Entre palavra e imagem: auto-retratos de Armando Freitas Filho e Rubens Gerchman

 

Palavra e imagem: como se aproximar de dois modos de produção de sentido constante e artificialmente tornados antagônicos sem obliterar as especificidades que individualizam tinta e pena, negativo e grafite? Como sondar as relações entre palavra e imagem sem ignorar que também a escrita é imagética (as palavras mesmas que grafam este texto sendo fruto de impressões de tinta sobre o papel) e sem ocultar que os sentidos produzidos pela pintura ou pela fotografia passam também pelo crivo da linguagem verbal?

Na expressão “word and image”, que define o campo de estudo das relações entre linguagens verbal e visual, a própria conjunção “e” – ao mesmo tempo marco divisor e elo entre palavra e imagem – é índice tanto das especificidades entre os dois meios de expressão, que os tornam irredutíveis um ao outro, quanto de suas homologias estruturais (Cf. MITCHELL, 1996, p. 53) [1]. Nesse sentido, não se busca alcançar um terceiro termo – nem palavra nem imagem – que apaziguadoramente desfaça a tensão entre semelhança e diferença nos modos de expressão verbal e visual. Ao contrário, o esforço aqui é feito de modo a realizar uma análise situada nos limites, sempre escorregadios, entre verbal e visual mais que uma tentativa de demarcar contornos rígidos entre palavra e imagem. Pretende-se afirmar, desse modo, a relação entre linguagens como uma busca de expansão das fronteiras entre os gêneros – e que nem por isso apaga ou justamente por isso não apaga as diferenças ou as coerções das materialidades de cada expressão. Uma relação entre linguagens que se dá pela imbricação, pela confusão, sem, porém, reduzir uma forma de expressão à outra.

Essa confusão nas linguagens analisadas, porém, ameaça projetar-se sobre o ato de leitura: são muitas as possibilidades de abordagem da problemática da palavra e imagem, são heterogêneos os meios de produzir sentido. Há o constante risco de que a indefinição se sobreponha à clareza. Diante do risco de confusão e turvamento, algumas diretrizes podem nos ajudar a direcionar a análise: é preciso selecionar um corpus em que possamos trabalhar a relação entre linguagem visual e poesia em textos que abordem o problema do retrato e do auto-retrato. Além disso, a Semiótica francesa norteia as reflexões aqui feitas.

Selecionar um objeto de análise envolve, nessas condições, alguns riscos: eleger um texto que problematize os vínculos entre palavra e imagem deixa-nos sempre sob a ameaça do reducionismo. Tal perigo é ainda mais intenso quando a eleição do objeto se pauta na afinidade: a escolha da escrita de Armando Freitas Filho é fruto de um desejo que se afirmou acima do perigo de amesquinhar a complexidade da questão do auto-retrato em sua obra. Ainda buscando organizar as reflexões sem abandonar a indefinição necessária a toda análise, delimitamo-nos ao livro 3x4 .

Este livro, cujo tema da iminência, das beiras é freqüente, guia-nos na tentativa de esclarecer a construção discursiva do auto-retrato e as iluminações e obscurecimentos propiciadas pelas relações entre diferentes meios de expressão. A escrita deste poeta nos conduziu à obra de Rubens Gerchman, cuja análise, marcada pela descoberta, faz-nos voltar à obra já tantas vezes lida de Armando Freitas Filho e reencontrá-la impregnada de novos matizes.

De um lado, o impacto sempre renovado da leitura de um texto que repetidamente nos comove, de outro, a desestabilização do olhar pelo novo, este trabalho é o resultado de uma leitura nos limites. Nas fronteiras entre claridade e obscuridade, tenta-se desvendar as intercessões entre palavra e imagem.

 

•  Retrato 3x4 de Armando Freitas Filho

 

Não é certamente inovador abordar o problema da relação entre artes visuais e a poesia de Armando Freitas Filho. Em 3x4 , a capa, ilustrada por Gerchman, parece convidar o leitor, desde o princípio, a refletir sobre as interações entre tinta e pena. Em seus poemas, são freqüentes, ainda, as referências, explícitas ou implícitas, a artistas visuais. Esse diálogo, constante e intenso, indica uma relação mais profunda da poética de Armando Freitas Filho com as artes visuais graças à qual a própria estrutura do texto é impregnada de visualidade.

3x4 , cuja escolha representa já uma tentativa de definição e organização, possibilita, assim, diferentes aproximações da problemática da “palavra e imagem”. O título nos indicou um caminho a seguir: estudar os diálogos entre o retrato fotográfico e a poesia de 3x4. Mais especificamente, por meio da análise da rede figurativa do texto, será abordado de que modo é trabalhado no livro o problema do auto-retrato.

