Entre vozes, países e línguas

Sobre Relato de um certo Oriente

 

““A viagem terminou num lugar que seria exagero chamar de cidade. Por convenção ou comodidade, seus habitantes teimavam em situá-lo no Brasil; ali, nos confins da Amazônia, três ou quatro países ainda insistem em nomear fronteira um horizonte infinito de árvores (...)”” [1]

 

Introdução

 

A trama se passa numa cidade marcada pelo hibridismo cultural e atravessada pelas idéias de fronteira e trânsito: Manaus, uma capital que se separa da floresta pelas águas fluviais e se situa num estado que faz divisa com três outros países. Cenário do romance de estréia de Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente [2], ela também é a cidade natal do escritor. No livro, que conta histórias de conflitos, encontros e mistérios de personagens de uma família de ascendência libanesa, também estão presentes a diversidade de costumes, línguas, e a convivência entre indivíduos de diferentes nacionalidades. A narradora, cujo nome não sabemos, é uma mulher que havia sido criada meio como filha, meio como neta, pela matriarca Emilie. Ela começa seu relato quando volta à cidade para uma visita, após longa ausência. Até que ponto, entretanto, poderemos considerá-la a narradora do livro ?

 

Apesar da ânsia por descobrir o que se passou e mesmo da competência para investigar o passado, ela não dá conta das histórias que narra - ao menos não para um leitor que exija saber tudo o que aconteceu e acredite que a memória, ao ser desvendada, possa se desdobrar em verdade. A trama continua, portanto, a guardar mistérios. Ao se debruçar sobre os acontecimentos que envolvem os personagens do romance, a narradora precisa recorrer a relatos de outrem, o que caracteriza qualquer história na qual quem conta não a presenciou, pelo menos não em todos os momentos. Mas ao retransmitir o que lhe é revelado, ela deixa claro que o fato foi apresentado por uma determinada fonte. Mais do que isso. Em boa parte do romance, não somos só comunicados sobre essas fontes e ouvimos suas vozes como também, em vários momentos, elas assumem o papel do narrador, encarregando-se daquele trecho da história. Mas, ao mesmo tempo em que partilha o relato com outros personagens, a narradora também é responsável pela organização de todas as vozes, pela apropriação e ordenação delas.

 

Desse modo, parece surgir nesse romance a figura de um narrador que se pergunta sobre quem fala , marcado pela impossibilidade de transformar uma costura de relatos numa verdade inquestionável. Assim, ele precisa não só lançar mão de recursos como a multiplicidade de vozes, dividindo o espaço da narrativa com outros, como afirmar, ao final do relato, que sua voz foi obrigada a nortear as outras falas. Esse modo de contar, atravessado pela própria impossibilidade do contar, se relacionaria com o distanciamento do narrador na contemporaneidade, fato apontado e examinado por Walter Benjamin. Com efeito, para o filósofo alemão, "é como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências". [3]

 

Será a partir da peculiaridade da posição da nossa narradora que proporemos a análise do romance, refletindo sobre o que implica a construção dessa posição. Quais elementos estão envolvidos, por exemplo, na opção de contar uma história por quem ao mesmo tempo está do lado de fora e de dentro dela; por quem faz e não faz parte da família; por aquele que veio de outra cidade, mas já morou ali; por alguém que se sente atraído, curioso ou com necessidade mesmo de saber sobre aquele passado, mas, desde o momento em que o descobre, não pode somente contá-lo como a verdade do que aconteceu, precisando mostrar quem disse o quê, como, em que circunstâncias.

 

Além de analisar a posição singular dessa narradora, também procuraremos refletir sobre de que modo a noção de exílio se relaciona com esse romance. Não há nenhum personagem no livro que foi banido ou está impedido de retornar a sua terra natal, mas a obra está repleta de imigrantes - e mesmo de migrantes - que deixaram seu país por motivos diversos, em diferentes circunstâncias. Optamos por empregar, porém, o termo exílio, no lugar de imigração, porque nos referimos a uma literatura já assim denominada e porque, com isso, ressaltamos a posição de estranhamento e de distância do indivíduo que abandonou sua terra natal em relação à cultura e à língua que agora fazem parte de seu cotidiano - ou mesmo em relação àquelas que não fazem mais.

 

Desse modo, supomos que quem constrói sua vida num outro lugar, independentemente de sua condição ser fruto de uma escolha ou não e de sua capacidade de adaptação, conhece, em alguma medida, a dor do exílio, descrito pelo crítico literário Edward Said como “uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar, sua tristeza essencial jamais pode ser superada”. [4]O exilado, portanto, significa neste ensaio aquele indivíduo que vive num país na condição de estrangeiro, em que as regras de comportamento e as palavras que escuta e fala nem sempre soam com naturalidade e que, por isso, está numa posição de perceber com mais facilidade como as narrativas são “construções”.

