REFLEXÃO SOBRE O ESPAÇO DECADENTISTA: ENSAIO SOBRE O LUDISMO E A LOUCURA NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO FICCIONAL DECADENTISTA

 

 

 

 

Por Ítalo Meneghetti Filho [1]

 

 

 

 

PREFÁCIO A BRINCANDO COM A LOUCURA DO ESPAÇO: ENSAIO SOBRE O LUDISMO COM A LOUCURA DO ESPAÇO DECADENTISTA

 

R etomar um caminho na vida é sempre um desafio e uma reconstrução. É uma ousadia. E a pesquisa não é diferente, pois é feita de avanços, dúvidas, receios, recuos, coragem e retomadas. O percurso da busca do conhecimento exige dos seus peregrinos uma espécie de fé científica, a priori , para seguir intuitivamente, porém equipados com as ferramentas da razão, um rumo ainda não experimentado; inusitado. Contudo, a posteriori , perseverar a partir dos primeiros resultados é primordial na construção do conhecimento, seja este de que natureza for; quer do campo das ciências exatas e naturais, quer das ciências humanas e literárias, e até mesmo da filosofia. Debruçar-se sobre o que se produziu, maturar sem pressa o texto até que a carne da palavra revele a lume todo o mistério da alma... Eis o conhecimento rasgado às entranhas do próprio corpo numa epistemologia que necessita saber de si, sem pretensão alguma que, barthesianamente, apenas procura dizer alguma coisa sobre algo, sem pontificar a verdade como encerramento do discurso, mas, ao contrário, fazer da pretensa e suposta verdade uma das possibilidades do discurso em seu deslocamento entre sujeito e objeto e até mesmo entre sujeitos, dialogando por força da sedução do objeto.

E se nesse mover acontecer do sujeito se perder na persuasão do objeto, mesmo assim ainda há possibilidade de conhecimento, pois a paixão é um modo de conhecer, apenas com a diferença de ter o seu processo epistêmico desdobrado a partir do centro e de dentro do objeto, numa sucessiva aproximação entre sujeito e objeto, localizada na quase fusão entre esses dois. Ainda assim, o conhecimento é possível, nesse arroubo e entrega, feito também de e ... e não apenas de é , como tanto se postulou (e ainda postula) desde os primórdios racionalistas e iluministas aristotélicos-agostinianos-comtinianos-cartesianos-kantianos-hegelianos. E ... como costuma citar Edmundo Bouças em suas aulas é sempre a interminável possibilidade que se alonga para além e ecoa como um apelo de passagem por onde o conhecimento escoa na linguagem do discurso epistêmico, apontando para o possível na dimensão do saber aonde não mais predomine no banquete o primado da razão, mas os outros convivas da percepção intuitiva, emotiva e sensível, num imaginoso diálogo polifônico de vozes subjetivas e objetivas emanadas em pé de igualdade, seja do objeto, seja do subjeto.

Assim, retomar o caminho de volta, já percorrido antes, na busca da inserção do lúdico e do louco na produção do espaço é dar vazão ao eco desse e ... edmundiano que encontra intensas ressonâncias em nós, nessa interface do anel (epistêmico) entre a voz e o eco, que segue... prossegue; pressegue.

Quando o que se procura é o entendimento da espacialidade na tendência decadentista do texto literário, não é somente do texto, mas sobretudo da pose; da representação do corpo no espaço, usado como linguagem corpórea no texto das ruas da flânerie ; da vadiação pelos ócios dos espaços públicos aonde a corporeidade do dândi em seu gestual de contraponto com a estética vigente redescobre na ociosidade criativa o sentido afetivo para outras possibilidades espaciais. Não é à toa que Paulo Barreto sob a pele de João do Rio vagueia na cidade do Rio de Janeiro, por entre os seus bulevares, sentindo no bulevardismo a alma encantadora das ruas , plenas dessa matéria plasmadora de novos espaços urbanos: a ociosa afetividade do olhar passeante. A mesma ociosidade afetiva que anos antes moveram o olhar de Baudelaire pelas ruas de Paris, numa luminosidade compartilhada, tempos depois com Valéry, Mallarmé, Verlaine, Wilde, Huysmans etc.

O dandismo pela pose, bem como a vadiação afetiva pelas ruas, inscrevem na geografia literária do texto urbano, novas estéticas capazes de inaugurar outras viabilidades espaciais para o imaginário do leitor. Este, pode então investir num percurso lúdico, construído pelo olhar do esteta e se permitir considerar a possibilidade da loucura como experimentação simbólica da realidade em seu caráter de permanente dúvida e questionamento. Guiado pela sensível mirada do esteta, o leitor ganha o acesso à dimensão palimpsesta da cidade, feita de rasuras empreendidas pelo decurso histórico do seu traçado, aliado a toda poética que esse espaço encerra. Assim, uma emergente geografia do afeto se delineia, capaz de lidar metodologicamente com as sutilezas emotivas geradoras da noção espacial decadentista.

A espacialidade construída pelo texto decadentista é aqui retomada, no âmbito teórico da experimentação epistemológica, tendo por ferramenta a linguagem como meio capaz de investigar e trabalhar não somente os aspectos objetivos, mas subjetivos da sua narrativa ficcional.

 

PRÓLOGO AO LUDISMO, À LOUCURA E AO ESPAÇO

 

E is que em meio à proposta nada, nada severa, porém séria, sim, do curso, surge um questionamento e reflexão em pleno seminário da colega Mônica Amim: (...) brincar com a loucura (...) ! Tal citação extraída de obra de Gustav Hocke, [2] teve um efeito marcante sobre o nosso pensamento, deslocando o interesse através da questão do espaço no recorte decadentista. Assim, o que seria um trabalho monográfico severo e sério, para contemplar o encerramento formal da disciplina cursada, transformou-se num esforço ensaístico, ainda sério, mas nada severo. Aceitamos também brincar com a loucura , mas dessa vez, aqui, vamos ousar brincar com a loucura do espaço ! E para isso, a nossa hipótese de partida é a sustentação de que: o espaço decadentista é aquele capaz de brincar com a loucura.