O conceito de figuratividade permite-nos, por meio do mapeamento das figuras de um texto, observar “a passagem do que é perceptível ao que é enunciável como um processo de conhecimento, um processo semiótico, portanto, organizado em diferentes patamares de profundidade” (TEIXEIRA, 2004). Assim, pelo mapeamento, na superfície do texto, das figuras, elementos concretos da semântica discursiva, pretendemos vislumbrar uma figuratividade profunda reveladora da concepção do auto-retrato em 3x4 e de suas relações com os esquemas conceituais organizadores da visão de mundo que transparece no livro (cf. TEIXEIRA, 2004).

Sigamos o percurso do leitor. Desde a capa, estabelece-se um jogo complexo entre revelar e velar, evidência e ocultamento. Imagem da identificação do indivíduo nos documentos oficiais, o retrato 3x4 é, talvez, aquele cuja práxis enunciativa [2] mais intensamente mascara as relações complexas entre iconicidade e semiose do mundo natural. A suposta objetividade da máquina fotográfica e o olhar exterior do fotógrafo reforçam o efeito de sentido de uma iconização fiel daquilo que melhor figuraria a identidade do sujeito: o rosto.

Basta, porém, o leitor deslocar um pouco o olhar do título e desfaz-se a cômoda promessa de uma revelação total do enunciador. Na capa da edição de 1985, a imagem que acompanha o título, uma aquarela de Gerchman, reforça que o retrato construído será fragmentário – o rosto está de perfil, há um lado da face oculto – e embaçado – não há contornos definidos, a figura é desenhada por manchas de tinta sobre o papel.

Nos poemas, o jogo entre revelação e velamento se desdobra e se intensifica. “Entre”, título do primeiro conjunto de textos, é já ambíguo: preposição ou imperativo? A ambigüidade tensiona, no plano da expressão, os significados estabelecidos e erige a instabilidade como fundamento do retrato construído em 3x4 .

No primeiro poema do livro [3], espécie de afirmação prévia do que virá, mais uma vez a ambigüidade:

 

Em si mesmo

como espelhos, lagos

polaróides

com revelações instantâneas

feito um filme, fita

24 vezes p/ segundo

24 quadros

na câmara escura

sou 400 ASA voando

cem soluções à vista (FREITAS FILHO, 1985, p. 25)

 

Cem soluções à vista , cem poemas, sem. Esse verso desencadeia duas isotopias temáticas: a da multiplicação e a da ausência. Mais uma vez o enunciador coloca o leitor em uma encruzilhada: a multiplicação, pela apresentação de diversos prismas, ajuda a evidenciar o eu; no limite, porém, ameaça as possibilidades de apreensão do sentido e tende a ocultar o retratado e a embaçar o olhar do espectador do retrato:

 

Qual a face da moeda

que resistirá mais tempo

fechada na palma

ao suor da corrosão, à ferrugem

emudecendo uma voz do dueto

para dourar a outra, em solo

para durar ao sol de um dia inteiro

às voltas com sua própria sombra

num duelo único, unânime

no espelho, longe das luzes dos diademas? (FREITAS FILHO, 1985, p. 31)

 

O eu se multiplica e o ego dúbio se revela sempre em parte. O percurso temático da dualidade, ao subsumir tanto o tema do dueto quanto o do duelo, encadeia a isotopia da multiplicação à da ausência: há apenas uma das faces evidentes, o espelho revela apenas um dos “combatentes do duelo” e o leitor não pode comparar o reflexo ao refletido. Intensifica-se, assim, a instabilidade da relação do enunciatário com o texto, pois é afirmada a falta daquilo que se quer presente: os dois gumes da face, um rosto que se dê a ver como um todo.

Essa instabilidade é aguçada pelo percurso temático da velocidade. Voltemos ao primeiro poema. Novamente a ambigüidade: sou 400 ASA voando . As figuras que veiculam o tema da velocidade, “polaróides”, “revelações instantâneas”, constroem um efeito de sentido de um mínimo de mediação: instantâneo, o retrato polaróide é na hora H, sem tempo para retoques, evidente. Ao mesmo tempo, por meio da polissemia, da ambigüidade, conectam o tema da velocidade às isotopias temáticas da fluidez e da inconsistência, que intensificam o efeito de sentido de ocultamento do eu: “voando”, a figura do enunciador que se constrói é inconsistente como os “fantasmas”, os “vultos”, os “espectros”; fluidas, suas palavras “erram no ar” (p. 28), sem pouso.

