Uma análise semiológica do texto da China na geopolítica do século XXI

a partir dos romances Bombons chineses e O complexo de Di.

Maria Luiza Franco Busse

( doutoranda em Semiologia)

 

A China é um país no qual seus intelectuais têm presente a questão entre tradição e modernidade.Essa problemática é marcante no século XIX, do mesmo modo atravessa o século XX e assim chega aos dias de hoje.

Trato por intelectual todo fazer e pensar crítico conforme a distinção estabelecida por Jean-Paul Sartre ,no livro “ Em defesa dos intelectuais”, entre um cientista e um cientista intelectual.Segundo Sartre, cientista é quem faz a bomba atômica e cientista intelectual é aquele que pergunta para quê?

Bombons chineses e O complexo de Di são romances de dois autores contemporâneos, respectivamente Mian Mian e Dai Sijie, que têm como perspectiva as transformações que vêm ocorrendo na China. Mian Mian tem 35 anos , nasceu e vive em Shangai. Daí Sijie tem 51 anos, nasceu na província de Fujian e vive em Paris desde 1984, quando viajou a essa cidade com uma bolsa-de-estudo de especialização na sua área de graduação, História da Arte.

Seus textos podem ser associados à linhagem que discute as relações entre tradição e modernidade num país que por apenas um breve período de sua história de mais de cinco mil anos, de 1949 a 1979, não sofreu invasões e ficou fechado em si mesmo forjando uma alternativa própria para realizar as mudanças consideradas necessárias. Ambos os romances se inscrevem na linha Literatura e Sociedade na medida em que atam os laços entre a vida e a arte.

Bombons chineses , de Mian Mian, é o romance sobre uma geração de jovens chineses da década de 90 do século XX, lançada em meio às transformações econômicas iniciadas por Deng Xiaoping com o objetivo de promover o salto desenvolvimentista, e exposta às conseqüências advindas do choque provocado entre a modernidade e a tradição.

Em O complexo de Di , de Dai Sijie, a história ambientada na China do ano de 2001 envolve Muo , quarentão chinês que foi estudar psicanálise na França e volta à sua terra para tirar da cadeia seu amor de juventude, Vulcão da Velha Lua, presa por divulgar fotos consideradas politicamente ofensivas ao país. O adversário de Muo na empreitada é o velho e corrupto juiz Di, encarregado do caso, que condiciona a libertação ao pagamento na forma de uma moça donzela , virgem, que, conforme a tradição, é fonte de virilidade e energia para quem se deita com ela.

Sem dúvida, se a China tem questões marcantes, a relação entre tradição e modernidade é uma delas. O que estamos assistindo acontecer hoje no país, nada mais é do que um longo fio da mesma história. No período do século XX que tem início nos anos 20 e vai até o princípio dos 40 , a China vive intensamente o debate entre tradição e modernidade quando então aparece o que se convencionou chamar as escolas jinpai e haipai.

Pequim-Shangai, jinpai-haipai

As concepções literárias do jinpai e do haipai tiveram lugar nos anos 30 em Pequim e Shangai, respectivamente. O jinpai, “ literatura de Pequim” , se caracteriza pela perspectiva universal de integrar o melhor de todas as culturas com os valores tradicionais da China, enquanto que o haipai, “ literatura de Shangai” , se abre sem filtro para toda e qualquer expressão literária ocidental, o que acabou por motivar o aparecimento da questão, amplamente debatida, sobre grande literatura e literatura popular e a presença dos traços elitista e vulgar na poética dos escritores shangaieses .

A querela travada entre esses dois estilos narrativos permite ver como em um determinado período da história chinesa a literatura viveu a questão geopolítica e sua complexidade no encontro entre o Ocidente e a tradição chinesa.Por isso a importância de recuperar essas perspectivas visto que Mian Mian e Daí Sijie escrevem a China “em relação” com o exterior.Esses dois autores, cada um conforme suas origens, fornecem ao leitor atento e paciente, senão a compreensão, pelo menos as pistas para entrar em uma inteligibilidade diversa da do Ocidente e que exige, mais do que sensibilidade, repertório sobre o mundo no qual as histórias estão postas. A China não tem alma, tem eficácia.Portanto, penetrar no universo chinês não é um exercício simples para o Ocidente habituado a deuses e heróis.

“Bombons chineses”, de Mian Mian, se alinha ao haipai shangaiês no sentido que mergulha no processo de modernização que a China de hoje atravessa . Por sua vez “O complexo de Di”, se mostra vinculado ao sentimento do jinpai.Esse livro de Daí Sijie trabalha com estruturas profundas do pensamento chinês e o encontro entre tradição local e experiências culturais do Ocidente, fundadas na sua matriz civilizatória grega, promove situações perturbadoras e hilariantes.