Inicialmente a nossa preocupação era fazer um estudo de interface entre literatura e geografia, trazendo para dentro dos questionamentos teóricos da ciência literária as preocupações e o tratamento da ciência geográfica com a dimensão do espaço e as suas espacialidades. Evidente que tal aproximação pode representar níveis de dificuldades acentuados, frente a nossa pouca experiência com a teoria literária e o seu corpus . E aqui reside a nossa brincadeira com a loucura, mas com certeza uma lúcida loucura que em seus devaneios à procura por saber, se realiza pela busca metodológica, ainda que em arabescos [3], mas sem perder de vista o caminho para se atingir alguma meta; método.

Por que o ludismo? A qualidade de lúdico assegura a soltura essencial ao devaneio e este, a precisão vital ao ato de flanar ( flâner ). Assim, o flâneur é o passeante ocioso a brincar com o tempo nas rugosidades, [4] fraturas, frestas e fissuras do espaço. Oscar Wilde a caminhar pelas ruas de Londres e Paulo Barreto a vagar pelos logradouros mestiços e marginais do Rio, assumindo poses de uma modernidade perversa, com intenso teor de transformação; singular e quase criança em seu apelo por atenção do olhar. A caminhada lúdica do flâneur aponta para um deslocar-se sem a obrigação de nada! O mesmo deslocar-se vadio dos folguedos de infância, onde ninguém se pretende a lugar e tempo alguns, senão deixar-se largar ao sabor do brincar. Eis o ludismo.

E como distinguir a fronteira entre ludismo e loucura? Fronteira tão movediça e plena dos mimetismos do inconsciente humano, sempre pronto ao brincar e perder-se no descompromisso de ser racional e lógico. A passagem do ludismo à loucura ou, da loucura ao ludismo, permite ao olhar sensível e atento, vislumbrar e contemplar aspectos inauditos

da manifestação humana em sua travessia no mundo. Representa a dimensão híbrida onde vigora o desconexo e o desprovido de sentido para uma ordem que se pretende vigente, diretiva e única possível da expressão do indivíduo em seu meio. Como então distinguir tal possibilidade mestiça para o que é humano, senão pelo reconhecimento do que é lúdico e louco em nós! É a janela por onde olhou e ousou apontar a Dra. Nise da Silveira [5] mostrando que é possível brincarmos com a loucura, transmutando todo o risco em ímpeto e dessa impetuosidade emergente, recolhermos o aprendizado do mistério de saber retirar água da pedra... somente para regar o jardim da improvável flor! Ludismo e loucura se confundem em nossa demência sã... ou será mesmo insano o que é demencial em nós? Quem saberá, senão aceitando o jogo e o risco, fazendo da ousadia o cotidiano e deste uma aventura permanente e instigante, sem garantia de retorno ou regresso algum ao antes. A loucura é desabitar-se. O lúdico é aceitar brincar nessa desabitação de si... ou será o contrário?

Quando o lúdico e o louco transitam, dilata-se o espaço pelo inchaço do novo que migra da imaginação para o real, [6] renovando a parte mais densa do Ser [7]; aquela que, aparente, revela a infinitude possível do que não se pode ver. Nesse intangível, tornado possível pelo tangível, acreditamos, reside o cerne da passagem e espacialização entre ludismo e loucura para o nosso estudo e reflexão. Surge aqui a questão do espaço em sua relação – para nós – com o ludismo e a loucura. Investigar a natureza e as representações desse espaço na realidade das realidades decadentistas é o nosso intento. Não, o espaço, marcadamente geográfico, que por si só é complexo, mas um espaço cuja complexidade maior se dá na imbricação entre o geográfico e o poético. Nesse enclave acontece o que entendemos por espaço decadentista e que foi objeto de nosso seminário, à ocasião, tratado apenas como tentativa por explicitá-lo e agora, aqui, além de buscarmos as suas conceituações, o fazemos no esforço de entendê-lo em suas relações com o ludismo e a loucura. Assim, brincando com a loucura do espaço , bem mais que um título chamativo, de efeito e apelo ao leitor, é o primeiro resultado das nossas inquietações, provocadas pelo curso Dandismo tropical e poses da modernização , sob a batuta do nosso maestro Edmundo Bouças.

O que vem a ser então esse espaço, misto de geografia e poesia, onde o lúdico e a loucura insinuam-se como dinamizadores e modeladores? Que espaço é esse, o decadentista ? Qual o significado de brincar com a loucura do espaço ? Será tudo isso, apenas, mais uma pose da modernização ? Ou será o desafio pela pose ?

Da memória, ganha corpo à lembrança nosso mestre Milton Santos, numa tarde de setembro de 1989, em seu gabinete na Universidade de São Paulo, explicando-nos, em seu peculiar modo acridoce, acerca da natureza do espaço geográfico. Era nítida em sua fala, a preocupação com a caracterização de um espaço capaz de traduzir não somente a razão e a técnica, mas, sobretudo a emoção e o tempo. Ensaiava, ele, ali, diante da nossa presença, as primeiras palavras para o que, anos depois, em 1996, veio a ser um vigoroso texto de filosofia geográfica, bem mais do que um consagrado livro de geografia e do qual lançamos mãos para o nosso pequeno e despretensioso ensaio, por necessidade absoluta e, grata e saudosa homenagem.

Se há uma característica que logo se insinua ao nosso olhar na procura por um espaço decadentista, esta é a de que se existe espaço decadentista, este o é na plenitude da emoção e do tempo. Emoção, decorrente da espacialidade construída pelo sentimento capaz de plasmar ruas, casas, cafés e outros lugares afetivos, com a matéria emotiva e sutil da paixão que escorre fluida, do imaginário do flâneur, em seus devaneios por espaços íntimos ao seu corpo e ao Ser [8]. É quando o espaço é bem além do que se vê, e sim o que é sentido afetivamente pelo lugar. É o espaço motivado a existir por força do afeto e seus fortes e intensos laços de amizade e amor. É o momento em que aflora da paisagem urbana em decadência a weltschmerz [9] para Charles Baudelaire, J.K. Huysmans, Stéphane Mallarmé, Arthur Rimbaud, Paul Verlaine, Oscar Wilde, D'Amnunzio, Fogazzaro, Pascoli, Gauguin [10], Paulo Barreto (João do Rio), dentre outros. Na realidade de outras percepções de realidades, o flâneur é alguém capaz de ver e sentir emotivamente o espaço, estabelecendo modos incomuns de relações com este, que não somente as de economia, habitação, trabalho etc. A relação entre o flâneur e o espaço passa necessariamente pelo que é lúdico e louco em nós. A flânerie é portanto bem mais do que a simples e despretensiosa vadiação para matar o tempo. É mais! A flânerie é um período de comunhão e êxtase entre o flâneur e o percurso, num afrouxamento da tensão entre o que é físico e humano no homem com o que é sutil e elemental nos lugares; é a distensão da razão diante do que não vale tanto racionalizar, senão simplesmente contemplar; é quando as idéias se desespacializam do senso comum, numa lúdica adjacência com a loucura, para se espacializarem no singular e incomum de um lugar. A relação entre homem e espaço, alcançada pela flânerie , transcende o impositivo do relacionamento árduo e de sobrevivência motivados pelo senso comum da sociedade e seus indivíduos, apontando para outras vinculações possíveis de esteticismo e prazer com os lugares e as suas espacialidades.