Além disso, a aceleração, ao tender a um máximo de intensidade, solapa a duração mínima necessária à produção do sentido por meio de uma sintaxe marcada por silepse, lapso e síncope (p. 70). Ocasiona também a descontinuidade entre sujeito e objeto e ameaça a integridade do enunciador, que se auto-grafa de forma lacunar, e a do enunciatário, que vê o seu reflexo inscrito no texto por meio da ironia e da provocação. O excesso de velocidade é indicativo da relação do sujeito com os modos de produção de sentido, de sua adesão às situações extremas, na borda, que tangenciam as fronteiras do não-sentido. Em 3x4 , flagramos um sujeito situado sempre nos extremos, um sujeito para quem a boa medida é justamente a duração limite, que expande as distâncias possíveis de inteligibilidade. Pode-se, nesse sentido, expandir a afirmação de Tatit, que busca

 

identificar o corpo no intervalo dos extremos, na luta inglória pela conservação da boa medida, da boa distância e da duração da duração. Este nos parece ser o corpo que subjaz ao texto durante toda a sua extensão (TATIT, 1997, 1994).

 

O sujeito é identificável no intervalo dos extremos, rente às margens (p. 41), justamente porque os extremos são uma fronteira teórica e sempre móvel já que a boa distância se constrói em ato e por meio de corpos específicos, nunca por meio de um corpus . A única desmedida possível é, então, o fracasso ou a morte:

 

(...) poderão muito bem dizer que é belo o excesso, a desmedida... porém não há desmedida, não há senão fracasso, nada além do fracasso (DELEUZE, 1978).

 

Em uma homologação dos planos da expressão e do conteúdo que confere plasticidade ao texto, a sintaxe, às pressas , marcada pelos versos curtos e truncados, expande os limites em que é possível apreender o sentido. A intensidade e freqüência do uso de aliterações e assonâncias, ao minimizar o uso utilitário do significante como veículo do significado, concorre também para expandir a potência da linguagem para além do uso meramente comunicativo. Além disso, ao chamar atenção para a materialidade da escrita, o enunciador esvazia o conteúdo representativo do retrato e homologa o plano da expressão ao percurso temático do embotamento dos sentidos. De fato, assim como a escrita é produtora não só de evidência mas também de ocultamento, os sentidos, que permitiriam ao sujeito a busca da integridade por meio da significação, interpõem-se, embaçados por “luvas”, “óculos”, “fones”, “perfumes”, “lembranças” (p. 110), entre o enunciador e aquilo que será retratado.

A enunciação deixa marcas no enunciado, portanto, de que tanto enunciador quanto enunciatário estabelecem uma relação tal com o texto que estão na iminência de romper os limites do não-sentido:

 

pois estou sempre na ponta

do trampolim

e o tempo aí já não cuida

de segurar nada – não sabe –

conter-se nem contar

o que de fato aconteceu:

se foi vôo, queda ou mergulho. (FREITAS FILHO, 1985, p. 75)

 

Modalizado pelo não saber, o enunciador intensifica o caráter não-evidente do auto-retrato em 3x4 por meio de duas estratégias enunciativas: a do transbordamento e a da contenção. O transbordamento impede o sujeito de narrar-se: não sabe, pois o que transborda e sobra ameaça “empapar com o sangue” o lençol do quarto e as páginas do livro (p. 73). Ao mesmo tempo, a contenção extrema tende no limite à paralisia, à fixidez, que constrói o efeito de sentido da interrupção das gradações na relação do sujeito com o mundo, intensificando-lhe as compulsões por meio de figuras que reiteram, de um lado, a isotopia figurativa do limite (vôo, queda, mergulho) e, de outro, a impossibilidade de discernir, de compreender – o não-saber do enunciador e do enunciatário:

 

Um lago degolado

rente às margens;

nada aqui

transborda

nenhum céu se derrama

para fora da garganta

desse olhar que se arregala

e cai por terra. (FREITAS FILHO, 1985, p. 41)

 

Por meio de uma homologação entre a sintaxe, instauradora das relações entre poeta e leitor, e a semântica, disseminadora de percursos temáticos e figurativos, ambígua e tensamente produzem-se os efeitos de sentido de evidência e de ocultamento, que permitem depreender uma figuratividade de base que subverte as expectativas de evidência criadas por meio da figura “3x4” do título. Se o título parecia indicar um retrato documental do sujeito, constrói-se uma inversão ao longo do livro: os textos de “Antes”, último bloco de poemas, insistem no termo contrário, o anti-retrato.

