O DELINQÜIR DO DELÍRIO: (Manoel de Barros e a poesia)

José Carlos Pinheiro Prioste

 

Poesia é a loucura das palavras (CUP).

Loucura não como alienação, seja enquanto transferência de um bem ou direito a outrem ou o processo em que a consciência se torna estranha a si mesma , mas como delírio. Este se de/fine como uma convicção sustentável apenas por uma pessoa adversa ao pensar prevalecente, que sustém ilações que não são intrínsecas ao que se conhece como realidade e que certifica seu asseverar somente em crenças ínsitas. A distinção do delírio em relação ao alucinar se estabelece por não depender das impressões sensoriais e por se apoiar em concepções que se sustentam mais em um crer, pessoal e contrário ao consenso coletivo, que no com/provar. Delirar tem por etimologia o apartar-se do sulco da charrua, veículo de tração animal para o transporte de pessoas socialmente importantes e que na Gália medieval passou a ter a função de rasgar o solo com o fim de revolver e afofar a leiva, a elevação de terra entre sulcos. Daí o sentido de sair da linha, da ranhura humana, que posteriormente passa a significar a eversão da razão.

A poesia, ao menos a que se denomina como moderna , não se conforma ao senso usual ao qual subsume a definição convencionada de delírio, pois não somente recusa uma autonomia em relação ao sensorial, que seria o traço diferencial entre o delirante e o alucinatório, assim como parece congraçar com o alienamento, enquanto um sentir/pensar, no qual a consciência se torna estranha a si mesma. Se estranho significa o que é de fora , portanto, o que não pertence ao que se situa dentro de um interior encerrado em seus limites, tal acepção confere atributos que separam diferencialmente o outro situado fora do círculo como o alheio, o insólito, o inusitado, o que seja passível de suspicácia. Esse excluir, não deixar entrar, remete à centralidade do identitário como fundação, pela exclusão, do que seja separado como excêntrico, ou seja, o que se situa fora do centro, quando não coincidem os centros de dois círculos.

A poiesis enquanto fazer não se estreita ao domínio do produzir, executar, realizar. Estes, por sua vez, diferenciam-se do fazer poético quanto à concepção dominante que prega o realizar atinente à concretização efetiva no existir, o produzir, não como um conduzir para diante, mas um executar utilitário como um efetuar, levar a efeito, produzido por uma causa. Este divergir da poiesis , o não se vergar ao jugo do que é vantajoso pois que infrutuoso e fantasioso, o restringe à margem do decisivo, do imperativo e do injuntivo que dirige o existente sob um dominioso perfazer enquanto conclusiva execução de um produzir proveitoso e lucrativo. Existir, no entanto, é elevar-se acima de, aparecer, deixar-se ver, mostrar-se; sair de, provir de, nascer de; apresentar-se, manifestar-se; ser; consistir, resultar. O elevamento acima do ordenamento objetivo, ação de colocar adiante, que rege o mundo funda o deixar-se ver da poiesis como um a/presentar-se, um resultar não como efeito resultativo ou conclusão lógica, mas um saltar para trás que é um não concordar com, não caber em, não se ajustar com; resistir e opor-se. Daí o estranhar-se a si mesmo que constitui o modo alienante do poético enquanto delirante consistir sob a ótica dominante. A poiesis nesse resistir à mundanidade do que é imperioso responde em seu mostrar-se como uma delusão. Se esta é uma ilusão afetiva, sensitiva ou intelectual, uma perturbação, uma alucinação, um engano, um logro, um delírio avesso à razão, o i/ludir não se subjuga somente ao que causa ilusão como um enganar-se, mas o jogar com, o divertir-se, o recrear. Portanto , o imaginar. O poeta é um fingidor e como tal joga com o imaginante por não se ajustar à regência do real enquanto administração (não a ação de prestação de ajuda) e gerenciamento do produtível, do haurível e do exeqüível. Gerir, entretanto, é andar com, ter consigo, produzir, criar, fazer. Tal recolha acolhe um outro viger que se junta à poiesis pelo viés do imaginal. E não do agir como um operar produtivo. Assim tanto o desvio do linear traçado do sulco no lavrar como o alienar (afastar) da ratio seja enquanto cálculo, conta e registro ou um metódico e seqüencial cogitar definem-se como delírio . O deliramento do devaneante é um divagar e neste vagar (concorde com a etimologia...) voga um estar vazio de quem não possui ocupação e é um ser livre. A vaziez do ser vagante não concerne (mistura-se) ao lineamento de um saber que abjura o sabor (o senso, o sentido...) em proveito de um télos cuja linha somente aponta para um único direcionar: a seguridade dos conceitos. Estes significam tanto a ação de conter como o ato de receber, a germinação, o fruto, o feto, o pensamento.

Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina. No osso da fala dos loucos há lírios (GA).

A contenção do conceitual pode ser entendida como contenda ou o encerrar. O conceituado cerra a passagem de qualquer diversidade de sentido que se diferencie do centro de concepção da ação de conter. Então a recepção, como fundamento para que frutifique o motivo do pensar, se estabelece por um contender contra o que contém aquilo que não consolide o saber como um conhecer seguro, sólido e sóbrio. A cautela e precaução do conceituar, entretanto, terminam por transformar o pensamento em um acervo de certezas.

O jurisdicionar do dicionário se atém ao contido, retido e conservado no conceitual. O poeta, no avesso desse saber, prova não para aprovar e comprovar a propriedade sapiencial, mas experienciar a sensação como o fato de compreender e não do prender a que se atém o conter. Assim passa a língua em seu sorver na voracidade de quem sente através de um perceber e observar não servil à continuação contida na impressão do conceituar, a impresciência do impressentido de um outro pensar. Por não com/participar da celebração que con/corre no en/cerrar do conceitear o poeta alucina.