Portanto, o nosso breve ensaio se pretende a uma flânerie sobre o assunto, numa tentativa de relaxamento da tensão acadêmica e do senso comum do cânone, por nossas andanças pelos logradouros decadentistas das cidades do mundo, em passos lúdicos, dobrando e desaparecendo nas esquinas da loucura e conseqüente desespacialização e vazies das idéias.

É possível haver espaço decadentista? Vamos caminhar para ver? Vamos flanar por entre as palavras e os seus lugares, na esperança por encontrar algum espaço... ou simplesmente sentir o prazer de estar perdido e apenas vagar.

 

O ESPAÇO DECADENTISTA

 

É possível desenvolvermos, aqui, um satisfatório conceito de espaço para o decadentismo, capaz de atender a nossa necessidade de compreender em que dimensão geográfica ocorreu e quais os caracteres que permitem identificá-lo num estudo teórico ou de caso? Com tal questionamento, iniciamos o capítulo. E antes de nos lançarmos a flanar por entre os logradouros labirínticos do espaço, será preciso primeiro adentrar nas vicinais do tempo, pois todo espaço se transforma a partir de um dado tempo em convulsão [11], e como não poderia deixar de ser, quando principia o decadentismo como manifestação de alguns espíritos singulares e irrequietos nas capitais da Europa do século XIX, o mundo experimentava o pleno fragor das pesadas e barulhentas máquinas a vapor, capazes de arrancar as pessoas dos milenares estados de lentidões para uma pressa súbita onde a correria e a necessidade por mais e mais lugares por unidade de tempo, passava a ser a tônica desse novo homem que surgia: o homem moderno movido à máquina.

Quando num estudo como este fazemos menção ao conceito de tempo, não podemos perder de vista que estamos tratando das relações entre ludismo, loucura e espaço. Portanto a nossa referência para tempo é, aqui, o espaço em sua plena conceituação geográfica. Trata-se de um tempo espacial [12] que reflete as transformações do ambiente e seus espaços no decorrer da idade do lugar, sobretudo quando o lugar é a cidade moderna; industrial, a metrópole, onde “os respectivos ‘tempos' das técnicas ‘industriais' e sociais presentes se cruzam, se intrometem e acomodam”. [13] Portanto, esse tempo espacial se reporta ao lugar num dado momento, em suas idades cumulativas na subjacência dos espaços das suas outras idades anteriores. Trata-se de um conceito de tempo marcadamente referenciado a vetores objetivos. Mas existem outros tempos onde tais vetores não norteiam a conceituação. Carreados por vetores subjetivos, caóticos, como o sonho, devaneio, ócio, contemplação, prazer, orgasmo e êxtase, esses tempos escapam à ordem e ao empirismo [14], vagueiam na percepção como as brumas em plena fluidez tão essenciais para flaner. [15]São os tempos relaxados de apressamento; tempos desnorteados; tempos atemporais: o do ludismo e da loucura . Diferem do geográfico tempo espacial , de natureza empírica, pois acontecem por movimentos descontínuos da percepção do indivíduo ou de uma coletividade, facultando uma outra natureza de trânsito nos espaços de um lugar. São tempos desprovidos de empirismo. Acreditamos, sejam estes os tempos das temporalidades do flâneur em sua despreocupada e descontínua flânerie nas ruas da cidade. O decadentismo expressa fortemente essas duas naturezas de tempo: o atemporal do ludismo e da loucura do indivíduo ou coletividade e, o espacial da geografia da cidade. E é sob a forte ação dessas duas naturezas de tempo que o decadentismo ensaia os seus primeiros contornos na Paris de Baudelaire, onde este “detrás de seus trejeitos dirige lentamente seu olhar até nós como a luz das estrelas”. [16]

Charles Baudelaire não se deixa ressecar na desertificação da metrópole, onde o homem experimenta a decadência. Ao contrário, Baudelaire pressente uma misteriosa beleza, ainda não descoberta. Uma beleza germinada no lodo civilizatório, capaz de transmutar o que é lama e podridão em sublimidade estética e refinada sensibilidade humana. Não é à toa que escreve Les Fleurs du Mal [17], fazendo pleno uso do oximoro [18], procurando refletir em sua percepção e obra poética esse jogo de contrários, fruto das contradições cortantes das metrópoles, capazes de significar esteticamente ao olhar sensível o sentido mais sublime da weltschmerz . Para nós, Les Fleurs du Mal ganham o significado místico da flor-de-lótus: aquela que se nutre do lodo e da podridão do lago, para gerar pétalas macias, alvas e belas. Serão as flores do mal, flores-de-lótus? E o espaço, onde fica nisso?

Ao vislumbrar possibilidade de beleza na decadência, Baudelaire inaugura não somente uma nova poética, mas também aponta para uma existência possível de outra natureza de espaço, subjacente ao espaço da cidade industrial. Se “o problema específico de Baudelaire [é] a possibilidade da poesia na civilização comercializada e dominada pela técnica” [19], inaugurando não somente “o início da poesia moderna e de sua substância tão corrosiva quanto mágica” [20], para a geografia fronteiriça da literatura, filosofia, antropologia, sociologia e arquitetura / urbanismo, Baudelaire mostra os fundamentos para uma conceituação de espaço no decadentismo. Começa então a ser viável o nosso conceito de espaço decadentista , que numa primeira elucidação, tende a ser traduzido por espaço de contradições cortantes e elementos híbridos, engendrados pela construção desconstruída . [21]

Ora, exatamente à época de Baudelaire, a cidade de Paris e as outras grandes cidades daquele tempo, guardavam ainda as características marcantes de produto cultural [22], fruto do acúmulo de séculos de atividades artesanais, mas ao mesmo instante acontecia uma verdadeira revolução na geografia das cidades, desencadeada pela revolução industrial que rapidamente tomava o rumo de produto técnico [23] , tornando o lugar urbano um ambiente permanentemente em transformação entre o antigo e o recente; um ambiente mestiço [24], resultado do hibridismo do lugar, a originar espaços também mestiços.