No outro extremo, não seria também o anti-retrato “pista falsa” (cf. SÜSSEKIND, 1985)? O enunciatário, advertido de que a ironia fundamenta sua relação com o texto, deve desconfiar de toda solução excessivamente simples em que possa abandonar uma opção totalizante em nome de uma nova. Assim, em 3x4 , observa-se um movimento que parte de uma possível construção de um retrato evidente do enunciador a que se segue um movimento de esvaziamento cada vez mais intenso até os limites do anti-retrato, sem que se chegue a construir um anti-retrato, também totalizante.

Sem eleger o retrato ou o anti-retrato como o modo de construir sua figura aos olhos do leitor, o enunciador constrói-se como figura em fuga. Sem fôlego, o enunciatário busca seguir as pistas lançadas pelo sujeito. Em vão, pois na construção do retrato como espaço de tensão e instabilidade deixa-se “o dito pelo não dito” (p. 103) e o eu, múltiplo, dúbio, “escapa ao registro” (p. 129) em poemas “tão zen que são sem” (p. 133).

 

2. Carteira de identidade de Rubens Gerchman

 

Em meio à extensa obra de Gerchman, selecionar aqueles trabalhos que possam vir a contribuir para a reflexão sobre o retrato e o auto-retrato e sobre as relações entre palavra e imagem. É com esta tarefa – melhor seria dizer desejo – que meus olhos percorrem os trabalhos do artista plástico. Fixo-me, primeiramente, na tela Carteira de identidade , de 1965 (ver anexo 1.1). Curioso lembrar que analisar este quadro pareceu-me, de início, óbvio: as palavras grafadas no canto superior direito anunciariam possíveis discussões excessivamente fáceis da problemática do “word and image”, as intercessões com o tema do auto-retrato seriam talvez demasiadamente evidentes. Porém, tanto mais meus olhos buscaram um fio de análise, mais a suposição de simplicidade se desfez: problematizam-se os modos de simular e inscrever o eu nos discursos, enriquecem-se as relações entre pincel e letra. A tela impele o observador a lidar com sua complexidade, instiga-o a subverter o já conhecido.

Os olhos voltam a se fixar sobre a tela, buscando acostumarem-se com a intricada rede de relações vislumbradas, tentando estabelecer as hierarquias, iluminar sua constituição. A organização topológica do quadro orienta o olhar. A tela é dividida, por meio de uma grande diagonal, em lados esquerdo e direito, aquele conduzindo nossos olhos pela regularidade geométrica de formas, este fazendo-nos atentar para a concentração de figuras e mesmo para a coexistência de linguagens; aquele, marcado por um mínimo de figuração, este, pela multiplicação de figuras que tendem à iconização do sujeito. Esta primeira segmentação, que evidencia a co-ocorrência de pelo menos dois modos de significar à primeira vista radicalmente distintos, o figural e o icônico [4], faz-me formular algumas interrogações primeiras: como são postos em tensão estes diferentes modos de significar e que relações de força se estabelecem entre os efeitos de sentido produzidos por eles (cf. BERTRAND, 2004)?

Concentremo-nos inicialmente no lado direito do quadro. Também aí a organização topológica leva o observador a segmentar: alto e baixo distinguem-se pelo cromatismo do fundo e pelo denso contorno negro que separa da parte superior da tela o aglomerado de formas da parte inferior. No alto, o espectador se depara com as palavras inscritas na tela: à esquerda, CARTEIRA DE INDENTIDADE/ estados unidos do Brasil/ nº 1 566 166 , e AUTO POLEGAR DIREITO , na extremidade direita do quadro. Carteira de indentidade : subverte-se o significante. O acréscimo da nasalidade, além de retomar um uso popular, atualiza o tema da ausência: in -, prefixo, usualmente é acrescentado aos lexemas iniciados por “d” para indicar negação: indizível , indefinível , indiscernível, “indentidade” . Coexistem, pois, na mesma expressão dois temas incompatíveis – a identidade e seu mascaramento –, postos em tensão e convocando o observador a questionar que importância e que intensidade assumirão esses temas postos em relação. Uma vez que baseada na tensão, a resposta precisa ser buscada no confronto com os outros elementos da tela.