Jinpai e haipai

Pai , no lugar de sufixo das palavras jinpai e haipai, quer dizer escola. Entretanto, para além da gramática, a significação neste caso indica , mais do que um grupo de escritores fechados em torno de um movimento, uma forma de sentir na qual as circunstâncias marcam a criação literária que se forja a partir da singularidade de cada uma das cidades. Na história da China, as capitais do Sul, como Shangai , são sinônimos de felicidade, de bem viver, de refinamento e de urbanidade, enquanto que as do Norte, como Pequim, em contato com as estepes e com os povos bárbaros, têm um “ perfume”rude , de simplicidade.E até hoje é clara a linha simbólica que separa a China do interior da China do litoral.

Pequim e Shangai são as metrópoles símbolo de dois modos antagonistas de vida. Shangai não é só a grande Urbes lançada na aventura moderna da industrialização e da abertura para o mundo. Ela é a “Paris da Ásia”, que na década de 40 servia de modelo para as demais cidades da sua região , como Hong Kong, que teve a honraria de receber a denominação de “Petit Shangai”.Mas só Petit, porque Shangai só havia uma.

Shangai era, e ainda é, o paradigma de cidade face a uma China tradicional , rural, à qual Pequim se mantém ligada. Escritores do haipai , como o shangaiês Xu Xu , descreviam o contraste de atmosfera e de temperamento. Com acuidade e humor , Xu Xu dizia que nas avenidas de Pequim era possível encontrar pessoas que se deslocavam em linha reta como se tivessem uma finalidade precisa. Um outro haipai , Lao Xiang , escreveu também na década de 30 que em Pequim o campo nunca esteve longe.Um simples muro faz a separação entre o novo e o antigo , mas a harmonia se dá naturalmente. Já Shangai é a cidade da ruptura com o ambiente natural, com as relações humanas e com o passado. E a partir dos textos de Mian Mian e Daí Sijie não é arriscado afirmar que o caráter exemplar e irredutível de oposição entre as duas cidades é , ainda hoje, a maneira como cada uma se situa no tempo e faz com que ele corra de modo diferente em ambos os espaços. Pequim é um lugar de estabilidade, de enraizamento, “onde o espaço e o tempo são um só”, como observa Lao Xiang. Shangai, por sua vez, é o lugar do movimento perpétuo , do estirpar , com todas as sacadas de gênio e as tiradas de risco , como a falta de gosto e o brio artificial.

Essas tendências contrárias teriam causas sociológicas diretas. O crescimento exponencial da população shangaiense , de 500 mil habitantes em 1895 para 3 milhões e 300 mil em 1936 , foi constituído essencialmente de 75 por cento de imigrantes de províncias próximas, retirados de suas raízes e lançados em um mundo cosmopolita, cintilando de novidades. O movimento da cidade de Shangai é também o da multidão de trabalhadores que aos sábados à noite deixam os bairros de negócios para buscar os lugares de diversão.Um outro haipai, Mu Shiying dava conta de que entre as cinco e seis horas da tarde milhares de carros deslocavam-se freneticamente de leste para oeste, e quando as portas giratórias dos escritórios tomavam o ritmo dos moinhos de ventos, as dos restaurantes se transformavam em colunas de cristal.

Em Pequim, ao contrário, as marcas do tempo estão não somente nas fachadas dos monumentos como na perenidade do estilo de vida de seus habitantes e no velho atavismo pequinês.Corre na capital a máxima de que “no momento do Novo na China é comum veneráveis conservadores pequineses irem ao encontro de sua visita trajando antigas vestimentas”.Essa consideração é reveladora do quanto o espaço pequinês se abre pouco aos deslocamentos horizontais , ao contrário de Shangai onde a falta de memória se conjuga com o frenesi do movimento.

É no final da dinastia Qing ,a do último imperador no século XX, que se acirra a contradição entre o sentido pequinês e a perspectiva shangaiesa , noções antagonistas das quais Mian Mian e Daí Sijie são representantes contemporâneos dessas diferentes sensibilidades coletivas processadas a partir da simbiose com seu meio natural e humano.