Assim, a metrópole baudelairiana [25] é o cenário, por excelência, onde a weltschmerz fala intensa e poeticamente ao olhar, retirando dos escombros; lugares e pessoas em destruição e exclusão, um lirismo poético capaz de significar o belo para além da simples e mutável forma e, da moral vigente; de encontrá-lo na possibilidade da beleza que emana por força da poesia irradiada por um sol crepuscular, somente visto e contemplado por almas sensíveis imbuídas do espírito da poesia. Em Baudelaire, a cidade em seu fragor decadente é matéria de beleza, onde para tantos é unicamente símbolo de tormentos e opressões. A lírica baudelairiana vê na passagem do crepúsculo da cidade medieval para o alvorecer da cidade moderna, a plena possibilidade estética capaz até mesmo de deslocar a ética para outros modos e possibilidades de relacionamentos interpessoais e das pessoas com os lugares. A mesma lírica, que ao contrário do pretendido pelos românticos, não privilegia a unidade entre poesia e pessoa empírica, dando início à despersonalização da lírica moderna, naquilo que Edgar Alan Poe, melhor empreendeu, fora da França, distinguindo lírica e coração, desejando “como sujeito da lírica uma excitação entusiástica, mas que nada tivesse a ver com a paixão pessoal nem com the intoxication of the heart (a embriaguez do coração).” [26]

A partir de Baudelaire o conceito de modernidade ganha os seus contornos mais nítidos e fundamentados no que nós chamaremos aqui de lírica do espaço da metrópole ou lírica do espaço da cidade moderna . A lírica baudelairiana acontece através do espaço moderno da cidade; inquietante, permanentemente móvel, apressado, mutante, híbrido, desestabilizador, obsolescente, árido, opressor e ameaçador. O lirismo baudelairiano, vale dizer; supra-romântico [27] e moderno, consegue perceber e extrair o poético desse decaimento e transmutá-lo, pela poesia, em matéria de fascinação, encantamento e beleza. Nada melhor do que as palavras de Hugo Friedrich para expressar a dimensão do conceito de modernidade em Baudelaire e que tem sido o ponto de partida das nossas inquietações e pesquisa pela conceituação de um espaço decadentista .

Baudelaire meditou sobre o conceito da modernidade numa extensão bem diversa dos

românticos. É um conceito muito complexo. Sob o aspecto negativo, significa o mundo das

metrópoles sem plantas com sua fealdade, seu asfalto, sua iluminação artificial, suas gargantas

de pedra, suas culpas e solidões no bulício dos homens. Significa, além disso, a época da

técnica que trabalha com o vapor e a eletricidade e a do progresso. Baudelaire define o

progresso como o “decaimento progressivo da alma, predomínio progressivo da matéria” (...);

em outra ocasião, o define como “atrofia do espírito” (...). Conhecemos sua “aversão infinita”

pelos manifestos, pelos jornais, pela “crescente maré da democracia que tudo nivela”. O

mesmo haviam dito Stendhal, Tocqueville, e, um pouco mais tarde, Flaubert. Mas o conceito

de modernidade de Baudelaire tem ainda outro aspecto. É dissonante, faz do negativo, ao

mesmo tempo, algo fascinador. O mísero, o decadente, o mau, o noturno, o artificial, oferecem

matérias estimulantes que querem ser apreendidas poeticamente. Contêm mistérios que guiam

a poesia a novos caminhos. Baudelaire perscruta um mistério no lixo das metrópoles: sua

lírica mostra-o como um brilho fosforescente. A isto se acresce que ele aprova toda atuação

que exclua a natureza para fundar o reino absoluto do artificial. Porque as massas cúbicas de

pedra das cidades são sem natureza, elas pertencem – embora construindo o lugar do mal – à

liberdade do espírito, são paisagens inorgânicas do espírito puro. Este argumento só se repetirá

em resquícios nos poetas posteriores. Mas a lírica do século XX põe ainda nas metrópoles

aquela misteriosa fosforescência descoberta por Baudelaire. [28]

 

Em Baudelaire se acentua a tendência, moderna, do predomínio do artificial sobre o natural. O artificial como a dimensão do acontecimento da vida humana e as suas atividades cotidianas de trabalho, lazer, prazer e ócio. A era moderna com as suas máquinas a vapor e posteriormente o advento da eletricidade, só fizeram por distanciar ainda mais a sociedade humana das imposições do meio natural, ou seja; do meio não acontecido pela técnica; do artifício (humano). Mas antes, para prosseguirmos será necessária uma conceituação precisa sobre Natureza ? natural e artifício ? artificial , uma vez que , apesar dos progressos e da complexidade da antropologia e ciência ambiental, reina, ainda, uma confusão conceitual, dando margem a equívocos lamentáveis e prejudiciais a produção e avanço do conhecimento. Se formos ao dicionário Houaiss, [29] vamos encontrar para o vocábulo natureza a definição: conjunto dos seres do Universo; o mundo físico; índole, caráter . Para natural , a explicitação: da natureza; espontâneo; que(m) nasce em certo lugar . No mesmo dicionário, encontramos para o vocábulo artifício : procedimento engenhoso; truque, artimanha . Por fim, artificial ganha acepção de: feito pelo homem, postiço; sem naturalidade; afetado, fingido . Se prestarmos atenção, notamos que: Natureza ? artifício e natural ? artificial . E aqui, um fato rememorado: numa tarde de 1988, em conversa com o saudoso mestre Antônio Houaiss, dele recolhemos, num depoimento que de próprio punho datilografou para nós, a seguinte expressão: natureza natural . Surpresos que ficamos tivemos o prazer de ouvir do mestre, naquela sua habitual doçura e paciência, a explicação: Nada existe que não provenha da Natureza. O artifício, decorre do homem; este, da Natureza. Portanto da Natureza se origina também o artifício. Conseqüentemente podemos ter: Natureza natural, quando não se verifica ação do artifício. Natureza artificial, quando diante da ação do artifício, mas nem por isso fora do âmbito da Natureza. Tais palavras marcaram para sempre o nosso pensamento e a nossa conceituação sobre a relação:

 

? Natureza ? natural ? mundo ? ambiente ? homem ? técnica ? artifício ? artificial ?