Auto polegar direito : subvertem-se o significado e o significante. Onde se esperava ler retrato, o que é dado ao espectador é a figura do dedo. Há, assim, um obscurecimento do tema do retrato, que, porém, não é absolutamente negado, mas virtualizado por meio da linguagem verbal: embora não atualizado, a memória faz o espectador reconhecer no sintagma verbal o retrato tornado ausente. Do rosto à mão, por meio da qual o artista segura pincéis e palheta, a isotopia temática da identidade é conectada à isotopia figurativa dos instrumentos da pintura: identidade e pintura, figuratividade e plasticidade se relacionam intimamente. Além disso, ao inscrever no enunciado um simulacro do eu como as digitais, realiza-se um novo modo de figurar o eu, que não apenas a canônica representação do rosto ou de rosto e busto: as impressões digitais, ao retomar o formato da figura desenhada à sua esquerda, parecem constituir espécie de recuperação anafórica do rosto. A imagem do rosto, próximo ao retrato 3x4, tende, por sua vez, a um máximo de iconização, que é amenizada, contudo, pela inusitada cor alaranjada que toma o fundo e se estende sobre a figura. Enunciação enunciada, o conjunto formado pela expressão verbal, pelas impressões digitais e pela figura do rosto constrói a isotopia temática da identidade por meio da multiplicação dos simulacros do eu, ainda que esta figuração do corpo próprio não siga os modelos usualmente associados ao retrato.

Nas palavras grafadas próximas ao centro da tela, concorrem os temas da identidade e de sua ausência. À direita, multiplicam-se os modos de figurar o eu, porém sempre de forma a desestabilizar as maneiras instituídas de olhar. Diante de ausência e afirmação, o olhar do espectador flutua pela tela sem encontrar solução para o problema, cada vez mais complexo, da identidade do sujeito.

Os olhos descem um pouco e se fixam na grande massa na parte inferior do lado direito da tela. Um aglomerado de figuras desafia o espectador: há uma multidão, em vez da solitária imagem reiterada pela práxis do retrato. Além disso, as figuras não podem facilmente ser associadas a elementos do mundo natural: rostos humanos, máscaras? Até mesmo a solidariedade entre os elementos do grupo é problemática: em filas, uma série de formas circulares alaranjadas, organizadas em diagonais opostas às do lado esquerdo da tela, unem-se por um grosso contorno negro na última fila do bloco, por linhas finas na segunda fila, e uma figura se desprende do grupo no plano da frente. Além disso, as grossas linhas sinuosas que descendem das formas alaranjadas e que no alto uniam algumas figuras, vão perdendo essa função conforme descemos até a primeira fila. Há, pois, uma gradação decrescente na solidariedade figurativa dos elementos da massa. Os temas da individualidade e da descaracterização são também aqui postos em tensão, agregando-se aquela à isotopia temática da identificação e esta à isotopia temática do apagamento.

É justamente aquele elemento solitário à frente o único que tem alguma parte do rosto nitidamente desenhada, a boca, figura que tematiza a identidade do eu: sinédoque de uma totalidade representada pela parte ou intensificação do caráter parcial do retrato? Mais uma vez, o espectador, já agora ciente de que a construção do auto-retrato se dá pela desestabilização, não se vê apto a responder: entre evidência e apagamento, a identidade do sujeito flutua, se constrói e desconstrói.

Atraído pelo rosto com a boca, elemento em destaque dentre tantas figuras não individualizadas, o espectador pode vir a reparar que, de verdade, olhos, boca e nariz estão desenhados nas figuras, ainda que apagados pela tinta alaranjada que recobre o rosto. Mais uma vez ausência e presença, apagamento e transparência coexistem. Apaga-se no eixo da extensidade o rosto das figuras, porém é o evidenciamento, ainda que de apenas uma boca, que se afirma no eixo da intensidade. Em Carteira de identidade , as tentativas de restringir o problema do retrato a respostas fechadas continuam, assim, a mostrarem-se vãs.

Quase abandonando a profusão figurativa do lado direito, o olhar se depara com a figura central, ligada ao aglomerado do lado inferior direito pelo verde do busto, mas dele dissociada pelo cinza do seu rosto. Esta, a única figura que tem os elementos do rosto nitidamente delineados, ocupa exatamente o centro do quadro, atendendo à práxis do retrato quanto à disposição no espaço: o rosto do retratado está centralizado, seu nariz serve de ponto por onde podemos traçar linhas que dividam perfeitamente o quadro em alto e baixo, esquerda e direita. Porém, essa figura, de dimensões reduzidas, ao fundo, é parcialmente ocultada por uma das figuras (quase) sem rosto: elemento que figurativiza a identificação do sujeito, tem sua força de evidência minimizada desse modo.