 

Há uma série de estudos sobre a literatura produzida na modernidade e sobre as “gêneses” desta literatura que, de algum modo, a aproximam da noção de exílio. Gostaríamos de ressaltar que essas análises não se referem apenas às literaturas que exploram a aventura num mundo desconhecido, o encontro com a diferença dos “nativos” ou a dor do afastamento de sua terra natal. Pois, além de nomear essa espécie de “subgênero”, a literatura de exílio, esse termo e seus similares têm sido utilizados para se pensar noções bem mais abrangentes, como a da própria literatura e a do romance, ultrapassando, portanto, um campo delimitado pelo conteúdo dos seus livros ou pelo movimento imigratório do autor em questão.

Ao menos duas perguntas podem ser formuladas a partir daí. A primeira refere-se à literatura sobre o exílio ou escrita por imigrantes, da qual faz parte um grupo grande, importante e diversificado de escritores. Consideramos pertinente refletir sobre por que tal vivência, marcada pela mencionada “fratura incurável”, de um determinado indivíduo ou grupo se tornou tema de um interesse tão amplo, atraindo leitores que nunca experimentaram a dor do afastamento da terra natal. E a segunda consiste em se perguntar por que o exílio tem sido utilizado para se analisar a especificidade da nossa literatura. [5]

 

O Oriente, qual deles ?

 

Logo na capa do primeiro romance de Milton Hatoum aprendemos, com a leitura de seu título, que não se trata de uma narrativa sobre “o” Oriente, mas que o relato se origina de “um certo oriente”. A escolha chega a soar natural, já que o livro se passa em grande parte em Manaus, e não em terras orientais. O autor, entretanto, poderia ter optado por afirmar a existência de um “pedaço do Oriente”, “puro”, nesse território brasileiro, ao invés de apontar para o caráter singular desse Oriente e permitir a interpretação - para quem sabe ou descobre que o romance retrata uma família libanesa no Brasil - da existência de uma miscigenação ou hibridização das culturas.

 

É pertinente indagar se esse texto pode ser considerado integrante daqueles nomeados por Edward Said de orientalistas . Em seu sentido mais amplo, o orientalismo foi definido pelo crítico literário como “um estilo de pensamento baseado em uma distinção ontológica e epistemológica feita entre o ´o Oriente´ e (a maior parte do tempo) ´o Ocidente´. Desse modo, uma enorme massa de escritores, entre os quais estão poetas, romancistas, filósofos, teóricos políticos, economistas e administradores imperiais, aceitou a distinção básica entre Oriente e Ocidente como ponto de partida para elaboradas teorias, épicos, romances, descrições sociais e relatos políticos a respeito do Oriente, dos seus povos, costumes, ´mente´, destino e assim por diante”. [6]

 

De acordo com essa afirmação, o romance de Hatoum pode ser incluído nesse corpo de textos. Entretanto, devemos levar em consideração não apenas que Said, ao se referir ao termo orientalismo, tinha em mente o projeto europeu e, posteriormente, americano no Oriente, principalmente o islâmico, como também lembrar que, ao analisar um corpo de textos selecionados, ele deu importância às obras individuais, não as examinando como mero espelho ou receptáculo do poder imperialista ou de um coletivo cultural hegemônico. Além disso, o crítico palestino frisou a dimensão pessoal de seu estudo, relacionada ao fato de ele “ter sido constituído como ´um oriental´”. [7]

 

Gostaríamos de ressaltar, portanto, que Relato de um certo Oriente parte, claro, dessa distinção, entre Oriente e Ocidente, já tão naturalizada e incorporada às falas e ao olhar sobre a geografia. Mas sua elaboração, com base nessa distinção, será singular por motivos diversos - além, claro, daquele apontado por Said, quando este indicou a marca dos autores individuais. Como Hatoum é de origem libanesa, descendente de imigrantes desse país, ele ocupa uma posição singular; está ao mesmo tempo dentro e fora do Oriente, é simultaneamente um ocidental e um oriental a olhar o Oriente. Além disso, sua face ocidental não é européia, porém brasileira ou, mais especificamente, manauara, o que o distancia das grandes potências que tinham o projeto imperialista de dominação do Oriente através, entre outras coisas, de sua nomeação e do seu conhecimento.