 

Vale, ainda, neste parágrafo citarmos a resposta – em seu característico tom inquiridor – de Milton Santos, num de nossos encontros de trabalho, em meados de 1989, na USP: E se eu lhes disser que no mundo de hoje, por ação da técnica em larga escala, o natural tende rapidamente ao desaparecimento, sobrepujado pelo artificial? Ao mesmo tempo foi um choque (para nós, ecologistas ingênuos, que éramos à época) e uma janela escancarada para o novo. Mais tarde, encontramos nas leituras de Edgar Morin, o elo do anel entre o filólogo Antônio Houaiss e o geógrafo Milton Santos. Conta-nos, Morin:

 

As antigas mitologias sabiam que o universo precisa ser regenerado, e os seus ritos

esforçavam-se por contribuir para esta regeneração. A ordem majestosa de Newton e Laplace

é, sabemo-lo agora, incessantemente gerada e regenerada pelas formidáveis caldeiras solares.

Quer dizer, enfim, que tudo aquilo que é genésico, gerador e criador não pode passar sem a

desordem. A desordem é inelutável e irredutível. Assim como não podemos dissociar, no

homem, o seu rosto de homo demens do seu rosto de homo sapiens , assim também – e não é

fortuito – não podemos dissociar no cosmo os seus caracteres <<dementes>> (caos,

hemorragia, dissipação, desperdícios, turbulências, cataclismos) dos seus caracteres

<<sensatos>> (ordem, lei, organização). Os primeiros talvez não precisem dos segundos, mas

os segundos precisam sempre dos primeiros. Tudo aquilo que se cria e se organiza, gasta e

dissipa. O universo é mais shakespeariano [30] do que newtoniano; o que nele se representa é, ao

mesmo tempo, uma farsa sem nome, um conto de fadas, uma tragédia dilacerante, e não

sabemos qual é o cenário principal...

 

A <<physis [31]>> generalizada

 

Dispomos doravante dum princípio imanente de organização, propriamente físico.

Subitamente a physis encontra a plenitude genérica que os pré-socráticos lhe tinham atribuído.

É esta physis reanimada e regenerada que pode ser generalizada , ou seja, reintroduzida em

tudo o que é vivo, em tudo o que é humano [32] [,em tudo o que é existente] [33].

 

Entre o natural e o artificial , existe o percurso humano permanente e incessante, da técnica do artifício para a viabilização e assentamento do indivíduo e sociedade no meio. Porém, nem por isso, a luta árdua por sobreviver, retira do homem a sua capacidade de sonhar, fingir, encenar e representar a sua tragédia e comédia pessoal e coletiva. Nesse universo mais shakespeariano do que newtoniano , como afirma Edgar Morin, Charles Baudelaire sonhou com um mundo mais wildiano do que vitoriano. Esse mundo baudelairiano onde o trágico, a perversão, o horror e a repulsa não destituem do olhar as suas plenas possibilidades de poesia e de espaço poético. O espaço decadentista é aquele que renega o asco pelas coisas e pessoas abjetas, procurando encontrar de algum modo à poesia descartada no lixo; reciclar na luxúria esse lixo e dele extrair a beleza apodrecida pelo esquecimento humano de que somos matéria a caminho da decomposição, em constante transformar nesse palco-mundo de mutantes que inegavelmente somos. O espaço decadentista é esse palco de perene mutação onde o viver se permite representar por diversas cenas e muitas facetas dos seus atores em fingimentos, sejam estes grandes protagonistas ou meros figurantes. E apesar da decadência das formas-vida que animam o espaço decadentista, este o é de ascensão, pois o descenso, aqui, é o da decomposição transformadora, a que transmuta até ao essencial; estado primordial de leveza para ascender ao poético das coisas e dos seres de inclusão e exclusão... num mundo, apenas mundo de possibilidades.

Agora, o nosso esboço para o conceito de espaço decadentista , começa a melhor se delinear, avançando um pouco mais: espaço de contradições cortantes e elementos híbridos, engendrados pela construção desconstruída onde a descensão das suas formas-vida a um estado essencial de existência e sobrevivência, possibilita a ascese poética .

O espaço decadentista portanto, ganha, para nós, aqui, o sentido metafísico heideggeriano enunciado no Der Feldweg (O Caminho do Campo):

 

Os meninos, porém, recortavam seus navios na casca do carvalho. Equipados de barco para o

remador e de timão, flutuavam os barcos no Mettenbach ou no lago da escola. Nesses

folguedos , as grandes travessias atingiam facilmente seu termo e facilmente recobravam o

porto. A dimensão de seu sonho era protegida por um halo, apenas discernível, pairando sobre

todas as coisas. O espaço aberto era-lhe limitado pelos olhos e pelas mãos da mãe. Tudo se

passava como se sua discreta solicitude velasse sobre todos os seres. Essas travessias de

brinquedos nada podiam saber das expedições em cujo curso todas as margens ficam para trás.

Entrementes, a consistência e o odor do carvalho começavam a falar, já perceptivelmente, da

lentidão e da constância com que a árvore cresce. O carvalho mesmo assegura que só

semelhante crescer pode fundar o que dura e frutifica; que crescer significa: abrir-se à

amplidão dos céus, mas também deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo o que é

verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for simultaneamente ambas as

coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e

produz.

 

Isto o carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre seguro de seu

destino. O caminho recolhe aquilo que tem seu ser em torno dele; e dá a cada um dos que o

percorrem aquilo que é seu. [34]

 

Como nos ensina Martin Heidegger, crescer significa ir para o alto à medida que, ao mesmo tempo, se permite ir para baixo; ganhar as alturas, assegurado pela firmeza do chão; buscar o sublime, pela experiência e contato com o horrendo e obscuro; alcançar o sagrado pelo aprofundamento no profano; elevar-se pelo decaimento. Eis, heideggerianamente o ascênsio poético decadentista: o sublime pela des-sublimação.