No tempo dos imperadores Mandchous, a ópera haipai de Shangai, por exemplo, começa se distinguir do estilo da corte por seu gosto pela novidade, pela surpresa, pelo espetacular, pelo jogo de luzes e efeitos visuais, que transformam a ópera em uma arte mais para os olhos do que para os ouvidos.Esse gênio inventivo não teria espaço sem um público pronto a se deixar surpreender, seduzir e fascinar , o mesmo que permitiu a aparição das primeiras companhias de atores em Shangai , inclusive com a presença de mulheres, dado que até 1875 os papéis só eram desempenhados por homens.Entretanto, essa estreita relação da arte com seu público urbano mostrou-se, também, um fator de risco: dependendo financeiramente dos ricos comerciantes que dirigiam as salas de espetáculo, os artistas se viam acusados de defender uma cultura oportunista, bastarda , e portanto muito preocupada em brilhar para poder se garantir no gosto popular.Uma cultura neo-sensacionalista ou mercantilizada , como denunciavam os seguidores do jinpai. É interessante assinalar que o primeiro cinema de Shangai ,Grande Teatro de Hongkou, foi construído em 1908 por um comerciante espanhol, e até 1925 , ano em que a British American Tobacco Company passou a ter o controle do mercado cinematográfico na China, a maioria das salas de projeção estava em mãos de estrangeiros e só passavam filmes estrangeiros.Hollywood monopolizava as telas e povoava o imaginário shangaiês de sexo, ideal de beleza física, amor, sedução e riqueza.A narrativa visual de Mian Mian, carregada de todos esses ingredientes, não deixa esquecer , como se não bastasse ela reafirma todo o tempo, que se trata de um romance escrito por uma moça de Shangai.

Os escritores do haipai eram tratados como plagiadores de autores estrangeiros e tidos como mercenários por transformar em um negócio menor o trabalho do letrado, entendido como um ofício investido de forte responsabilidade social .O jinpai denunciava a associação do talento boêmio com o espírito vadio e o conluio efetivo entre escrita e dinheiro. O espírito aristocrático do jinpai, desprezando tudo o que vinha de Shangai, reproduzia julgamento de valores muito antigos que relegavam a classe dos comerciantes ao último nível da sociedade. A palavra jinpai deriva da historia do velho Jin. Em 1933, Shen Congwen publica o artigo A atitude dos homens de letras , consagrado ao que considera uma literatura séria.O prólogo é consagrado ao elogio a um cozinheiro, o velho Jin, que embora mestre em sua profissão não busca cumprimentos e não se orgulha de outra coisa que da satisfação de exercer convenientemente seu ofício.Shen Congwen publicou no suplemento literário Artes e Letras do jornal Dagongbao. A resposta veio na revista Xiandai dos modernistas shangaieses , o que deslancha a polêmica.

A controvérsia entre o jinpai e o haipai não foi, efetivamente, uma querela superficial entre escritores e muito menos um combate entre letrados dividido entre uma narrativa a favor do tradicionalismo e outra em defesa modernidade . Sua confrontação foi muito além dos seus escritos tratarem-se exclusivamente de uma grande peça literária.Ela estava ancorada no terreno da política sob a forma de literatura engajada e literatura de “literatos bem pensantes”. Nessa esteira, entretanto, não há diferença entre Mian Mian e Daí Sijie: ambos pensam bem e são engajados.Daí Sijie, com muita discrição e humor, bem a um estilo jinpai, e Mian Mian ,desabrida e com sutileza arrebatada, no sabor da performance haipai.

No caso do jinpai houve um racha interno provocado pela radicalização política que se acentua a partir de 1927, quando o centro de gravitação da China se desloca para Nanquim, que passa a ser capital . Shangai se torna a referência da produção literatura de esquerda e Pequim é identificada como um feudo de idéias retrógradas. Por idéias retrógradas entendia-se uma literatura que se pensava não estar a serviço de coisa nenhuma , que fechava os olhos para a realidade e não falava sobre ela. A provocação japonesa que desembocou na invasão de 1937, colocou em cheque a literatura “ homens de letra-pássaros” produzida por um grupo do jinpai e trouxe um sopro de renovação sensível aos problemas do tempo, aberto a novos autores e um tanto identificado com um sentido de justiça social.

Mas jinpai /haipai não precisam significar necessariamente antítese.Muitos escritores já se reconheciam um “jinpai entre escritores haipai” e vice-versa , e isso pode ser verificado na narrativa tanto de Mian Mian quanto de Daí Sijie. Ambas as escrituras misturam conteúdos temáticos que atravessam o interesse jinpai assim como o haipai o que, por sua vez, confirma a existência de uma polaridade entre a estética shangaiesa e a estética pequinês.

A noção jinpai/haipai dos anos 30 continua atual na China. Haipai, inclusive, é usado para designar o brio enganador de certos intelectuais. Mas a diferença, se pode-se dizer assim , é que não são mais literaturas vinculadas a cidades especificas como Shangai e Pequim mas, sim, à atmosfera de agitação, no que diz respeito à primeira , e a uma estética de quietude e desprendimento, visto que Pequim está perdendo seus traços de “ cidade rural ampliada”.O jinpai vive como filosofia e moral da criação universal para influenciar autores de outras gerações.

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