FREUD E A BEAT GENERATION

Hugo Langone

 

 

 

 

Entre a extensa lista dos grandes pensadores da história, Freud certamente se encaixa na categoria daqueles que nortearam, através de seu extenso legado acadêmico, novas formas de se pensar o indivíduo e a sociedade.

De todas as suas contribuições, os conceitos de realidade e suas projeções no sujeito – assim como o do sujeito na realidade –, constituem a base da análise freudiana da civilização e das atuações humanas no meio, reflexos da transição dos valores instintivos, ou seja, da integral realização das pulsões, para os princípios da realidade. Estes princípios, reações às frustrações na realização dos impulsos primitivos, levariam a uma sensação de prazer não-plena, somente no nível da consciência, isto é, da realidade tal como a encaramos. É a partir dessa idéia que Herbert Marcuse afirma, em Eros e a civilização , que “tanto seus desejos [dos indivíduos] como a sua alteração da realidade deixam de pertencer, daí em diante, ao próprio sujeito; passam a ser ‘organizados' pela própria sociedade”, que “reprime e transubstancia suas necessidades instintivas originais”. [1]

Essa conceituação, um divisor de águas para as mais importantes escolas de teoria crítica e para os cientistas sociais que, a partir da abordagem psicanalítica, puderam modificar a análise social quanto à forma de estruturação e dinâmica, adequa-se também à análise de um dos movimentos literários contemporâneos de maior importância e influência para a literatura atual.

Ao esclarecer, em uma entrevista para a TV, que sua busca consistia no desejo de que Deus mostrasse Sua Face, Jack Kerouac resumiu precisamente as perseguições que direcionaram o primeiro grande movimento literário norte-americano. Como uma espécie de vanguarda popular, se apresentando como uma corrente intelectual cujo academicismo tem como base não só os aprofundamentos teóricos, literários e filosóficos, mas também um laço estreito com os elementos cotidianos e comuns (o espaço urbano, a importância da sensibilidade e da descoberta, as relações humanas) —, a geração beat serve até hoje, mais de 50 anos depois de seu apogeu, como guia à eterna busca da saciedade vital do homem moderno através do movimento, a plenitude da vida atingida através dela própria: “— Onde estamos indo, homem?/ — Não sei, mas precisamos ir.” [2]

Certamente, a imagem do alcance divino não pode ter por base somente um perfil religioso, tomando a ótica das crenças pessoais de cada um de seus integrantes, como, por exemplo, o catolicismo de Kerouac ou o budismo de Allen Ginsberg. Essa figura transcendental, da elevação sagrada, nutre ainda mais a simbologia de um êxtase máximo, uma felicidade integral alcançável (como obviamente se nota ao ler qualquer um de seus autores) nessa esfera do real, terrestre, não importando, de fato, os meios que nela culminam – filosofia que acabou por caracterizá-los como marginais, já que, no decorrer das atitudes beats , em grande parte a alegria plena se alcançava pela ruptura ou descarte de normas e valores instituídos e formados pela sociedade. Uma sensata exemplificação se dá ao tomar a noção estética assimilada pelo meio social ocidental — o “ato da aparência” conceituado por Baudrillard [3], que, segundo ele, consiste em uma tendência contemporânea onde há a disseminação do visual como forma de tornar o indivíduo notável somente como imagem, e não como “ser”. No caso dos beats , diferentemente das gerações que deles se originaram, existe um retorno para uma valorização da existência em relação à imagem, ainda que esta seja usada como forma de remeter a uma dominância dos valores existenciais sobre os valores estéticos, já que,

 

a partir do momento que a ausência de cuidado estético tradicional se apresenta, ela pode facilmente ser pensada como sendo irrelevante perante o valor, a beleza e as necessidades do ser.

E é dessa forma que se dá a relação entre esse modelo de vida com as noções freudianas do princípio da realidade , onde os impulsos direcionados ao escoamento livre do nível de excitação, guiados pelo id, são filtrados, nas pessoas ditas normais, pelo ego, como forma fundamental de constituição e formação da civilização.

Marcuse também afirma “sua capacidade [dos desejos humanos] para alterar a realidade, conscientemente, de acordo com o ‘que é útil', parece prometer uma remoção gradual de barreiras estranhas à sua gratificação” [4]. Contrariando essa idéia, e é à demonstração disso que o presente trabalho se direciona, a geração beat teria conseguido, então, conciliar a utilidade característica da forma de vida do homem com uma involução à realidade sob a ótica de Freud.

Como parte integrante da sociedade, constituídos de valores absorvidos por ela própria, os beatniks pareciam ponderar suas atitudes de forma a se adaptar a essa instrumentalidade característica da vida humana, isto é, conscientemente traçando suas prioridades, suas ações e seus lugares na sociedade; ao mesmo tempo, essas ações parecem corresponder, em alguns momentos, aos instintos naturais que caracterizam a animalidade do homem, a busca do prazer “primitivo”, através da valorização do prazer sexual, e a satisfação através dos já citados elementos rotineiros.