No entanto, de modo algum se esgotam aqui as possibilidades epistemológicas para a conceituação de um provável espaço decadentista , uma vez que a cidade moderna é plena de atalhos e desvios por onde o flâneur vagueia e o dandy [35] desfila suas roupas e trejeitos impregnados de afetação e poses de modernidade [36].

Merleau-Ponty, em O olho e o espírito , ao tecer comentários sobre o espaço da pintura e do desenho num quadro, afirma que “o espaço é a evidência do onde” [37], do mesmo modo que, para nós, o tempo é a evidência do quando na espacialidade decadentista, isto é; a fruição na fluição: o aproveitamento pela soltura; o usufruir pela fluidez. É desse modo que relacionamos no espaço da cidade moderna, por suas ruas e outros lugares, a flânerie e suas imbricações entre o onde e o quando . Daí, talvez, a desmemorialização do dandy , que por força do imperativo presente renega o seu passado e não cogita sobre o seu futuro, tornando-se alguém “separado da marcha histórica, porque existe apenas no circuito estético”, sendo uma “imagem impenetrável pela experiência.” O flâneur e o dandy vagueiam por entre as rachaduras, fissuras e frestas das ruas e lugares da cidade, exercendo o olhar de um voyeur do espaço exterior, privilegiando essa diminuta forma do tempo: o instantâneo da rua . [38]

Assim como Oscar Wilde, Paulo Barreto – o nosso João do Rio , cronista dos mais sensíveis, astutos e engenhosos, lidava com o espaço urbano de um Rio de Janeiro em plena transformação, desalojando o povo dos seus lugares, desestabilizando as suas vidas e lançando-os em verdadeiros bolsões periféricos de miséria e exclusão do processo urbanístico da cidade higienizada . [39] Ainda que tardiamente, em relação à Paris e as outras grandes capitais da Europa, o Rio de Janeiro dava margem também a uma espacialidade decadentista e o cronista, dandy e flâneur João do Rio, o primeiro a perceber em sua totalidade a geração desse novo espaço urbano e as suas possibilidades poéticas, ainda que expressas por sua prosa de humor inteligente, ácido e refinado, sobretudo na crônica, passeia o seu olhar agudo e crítico pelos interstícios dos lugares híbridos, de gente mestiça – como ele – e miserável. Em João do Rio, a cidade do Rio de Janeiro encontrou o olhar benévolo e decadentista a compreender as suas contradições e exclusões brutais e extrair belezas desses interditos éticos e estéticos. Era a inauguração do dandismo tropical , o dandismo ao nosso modo... ao estilo de João do Rio, que apreende do bulício das ruas o encanto e alma e, pela palavra escrita, aliás muito bem escrita, expressa e registra para a memória da cidade, esse encantamento anímico devotado às ruas:

 

A rua da Misericórdia, ao contrário, com as suas hospedarias lôbregas, a miséria, a desgraça

das casas velhas e a cair, os corredores bafientos, é perpetuamente lamentável. Foi a primeira

rua do Rio. Dela partimos todos nós, nela passaram os vice-reis malandros, os gananciosos, os

escravos nus, os senhores em redes; nela vicejou a imundície, nela desabotoou a flor da

influência jesuítica, índios batidos, negros presos a ferros, domínio ignorante e bestial, o

primeiro balbucio da cidade foi um grito de misericórdia, foi um estertor, um ai! tremendo

atirado aos céus. Dela brotou a cidade no antigo esplendor do Largo do Paço dela decorreram,

como de um corpo que sangra, os becos humildes e os coalhos de sangue, que são as praças

ribeirinhas do mar [40]

 

Em Baudelaire, Huysmans, Mallarmé, Rimbaud, Verlaine, Wild, João do Rio e outros, a percepção do espaço da cidade acontece por descontinuações do olhar, onde cada fragmento percebido assume um caráter de totalidade em si; um sentido de espaço intensamente atual, desgarrado dos seus pretéritos e embriagado demais para incorrer na previsibilidade, incerta, dos seus vindouros possíveis. Por terem existido e poeticamente se permitido apreenderem os estranhamentos da metrópole em seus espasmos de modernidade e assimilá-los em suas poses e andanças pelas ruas e lugares, torna-se possível, de onde agora estamos, lançar docemente o olhar para eles e compreendermos a envergadura poética dos que ousaram fuçar nos depósitos dos horrores; nas coisas e pessoas demolidas e descartadas, algum retalho de beleza e encantamento para tentarem reconstruir uma estética e uma ética humana, demasiadamente humana. [41]

O espaço decadentista é um espaço de cintilação, pleno de intermitências, por onde o olhar é seduzido, pois como afirma Roland Barthes: “(...) é a intermitência, como o disse muito bem a psicanálise, que é erótica: a da pele que cintila entre duas peças (as calças e a malha), entre duas bordas (a camisa entreaberta, a luva e manga); é essa cintilação mesma que seduz, ou ainda: a encenação de um aparecimento-desaparecimento. [42]

Uma vez mais, avança o nosso esboço de conceito de espaço decadentista . Assim, podemos, agora, dizer que o espaço decadentista é o espaço de contradições cortantes e elementos híbridos, engendrados pela construção desconstruída onde a descensão das suas formas-vida a um estado essencial de existência e sobrevivência, possibilita a ascese poética pelo entrelaçamento entre o que é demente e sensato, num hiato de divertimento libertino e lúcida loucura.

Eis, quem sabe, uma possível conceituação para espaço decadentista . Quem há de saber? Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança .

BRINCANDO COM A LOUCURA DO ESPAÇO

 

O ludismo é a dimensão do divertimento onde o homem é capaz de se expressar com descontração e soltura, entre a demência e a sensatez. Aqui, no ludismo, ele transita entre os elementos dementes e os componentes sensatos da vida, mundo, sociedade e indivíduo, conforme sugere Edgar Morin ao se referir ao universo. E se Morin aponta como elementos dementes do universo o caos , a hemorragia , a dissipação , os desperdícios , as turbulências e os cataclismos ; e, por elementos sensatos do universo relaciona a ordem , a lei e a organização , por analogia, podemos tentar identificar os sujeitos dementes na dimensão coletiva e individual do homem na vida e no mundo. Isoladamente e socialmente o homem se expressa por forças dementes quando manifesta cólera, egoísmo, competição, violência e beligerância, experimentando e disseminando a raiva no comportamento, o cerceamento do espírito, a destituição do outro, a agressão aniquiladora e a instauração por completo do estado de conflito entre as partes oponentes. Por sua vez, a porção sensata que podemos apontar no indivíduo e sociedade se traduz por: calma, partilha, confraternização, mansidão e diálogo, provando e propagando a placidez comportamental, a doce contigüidade entre os espíritos, o reconhecimento do outro, o carinho e o entendimento. Visto assim, estamos prestes a formular os fundamentos para mais um dentre os muitos códigos e dogmas éticos já existentes e, raras exceções, cumpridos, e de modo algum é nossa intenção, postular as razões para um outro modo comportamental assentado em bases éticas e morais. Então por que da tentativa de identificar e explicitar os caracteres dementes e sensatos do indivíduo humano e sociedade?

À pergunta, quem sabe, uma resposta simples e direta: porque o homem, seja individualmente considerado ou socialmente, só pode sê-lo, quando tomado em suas porções dementes e sensatas. Somente assim, o homem tende a manifestar, conhecer e experimentar a sua plenitude humana de possibilidades. Amalgamando demência e sensatez é que o homem pode, nietzschianamente vir a ser humano, demasiado humano .

Agora, face ao exposto, se delineou um pouco mais as nossas conjecturas iniciais: existe a loucura do espaço? Qual a loucura do espaço decadentista? O que é brincar com a loucura? Como é brincar com a loucura do espaço decadentista?

O espaço, esse constructo de formas-vida, manifesta a sua porção de loucura quando os seus elementos dementes predominam em sua dinâmica espacial. Tais elementos promovem a distensão; o relaxamento, o afrouxamento dos ajustamentos espaciais, possibilitando o desajuste e conseqüentemente a sua expansão. É quando o espaço cresce. Portanto, a loucura do espaço decadentista é a vigência dos componentes dementes sobre os sensatos, permitindo a progressão de um espaço onde a permissividade, perversão, devassidão e libertinagem também contam como agentes produtivos da espacialização, ao invés de simplesmente reprimidos e excluídos dos processos de produção (que ocorre quando imperam num espaço os seus elementos sensatos .). Assim, brincar com a loucura do espaço, é a produção de mais espaço, na fronteira do predomínio dos seus elementos dementes. Brincar com a loucura do espaço decadentista é arrojar-se à espacialização predominada por seus agentes dementes, sem enlouquecer, num estado de fingimento, onde o mascaramento e a pose asseguram os trejeitos lúdicos na proximidade dos limites da tolerância. Por vezes, um ou outro ludista do espaço decadentista se deixou exceder, pelo arroubo emotivo, para além dessas fronteiras farpadas, como Oscar Wilde, conhecendo o amargor da revolta dos elementos sensatos do espaço, quando se unem para punir os seus transgressores.

Brincar com a loucura? Ora, Wilde brincou. Lúcida e ludicamente mergulhou de corpo e alma nesse caudal – o da loucura – e se deixou sonhar... como um arabesco humano, vivo; feito de ossos, carne, sangue e sentimento: humano, demasiadamente humano.

 

EPÍLOGO AO DESAFIO PELA POSE

 

C omo fechar um trabalho em aberto? Como concluir o inconcluso? Como finalizar o que mal se iniciou?

Ensina-nos a academia que todo trabalho sério; científico, tem início, meio e fim . Ensina-nos, assim, também, a própria vida e o mundo: que tudo apresenta princípio, desenvolvimento e término. Mas como aplicar esse critério da seriedade canônica numa proposição lúdica e, pior, louca? Sim – diria alguém mais comportado e vestido do cânone acadêmico – , não podemos confundir o estudo e pesquisa teórica, em teoria literária, com o fazer artístico; literário . Uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa , lembraria, ao seu modo, a sabedoria popular. Concordamos. Mas e se o estudo e pesquisa pretendem travestir o canônico para testar o seu grau de tolerância, flexibilidade e soltura diante do não-canônico; o divertimento e a perdição: o ludismo e a loucura? Como fica? Será que é viável ou inviável para a ciência e seus critérios, ainda, predominantemente vitorianos? Certamente Wilde, ao invés de pessoa, como produto de pesquisa, não teria vez diante do cânone. Seria condenado e forçado a pesados trabalhos de normas técnicas vigentes. E se o viger fosse outro? Nesse caso, teria ele alguma chance, sobrevivendo alguns anos mais, quem sabe uma, duas, três ou quatro décadas adiante, conhecendo o século XX em seu triunfo trágico. Exatamente esse o nosso epílogo: a fabulação da pose diante do, admitido e acordado como, real . Por sobre esse imperativo o olhar de Baudelaire rasgou as entranhas, libertando o poético dessas vísceras hodiernas e odientas, mas tão vitais ao funcionamento do corpo urbano moderno; vale dizer, da cidade industrial; da metrópole. Paris. Lá, onde o espaço era fel, Baudelaire lançando mão da sua lírica, moderna, ensinou a extrair a doçura. Mostrou ao mundo o sentido, implícito e sutil, de elevação na queda. Que o decaimento pode ser uma pose do soerguimento. Que existe no espaço em decadência, esperança de poesia, possibilidade para o poético. Baudelaire possibilitou transformar a weltschmerz em gozo; êxtase. O olhar melancólico de Baudelaire, descobriu certos desvios e atalhos das ruas da metrópole, por onde mais tarde, enveredaram alguns outros, sensíveis como ele, ao apelo da crepuscular luz da decadência. Por esses caminhos vicinais subjacentes às ruas e lugares da cidade moderna, poses do caminhar foram se desdobrando e sendo encenadas pela flânerie em curso, no pleno espaço decadentista. Assim, passearam pelas ruas o próprio Baudelaire em suas constantes mudanças de endereço, premido pela escassez de recursos. Huysmans, Mallarmé, Rimbaud, Verlaine, Wilde e, cá por nossas bandas, João do Rio, dentre outros não tantos.