Os olhos, finalmente, passeiam pelas formas regulares, puramente plásticas do lado esquerdo. Diagonais formam zonas de cromatismo diverso: um pequeno triângulo preto, contíguo a paralelogramos também negros, paralelogramos em gradações de amarelo, laranja e cinza. Buscando se habituar à mudança entre o excesso do lado direito e a contenção no lado esquerdo, os olhos encontram no cromatismo o primeiro fator de continuidade entre um e outro lado: as mesmas cores aparecem em uma e outra área da tela. Atentando um pouco mais, observa-se que algumas figuras do lado direito avançam sobre o lado esquerdo; porém, a figurativização da continuidade entre os lados direito e esquerdo tem como contraponto a grossa linha que separa uma e outra zona, criando o efeito de sentido de contenção da parte majoritariamente figurativa da direita pela zona mais abstrata da esquerda. Desfaz-se, assim, a distinção radical comumente feita entre os dois modos de significar, o plástico e o icônico:

 

Tudo se passa como se a leitura de texto plástico consistisse num duplo desvio: certos significados, que são postulados no momento da leitura figurativa, encontram-se destacados de seus formantes figurativos para servir de significados aos formantes plásticos em via de constituição; certos traços do significante plástico destacam-se, ao mesmo tempo, dos formantes figurativos aos quais se integram e, obedecendo aos princípios autônomos de organização do significante, constituem-se como formantes plásticos. Bem mais do que uma “subversão” do figurativo, estamos assistindo a um processo de auto-determinação, ao nascimento de uma linguagem segunda (GREIMAS, 2004, p. 94).

Há, em Carteira de identidade , uma sobredeterminação do plástico sobre o icônico, a contenção do lado direito pelo esquerdo indicando esse processo. Assim, é o duplo desvio, no âmbito do significado e do significante, como fica claro na expressões verbais carteira de indentidade ou auto polegar direito , que concorre para a tensão entre as isotopias da identidade e do mascaramento do eu, ambas regendo, em diferentes graus, os diversos elementos figurativos do quadro. Nas palavras, nas marcas de digitais que eideticamente redesenham o rosto, na figura-foto laranja, na massa de (quase) anônimos, no pequeno rosto ao fundo e parcialmente escondido, o sentido desliza entre evidência e ocultamento. A plasticidade não só reforça, pois, o efeito de sentido de obscurecimento da identificação do eu por meio da subversão da iconicidade, mas também contribui para a manifestação de uma identidade na e pela pintura, uma identidade que se afirma justamente por ser questionável e questionada, sempre em fuga.

Os olhos voltam a observar a totalidade da tela e fazem-me recordar quão distante ficou aquela sensação de simplicidade. Atendo-me às diferentes áreas delimitadas pela organização do espaço em busca de uma resposta para o problema do auto-retrato, a tensão entre identidade e mascaramento do eu não permitiu uma solução unilateral – ou um ou outro –, mas a constatação de que um efeito de sentido assume mais força que outro: mascara-se mais intensamente o eu, porém sem que seja abandonada a isotopia temática da identidade, ainda que enfraquecida, ainda que regida pela isotopia do anonimato. Mais profundamente, da tensão entre evidência e obscurecimento do eu, erige-se a plasticidade como modo de significar que sobredetermina a construção da tela e que guia o olhar pelo auto-retrato de Gerchman, em que o eu se simula – e se oculta – sempre em estreita relação com os problemas da própria pintura – o polegar, as marcas dos dedos, o retrato... É ela também que nos conduz na tentativa de ler, nas fronteiras, 3x4 de Armando Freitas Filho e Carteira de identidade de Rubens Gerchman.

 

3. Entre tinta e pena: Armando Freitas Filho e Rubens Gerchman

 

A aquarela feita por Rubens Gerchman para a capa da edição de 1985 de 3x4 é o primeiro e mais evidente índice da proximidade entre Armando Freitas Filho e o artista plástico. Afinidade que se estende à vida pessoal, a capa poderia, porém, significar muito pouco em termos de uma aproximação mais profunda: uma expansão das possibilidades de cada meio de expressão quanto mais escrita e pena se comuniquem.

Entre tinta e pena, a zona fronteiriça de escrita e pintura também não se restringe à temática: certamente não é o motivo em comum do auto-retrato o que mais bem caracteriza as apropriações de palavra e imagem pelos artistas. Porém, a observação do conteúdo dos trabalhos aqui analisados pode ser esclarecedora dos modos como se constroem os auto-retratos. A partir da análise da figuratividade, podemos entender as concepções profundas que estruturam os textos e os procedimentos plásticos utilizados para a desestabilização das formas instituídas de figurar o eu.

Ambos, poeta e pintor, partem de elementos extraídos do cotidiano e associados à identificação documental do sujeito: o retrato 3x4 e a carteira de identidade. Ambos, ironicamente, não constroem o retrato transparente que parecem anunciar os títulos. Tanto livro quanto quadro estabelecem um movimento a partir da promessa de evidência em direção a um ocultamento crescente, sem que se atinja o obscurecimento total. Esse deslocamento pode ser mais bem observado por meio do quadrado semiótico:

 

 

 

A opção por um dos dois pólos do eixo complexo é apaziguadora, uma vez que resolveria a questão do retrato em termos de oposição. Instável, a gradação permite que se identifique o movimento axiológico dos textos, que não se dá por meio de pontos fixos mas de modulações. Encontramos já uma primeira aproximação possível: uma vez que o quadrado semiótico mapeia os limites de uma consciência ideológica (cf. JAMESON, 1992), o conjunto de poemas de Armando Freitas Filho e a pintura de Rubens Gerchman, em termos axiológicos, escrevem trajetórias que se encontram em muitos pontos.