Assim, não seria totalmente equivocado caracterizar, de maneira despretensiosa, o movimento americano como um “humanismo selvagem”:

Pança estufada em barril

Peitos inchados de entornar cerveja, quem deseja o Nirvana?

Aqui há água, vinho, cerveja

Livros suficientes para uma semana

Uma confusão pós-parto,

Um cheiro de terra quente, uma névoa morna

Emana da virilha [5]

 

 

Aparentemente óbvia, cabe refutar a idéia de que o movimento beatnik tenha se constituído sob uma ótica hedonista: existe, na busca do “prazer beat ”, uma valorização do prazer da alma [6] como forma superior ao prazer físico (“ and that tremendous bandaged thumb supported in midair at heart-level. (...) ‘What do my eyes see? Ah — the blue sky, Long-fellow!' [7]). Essa visão, que se opõe à noção marcusiana de hedonismo cirenaico [8], ainda se acentua quando observado, no movimento americano, que as necessidades individuais, mesmo que atingidas através das já citadas rupturas de valores — que seriam conseqüências dessas necessidades —, se fundamentam numa “natureza” do indivíduo; quanto ao hedonismo epicurista [9], sua relação com a geração também se torna incompatível. Cabe a esse tipo de hedonismo uma espécie de “prazer responsável”, evitando as conseqüências tidas como desagradáveis que dele possam originar. Nos beats , por sua vez, a entrega à saciedade se dava muitas vezes seguidas de um refugo de valores, gerando um desequilíbrio inadmissível aos seguidores desta prática hedonista.

Analogicamente, podemos tomar a estrada, símbolo maior do movimento, o sexo, as drogas, com destaque para os alucinógenos, meio utilizado notoriamente por William Burroughs e Allen Ginsberg (de certa forma semelhante à que os surrealistas franceses usavam como forma de exteriorização do id), como maneiras inconscientes de realização integral (“...companheiro, pensávamos/ os mesmos pensamentos da alma, chapados e de olhos/ tristes...” [10]), a descarga total das quantidades de excitação que Freud um dia caracterizou como a necessidade de uma volta à forma inorgânica, ou impulso de morte (“... [o princípio do Nirvana] encontra expressão no princípio do prazer;... uma das mais poderosas razões para acreditarmos na existências de instintos de morte.” [11]).

No entanto, como esses meios também se encontram comuns à camada psíquica do consciente, levando-se em consideração que eram planos traçados e objetivados mesmo nas decisões aparentemente desnorteadas, essas formas de ruptura social podem ser encaradas então, como áreas de interseção entre os instintos natural e instrumental, isto é, meios que se encaixam tanto na necessidade do id de se fixar como impulso dominante quanto na forma característica da espécie humana, a atuação das noções sociais a que estamos submetidos.

 

BIBLIOGRAFIA

BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal – Ensaios sobre fenômenos extremos . Campinas, Papirus Editora, 1990.

 

BIVAR , Antonio et. al. Alma Beat: ensaios sobre a Geração Beat . Porto Alegre: L&PM, 1984.

 

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização . Rio de Janeiro: Imago Editora, 1974.

 

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2002.

 

GINSBERG, Allen. O uivo, Kaddish e outros poemas. Porto Alegre: L&PM, 1984.

 

KEROUAC, Jack. On the road. Londres: Penguin Books Co, 2004.

 

KRIM, Seymour. The beats. Fawcett Publications, 1960.

 

MARCUSE, Herbert. Cultura e sociedade – vol. 1 . São Paulo: Paz e Terra, 1997.

 

MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. São Paulo: Guanabara Koogan, 2002.

 

MC CLURE, Michael. A nova visão de Blake aos beats ; Rio de Janeiro: Azougue editorial, 2005.

 

1. Herbert Marcuse, Eros e civilização , pág. 36.

2. Jack Kerouac, On the road (Londres: Penguin Books Co., 2004), pág. 225.

3. Cf. A transparência do mal – Ensaios sobre fenômenos extremos , 1990, pág. 30.

4. Herbert Marcuse, Eros e civilização , pág. 35.

5. Michael McClure, A nova visão de Blake aos beats (Rio de Janeiro: azougue editorial, 2005), pág. 31.

6. Cf. Herbert Marcuse, Cultura e sociedade: volume 1 , 1997, pág. 169.

7. Jack Kerouac, On the road (Londres: Penguin Books Co., 2004), pág. 177.

8. Cf. Herbert Marcuse, Cultura e sociedade – vol. 1 , 1997, pág. 163.

9. Idem, pág. 169.

10. Allen Ginsberg, O uivo, Kaddish e outros poemas (Porto Alegre: L&PM, 1984), pág. 61.

11.Beyond the Pleasure Principle (Nova York: Liveright Publishing Corp., 1950), pág. 76.

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