Por fim, que tal encerrar, provisoriamente, dizendo que: o espaço decadentista é por excelência o palco onde podem ser encenadas a pose e a poesia, num trejeito de modernidade entre a demência e a sensatez.

 

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1. Ítalo Meneghetti Filho é graduado em Oceanografia, pela UERJ, e, Filosofia, pela UFRJ; pós-graduado, com especialização em Planejamento Ambiental , pela UFF, mestre em Ciência da Literatura (Teoria Literária), pela UFRJ, orientado pela Prof. Dra. Angélica Soares, e, doutorando em Ciência da Literatura (Teoria Literária), pela UFRJ, orientado pelo Prof. Dr. Alberto Pucheu.

2. HOCKE, G. (1974) p. 1.

3.O arabesco é um universo de linhas que se deixam sonhar . Merleau-Ponty em O olho e o espírito . P. 92.

4. SANTOS, M. (1997) p. 35-36.

5. GULLAR, F. (1996) p. 5-98.

6.O real não é. O real e... De Luiz Edmundo Bouças Coutinho, citando Gilles Deleuze em sala de aula. UFRJ,

setembro de 2002.

7. HEIDEGGER, M. (1969) p. 13-63.

8. Ibidem, p. 13-63.

9. Em tradução livre, do alemão, a dor do mundo . Extraída de Os sofrimentos do jovem Werther , de Goethe.

10. Ver sites da Internet : www.riccati.it/decadent/generale.htm , www.kirjasto.sci.fi/ , www.veinotte.com/ e www.franceweb.fr/poesie .

11. LIGHTMAN, A. (1993) P. 5-175.

12. SANTOS, M. (1997) p. 46-49.

13. Ibidem, p. 48.

14. Sobre esse aspecto é interessante ler os estudos do físicoquímico russo, naturalizado belga, Ilya Prigogine

que sugere o universo atual como resultado de uma transformação irreversível e proveniente de um “outro”

estado físico. Sugerimos a leitura de O Nascimento do Tempo , incluída na bibliografia.

15. Termo francês que significa passear, caminhar sem destino, rumo, para matar o tempo; vadiar.

16. Escrito por J. Cocteau em 1945, ao se referir a Baudelaire.

17.As Flores do Mal , lançado em 1857, em Paris.

18. Figura de estilo, reunindo palavras aparentemente contraditórias.

19. FRIEDRICH, H. (1975) p. 35.

20. Ibidem, p. 35-36.

21. Proposital o emprego do oximoro construção desconstruída para caracterizar e ressaltar o espaço que se faz

rapidamente a partir dos escombros do anterior na metrópole.

22. SANTOS, M. (1997) p. 28.

23. Ibidem, p. 28.

24. Sobre o conceito mestiço sugerimos a leitura de Filosofia Mestiça do filósofo francês Michel Serres.

25. Por esta expressão passaremos a designar a cidade moderna vista pela ótica de Baudelaire.

26. FRIEDRICH, H. (1975) p. 36-38.

27. Em Baudelaire percebemos um romantismo paradigmático capaz de transcender ao eu pessoal , rompendo

com a unidade entre poesia e pessoa empírica e que, aqui, conceituamos de supra-romantismo .

28. FRIEDRICH, H. (1975) p. 42-43.

29. HOUAISS, A. et al (2001).

30. William Shakespeare assim escreveu em Macbeth: Life's but a walking shadow, a poor player,/ that struts

and frets his hour upon the stage / and them is heard no more; it if a tale / told by an idiot, full of sound

and fury, signifying nothing. (Em livre tradução para o português brasileiro: A vida nada mais é do que uma

sombra errante, uma pobre jogadora, / que se empavoneia e se preocupa com sua hora sobre o palco / e

repentinamente é silenciada; é uma história contada / por um idiota, cheia de som e fúria, significando

nada. )

31. BORNHEIM, G. (1977) p. 7-16.

32. MORIN, E. (1987) p. 336.

33. Fazemos uma distinção conceitual precisa entre existência e vida (ou vivência ). Para nós, a palavra

existência conceitua tudo o que há em estado de duração (relação temporal) e de ocupação (relação

espacial). Vida ou vivência, associamos diretamente às manifestações de estruturas orgânicas animadas.

Qualquer vida ou vivência, imprescinde da existência, mas esta pode perfeitamente prescindir da

vida ou vivência. Exemplificando: uma rocha existe mas é destituída de vida. Não tem vivência, mas

apresenta existência. Um organismo em funcionamento é dotado de vivência; vida e, existência. Morto, tem

unicamente existência, enquanto a sua matéria não for decomposta e restituída aos elementos básicos do

ambiente, quando então deixa de existir como organismo morto, transformando-se em substâncias

orgânicas e inorgânicas do meio, retornando à composição química ambiental, pela lei da conservação da

matéria , de Lavoisier, cujo enunciado assegura: na natureza, nada se cria, nada se perde; tudo se

transforma .

34. HEIDEGGER, M. (1969) p. 68-69.

35. Aportuguesado como dândi : janota; que(m) se veste com afetada elegância e afetação comportamental.

36. Expressão extraída do título do curso originador deste ensaio: Dandismo tropical e poses da modernização ,

da lavra do nosso querido mestre Edmundo Bouças em seu ensaio: Mascaramentos da cidade: poses da

modernização . (Consta da bibliografia).

37. MERLEAU-PONTY, M. (1969) p. 64.

38. MESSER, O. (1990) p. 23.

39. Sobretudo na gestão do prefeito Pereira Passos, de 1903 a 1906, apelidado de Haussmann Tropical – o

grande remodelador de Paris no século XIX – sob a orientação sanitarista do médico Oswaldo Cruz. Ver

Memória da Destruição: Rio – uma história que se perdeu (1889 – 1965) . Rio de Janeiro: Prefeitura da

Cidade do Rio de Janeiro / Secretaria das Culturas / Arquivo da Cidade, 2002.

40. JOÃO DO RIO. A alma encantadora das ruas . Paris: Garnier, 1908.

41. Em alusão a Nietzsche, por sua obra de aforismos reunida em volume e ditada – devido à sífilis contraída –

a seu aluno Peter Gast, entre os anos de 1878 e 1879: Humano, demasiado humano.

42. BARTHES, R. (1999) p. 16.