É possível ir além. Pode-se pensar de que modo essa proximidade profunda se reveste de intercessões ou divergências em termos plásticos. A plasticidade sobredeterminando os dois trabalhos, os recursos utilizados pelos artistas para (anti-)retratar-se são certamente o que indica de forma mais significativa as fronteiras entre suas obras.

São perfis, pontos de vista e de interrogação , nos diz um poema de Armando Freitas Filho para a pintura de Gerchman [5]. A temática da multiplicidade, apontada tanto na poesia quanto na pintura analisadas, é construída por meio de recursos plásticos próprios a cada meio de expressão: em 3x4 , multiplica-se o número de poemas-retrato (são cem os poemas, sem soluções, porém, que minimizem a variedade de pontos de vista sobre o eu); em Carteira de identidade , multiplicam-se os ícones do sujeito (número de identificação, digitais, retrato, multidão mais confudem que definem a identidade do eu: são pontos de interrogação).

São retratos falados acesos . A aquarela de Rubens Gerchman na capa de 3x4 é um recurso evidente ao visual na construção do contraponto ao efeito de sentido de evidência da figura “3x4” do título. Por meio da subversão do significante e do significado, as expressões verbais grafadas em Carteira de identidade , por sua vez, dão voz às isotopias temáticas da identificação e do apagamento do eu. Por meio de luz e voz, pois, os retratos se constroem na tela e no papel.

Cores e vozes estão em vizinhança: os procedimentos de evidência e apagamento se sobrepõem em vários aspectos. Tanto no conjunto de poemas quanto no quadro, a convocação da expressão como plano que, em relação com o conteúdo, concorre para a produção de sentido é o principal propulsor da desestabilização crescente dos efeitos de evidência no auto-retrato. Assim, o aproveitamento dos recursos plásticos da língua faz com que a série de conectores de isotopias presentes em 3x4 (a preposição-imperativo “entre”, “cem-sem soluções” dadas para o problema da identidade) tornem simultâneas as isotopias que produzem tanto o efeito de identificação quanto o de apagamento do eu. O aproveitamento dos recursos plásticos da pintura faz com que evidência e ocultamento subsistam nos rostos aparentemente anônimos da multidão à direita de Carteira de identidade : à primeira vista sem feições definidas, as figuras têm nariz, olhos e boca embaçados por uma fina camada de tinta, cuja força de apagamento homologa-se também às isotopias da identificação e do apagamento. Além disso, tanto na poesia quanto na tela, minimiza-se o uso utilitário dos recursos da expressão, esvaziando desse modo o conteúdo representativo do retrato: a sintaxe truncada, as aliterações e assonâncias recorrentes nos poemas levam o leitor a se ater à materialidade da língua, vista não mais como veículo de um discurso transparente sobre o eu; o cromatismo e a organização topológica inusitados na tela levam, por sua vez, o olhar a, mais do que buscar o registro de um eu que se desvela, atentar para a visibilidade do retrato como construção plástica.

Essa vizinhança não se dá, pois, por indiferenciação: cores e vozes significam tão somente quando, na fronteira dos gêneros, afirmam a especificidade de cada meio de expressão. A aproximação da ambigüidade em 3x4 e nos rostos quase anônimos de Carteira de identidade é possível porque é construída a partir das potencialidades de cada meio de expressão. Do mesmo modo, é ao chamar atenção para os elementos materiais da língua, por meio de sua sintaxe de lapsos e síncopes e do jogo com os fonemas, que a escrita de Armando Freitas Filho mais tende à fronteira com a linguagem visual de Gerchman, cuja pintura se afirma a partir da organização topológica, eidética e cromática dos recursos visuais.

Os entretons e os degradés se imiscuem à pena do poeta, que se faz, no limite, pincel; as palavras, a voz fazem significar melhor o trabalho do pintor. Nesta aproximação incessante, que nunca chega ao máximo de indistinção, pode-se compreender em que medida a poética de Armando Freitas Filho e a plasticidade de Rubens Gerchman se constroem nos limites, sempre nas beiras: perfis sem fim , o auto-retrato realizado entre pena e pincel pode avançar mais um pouco na desestabilização das distinções entre identidade e anonimato; sinal do infinito , é possível avançar sempre mais um pouco na dissolução nunca definitiva da distância entre palavra e imagem. Também a leitura pode avançar sempre mais um pouco: entre clareza e obscuridade, na busca de compreender a vizinhança de poesia e pintura, a análise de pintor e poeta em relação nunca acaba de se construir .