Alucin(o)- é um elemento de composição derivante do grego alúo , estar fora de si, perplexo, vaguear. O estar fora de si é similar à consciência que se torna estranha a si mesma tanto no ato de se conhecer assim como o ser que não se reconhece mais na identidade fixa do identificado na conceitualidade do identitário. Perplexa é a atitude do poeta diante de tudo, daí o espanto como um pasmo (a ação de puxar a espada) diante do irresoluto, não como o que não se resolveu, mas como o indissolúvel que não se pode desunir. O sinuoso da poiesis é um hesitar confuso, que con/ funde , por não se deter diante do lucidar enquanto um esclarecer que não vela o re/velar como um complexo (que cerca e abarca) intercalar com a ocultação que se dissimula, que se finge em seu dizer. Daí o indeciso entre o ser e o não ser do vaguear, do estar vazio.

Em poesia que é voz de poeta, que é voz de fazer nascimentos – O verbo tem que pegar delírio (LI).

Poesia no dizer barrosiano é voz. Se esta é no designar do dicionário o som em vibrações, e estas são a ação de brandir, que por sua vez significa mostrar uma arma de modo ameaçador e que se origina do radical germânico brand , tição e por extensão lâmina da espada, no entanto a vocação poética é um convite não ao bradar do tagarelar ou à intimação ao digladiar, mas ao vocativo, o dirigir a palavra a alguém. Vibrar, então, não se circunscreve ao lançar do dardejamento e sim o agitar rapidamente, sacudir, tremer, luzir, cintilar. Ao luzido de centelhas de sons resplandece o ser humano. A phoné que se irradia, que toca com os raios dos fonemas o cerne de outro ser, repercute como símbolo: sinal de reconhecimento entre as personas que acende no ato de cada elocução o ascender de fagulhas do iluminativo que se manifesta no palavrear como um re/velar, um des/vendar. Sílaba tanto é a ação de conceber como uma combinação. Se concepção é a ação de conter, então o encerrar sentidos em um feixe de sons que se com/binam caracteriza-se como uma marcação de sinais em uma união. Se o silabário ressoa como simbólico que ecoa o unívoco, no entanto, somente quando se separa do acordar sancionado possibilita-se ecoar o multívoco. Este é o fazer do poetar: semear, produzir acordes que destituam o inequívoco para que no comparecente da aparição do símbolo dissemine-se não a segurança mas a inquietação, o desassossego e a agitação a soar.

Assim como no revelar vige o velar, no desvendar o vendar, o iluminamento pela poiesis se dá não pela via da lógica excludente, mas converge o divergente em um complemento indissolúvel de seu próprio oponente. O fazer poético constitui-se como nascente de sentidos não apreensíveis pela cognição que se guia pelo conduzir retilíneo cujo télos seja somente a dilucidação enquanto um desenrolar, desenredar, desembaraçar, um concluir. Os atributos definitórios e classificatórios que conformam os ditames e determinações de um saber alicerçado no cercear da imaginação, cuja tenção seja a destituição de qualquer sabor, não se constituem como propriedades intrínsecas ao dizer poético. Este se qualifica pela in/exatidão em que há de se con/vir um con/viver em que o conjugante seja: a tensão, o ambíguo, o dúbio, o dubitativo, o flutuante, o hesitante, o incerto, o indeciso, o indefinido, o indeterminado, o nutante, o oscilante, o titubeante, o vacilante, o vago e o vário. Neste multifário condizer aniquila-se qualquer motivação que impeça o dizer poético de se conter no recôndito, não como recolha, mas enquanto encerrado em um ponto concludente. Deste modo o verbo há que delirar... Não ser ancilar da razão que rege rigidamente o ocidente a conduzir nosso agir torna-se então promissão propulsiva de um incessante pulsar mais que o que se conhece como pensar . Deixar este de ser um pesar para ser um contro/verso pensar ainda assim torna-se instância apensa da ratio . O poetar, enquanto um pro/duzir diverso do utilitário de acordo com a concepção platônica diverge do modus operandi para restituir aquilo que é próprio não apenas ao poeta, mas pertencente à imanência do ser: a linguagem em sua origem.

Se poesia é voz de fazer nascimentos, de aparecimento do que vem ao mundo, do acontecer, a concepção disso se gera em um despontar que ultrapassa o inventável. O possível de ser inventado é causação do realizável que se envencilha ao factível. A poiesis excede a vigilância que a intelecção exerce sobre o imaginar e engendra no próprio ventre do inventariável o divagar do devaneante. A vagueação não esma nem estima um concluimento epilogal, mas se consubstancia em um eterno retornar a um começo que persevera na permanência do inaugural. Desalinha-se assim do sulcar lineal obedecente à razão aprisionada ao siso, ao bom senso, ao juízo e convizinha-se em conluio com o designado delirioso. O delíquio da razão é tido, então, como um delinqüir por não excluir o paradoxal e nem ser advocatício do que adere em inconsciente obediência à coerência. A conexão do que é coesivo há que congeminar o que é díspar, desigual e diferente. Só assim há de ser humano o ser não mais sujeito.

Poema é o lugar onde a gente pode afirmar que o delírio é uma sensatez (RAQC).

 

 

Livros de Manoel de Barros citados nos texto:

CUP – Compêndio para uso dos pássaros

GA – O guardador de águas

LI – O livro das ignorãças

RAQC – Retrato do artista quando coisa

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