relatadas para homens e mulheres.

Deve-se também a esse “paternalismo” mais flexível a ocorrência de algumas exceções; embora coubesse ao homem o papel de chefe ou rei da tribo ( túath ), temos devidamente atestado em várias fontes o caso de Bodicea, mulher que governou seu povo e liderou a revolta bretã de 61d.C. Percebemos ainda, apesar do caráter masculino da realeza, a importância da rainha, que tinha a ela destinada parte do espólio referente ao tributo de guerra. O homem era o chefe da família e da casa ( cenn-fine, tiern ou machtiern ) o que, em algumas regiões, correspondia ao status de conde, mas há notícias de que algumas mulheres exerceram as funções de machtiern .

Enfim, casadas ou não, as mulheres celtas podiam exercer várias funções, inclusive religiosas, valendo destacar seu importante papel na educação dos jovens guerreiros como mestras de armas, das artes, da magia e como iniciadoras sexuais. Paredur, o filho de Efrawg (também encontrada no Mabinogion ) é, nesse sentido, uma narrativa bem interessante. Apesar das influências normandas e do romance cortês, alguns episódios relatam a possibilidade de as mulheres desempenharem diferentes funções. Inicialmente, temos a mãe do protagonista ditando a ele as regras de conduta e cortesia antes de sua partida para a corte de Artur. Posteriormente, serão as bruxas de Caer Loyw (Gloucester) – as quais ele está predestinado a matar como veremos ao final – as responsáveis pelo treinamento de Paredur como cavaleiro.

 

 

A liberdade sexual e a inexistência de tabus e preconceitos, até com relação ao homossexualismo masculino e feminino, deve-se à ausência da noção de pecado. Nesse sentido, não sendo objeto do pecado – logo não sendo uma ameaça – a mulher podia ocupar com tranqüilidade seu lugar na sociedade (MARLALE,1989, pp.47-48; 53-58). Detectamos em textos cristianizados, como A Demanda do Santo Graal , a deturpação destas noções e a conseqüente apresentação das mulheres e donzelas, que surgem pelos caminhos, como sedutoras e disvirtuadoras dos cavaleiros.

Para finalizar, pensamos que a mitologia celta nos ajuda a esclarecer muitas das questões aqui levantadas. Considerando que o mito nos transmite, simbolicamente, realidades passadas (e que, ao transcender essas realidades, expressa as estruturas ideais do pensamento de um povo), será também pela mitologia – e não somente através de dados históricos concretos – que chegaremos ao fundo do pensamento de um povo. Esse é o caso dos povos celtas, pois eles não narraram simplesmente a sua história: sonharam-na, sobretudo. Assim, sua mitologia, devidamente dela descartadas as deturpações introduzidas pela cristianização dos textos, é o fiel reflexo de seu pensamento. O mito só resiste se é fecundo, caso contrário é esquecido visto que constitui uma realidade do pensamento. Como ensina Markale:

Se pretende-se retomar um raciocínio marxista, o Homem deve conhecer a História, interpretá-la e projetá-la no futuro, considerando as modificações cabíveis. De fato, dentro do domínio celta, a História é o Mito ... a realidade de pensamento constituída pelo mito adquire um valor operacional indubitável, já que ela permite influir sobre a realidade da vida ... a dialética História - torna-se – Mito é ambivalente e pode facilmente tranformar-se em Mito – torna-se – História ... o Mito sempre exerceu uma ação sobre a História: caso contrário os grandes personagens da História não teriam agido como agiram...(MARKALE, 1989, pp.20-21)

 

Não pretendemos agora aprofundar a questão mitológica, porém vemos que, de forma generalizada, as transformações econômicas e sociais então ocorridas influenciaram as estruturas mentais, que traduziam no mitológico a progressiva secundarização do papel da mulher no social. Recuperando rapidamente esta progressão temos: a transformação da Mulher Sol em Mulher Lua e dos aspectos positivos em negativos; a substituição da Deusa Mãe/Deusa Terra, que tudo dá, pela Mãe de Deus/Terra Fecundada, secundarizando assim suas funções, como bem nos mostra o exemplo da Virgem Maria dado pela Igreja, modelo de submissão a ser seguido. Lembramos, porém, que todas as religiões apresentam deusas e que estas, apesar das deturpações e progressivo desprestígio, são – como figuras mitológicas – reveladoras da mulher, pois relacionam-se a posição por ela ocupada nas antigas sociedades primitivas. Concluímos, então, que as sociedades celtas – onde a sobrevivência de certos arcaísmos adquiridos das populações autóctones conferia às mulheres um status considerável – estão no meio termo entre estas sociedades primitivas e as de formação judaico-romano-cristã.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIBOGRÁFICAS

 

- D'EUABONNE, Françoise. As mulheres antes do patriarcado .Trad.: Manuel ed Campos e

Alexandre de Freitas. Lisboa, Ed. Veja, 1977.

•  MARKALE, Jean. La famme celte: mythe et sociologie . 8 e éd. Paris, Payot, 1989.

•  O MABINOGION . Tradução e introdução de José Domingos Morais. Lisboa, Assírio & Alvim, 2000.

•  THE MABINOGION .translated by Gwyn Jones and Thomas Jones. London, Everyman, 1993.

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