 

Referências:

 

BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária . Bauru: EDUSC, 2003.

 

FREITAS FILHO, Armando. 3X4 . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

 

______. Cuidado! Tinta fresca!. In: GERCHMAN, Rubens. Rubens Gerchman . Rio de Janeiro: Salamandra, 1989.

 

GREIMAS, A. J. Semiótica figurativa e semiótica plástica. In: OLIVEIRA, A. C. Semiótica plástica . São Paulo: Hacker, 2004. p. 74-96.

 

GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Sémiotique: Dictionnaire raisonné de la théorie du language, thome II . Paris: Hachette, 1986.

 

JAMESON, Frederic. O inconsciente político : a narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo: Ática, 1992.

 

MITCHELL. “Word and image”. In: NELSON, R. S. & Shiff, R. (edits). Critical terms for Art History . Chicago, London: The University Chicago Press, 1996.

 

SÜSSEKIND, Flora. Um piscar de olhos. In: FREITAS FILHO, Armando. 3X4 . Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

 

TATIT, Luiz. Musicando a Semiótica . São Paulo: Annablume, 1997.

 

TEIXEIRA, Lucia. Station Bourse: o que os olhos não viram. In: CORTINA, A., MARCHEZAN, R. (org.). Razões e sensibilidades : a semiótica em foco. Araraquara: FCL/ UNESP, 2004, p. 221-247.

 

 

Anexo 1.1

 

 

 

 

 

 

“Carteira de identidade”, 1965. Acrílico s/ tela. 136x110cm.

 

 

 

 

Anexo 1.2

 

Cuidado! Tinta fresca!

Para a pintura de Rubens Gerchman

 

São perfis. Pontos de vista

e de interrogação.

São retratos falados acesos.

E cada qual proclama

e superpõe os tons

as cores e notas

de suas vozes que falam

em todas as escalas

e canais.

Vozes. Quantas vezes

ao certo, e em curto, se dirá

o que aqui se vê

se formando no instante

do olhar?

São perfis sem fim.

Um choque

de todos os circuitos e nervos

expostos, a olho nu

vindos do rascunho

– do zero ao zênite –

do sonho do desenho

das paisagens do pensamento

que como as pirâmides

não acabam nunca de se

construir.

E trocam de pele, de tema, de

tela.

Elétrica! Sempre ligadas

em sucessivas tomadas

com tudo se fazendo

à vista de todos:

cíclicas bicicletas etcéteras

são as rodas dos olhos que fitam

ou é o sinal do infinito?

 

FREITAS FILHO, Armando. Cuidado! Tinta fresca!. In: GERCHMAN, Rubens. Rubens Gerchman . Rio de Janeiro: Salamandra, 1989.

 

1. Cf. MITCHELL. “Word and image”. In: NELSON, R. S. & Shiff, R. (edits). Critical terms for Art History . Chicago, London: The University Chicago Press, 1996, p. 53.

2. A práxis enunciativa é definida por Greimas como “esse ir-e-vir que, entre o nível discursivo e os demais, permite constituir semioticamente culturas" (GREIMAS e FONTANILLE, 1993, p.80). Pode ser definida também como a “concepção da enunciação que visa articular as formas discursivas, resultantes do ato individual de enunciação, com as organizações culturais, mais ou menos congeladas, da significação”; como aquilo que “configura o uso”; que “contribui para a construção e a transformação dos sistemas semióticos” (SCHULZ, 1995). A práxis enunciativa é, pois, o social da enunciação; são as formações discursivas que se reproduzem, se repetem, se fixam.

3. Este poema, que funciona como um plano descritivo do livro, será constantemente retomado nesta análise.

4. A iconicidade encontra seu equivalente no nome de ilusão referencial. Esta pode ser definida como sendo resultado de um conjunto de procedimentos mobilizados para produzir efeito de sentido “realidade” (cf.. GREIMAS & COURTÉS, s/d). A semiótica considera que, em vez de opor a negatividade do não-figurativo e a positividade do figurativo, é melhor trabalhar com a hipótese de dois modos de figuração. “Do ponto de vista epistemológico, esses dois modos participam de uma correlação que inscreve o figural como constante e o figurativo como variável” (GREIMAS & COURTÉS, 1986).

5. Cf. anexo 1.2.

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