 

Assim, a sua “identidade” ocidental - uso esse termo apenas na ausência de um outro melhor - terá, claro, influência e se relacionará de modo complexo com as visões construídas pela Europa e pelos Estados Unidos sobre o Oriente, mas não de modo passivo e sem sofrer outras influências. Não pretendemos, porém, examinar nem imaginar supostos sentimentos, intenções ou modos de subjetivação do autor, mas sim nos ater ao texto. Essa introdução foi feita no sentido de indicar o seu lugar de partida, já que não se trata de um americano escrevendo sobre o Norte do Brasil nem de um israelense, sobre o Líbano. As possíveis implicações desse ponto de partida só serão localizadas no relato e, mesmo assim, independentemente de qualquer interpretação causal. Do mesmo modo, indicamos, sem com isso fazer nenhuma leitura do fato, o vínculo de Hatoum com a obra de Said. É ele, por exemplo, quem assina as orelhas da edição citada de Orientalismo , além de aparecer nessa publicação brasileira da obra como o nome responsável pela Indicação editorial. Mais recentemente, Hatoum traduziu um outro título de Said, Representações do intelectual . [8]

 

Uma subjetividade fora do espaço da representação

 

Em Relato de um certo Oriente , uma mulher visita a cidade de sua infância depois de ter passado quase 20 anos fora. E, a partir dos acontecimentos que se desenrolam após sua chegada, ela vai relembrando e descobrindo hist­órias do seu passado e da família que a criou. Logo no primeiro capítulo, a narradora nos descreve uma parte da casa na qual acabara de acordar, em Manaus. A descrição das duas salas contíguas é repleta de marcas identificatórias do Oriente, indicando uma representação estilizada desse território: tapete de Isfahan, elefante indiano e reproduções de ideogramas chineses são alguns dos objetos de consumo dos ocidentais, tomados como símbolos desse nosso Outro, que estão presentes nos cômodos.

 

Um desenho de criança, entretanto, contrasta com essa decoração, remete à geografia amazonense, com a sua imensa bacia hidrográfica, e à representação de uma subjetividade, provavelmente a da nossa narradora: “(...) notei que as duas manchas de cores eram formadas por mil estrias, com minúsculos afluentes de duas faixas de água de distintos matizes; uma figura franzina, composta de poucos traços, remava numa canoa que bem podia estar dentro ou fora d'água. Incerto também parecia o seu rumo, porque nada no desenho dava sentido ao movimento da canoa. E o continente ou o horizonte pareciam estar fora do quadrado do papel.” [9] Esse desenho desperta alguma coisa na memória da nossa narradora, “algo que te remete a uma viagem, a um salto que atravessa anos, décadas” [10], mas ela não consegue descobrir seu autor, quem seria esse navegante sem rumo que se aventura pelas águas amazoneneses mas, ao mesmo tempo, tem como horizonte um não-lugar, um território que está fora do espaço do desenho, da representação.

 

Dois outros dados que surgem nesse capítulo inicial do livro são fundamentais para interpretar esse personagem e, logo, o romance. O primeiro é que nossa narradora se dirige, em sua narrativa, ao irmão, que está em Barcelona e também foi adotado por Emilie. O segundo é que leva consigo um caderno de anotações e um gravador; está pronta para criar um relato, escrever suas impressões, o que, inclusive, já começou a fazer.

 

Ao longo do capítulo também vamos sendo apresentados aos personagens e a alguns mistérios desse Relato de um certo Oriente . Ainda se dirigindo ao irmão, a narradora nos conta a respeito da presença de uma terceira criança na casa de sua infância: Soraya Ângela, filha surda e muda de Samara Délia e neta de Emilie, que morreu num acidente ainda pequena. Os leitores e personagens do livro, com exceção, claro, de Samara, não conseguem descobrir quem é o pai de Soraya, criança que no início da vida não ultrapassou os limites do quarto que dividia com a mãe, cujos cinco meses da gravidez já haviam sido vividos no confinamento do cômodo. As duas ocuparam nesse período uma zona de “invisibilidade” na casa.

 

O único dos três irmãos de Samara que sabemos como se chama é Hakim, os outros são os “inomináveis, filhos ferozes de Emilie, que tinham o demônio tatuado no corpo e uma língua de fogo”. [11] E será de Hakim a próxima fala que nos conduzirá no relato desse “certo oriente”. Ele também vem de fora: retorna à cidade depois de anos morando no “sul” do país. Chega a Manaus pouco depois da nossa narradora, mas já é tarde demais, pois não consegue reencontrar sua mãe, já morta quando ele desembarca.

 

O primeiro capítulo do livro se encerra com a narradora nos contando que se encontrou com Hakim para conversar sobre o passado. E é a partir deste momento que passaremos a ser conduzidos por outras vozes narrativas do romance, que terá cada um dos seus capítulos começando e terminando em aspas, nos indicando que se trata, em boa parte dos casos, de uma citação de algo que já foi dito, além de constituir também uma linguagem escrita, pois mesmo quando a narradora volta a se encarregar do relato, a sua voz também surge entre aspas. Trata-se, enfim, da longa carta que a personagem redige ao irmão, contando sobre a sua volta, as suas descobertas e os acontecimentos que se desenrolaram desde que chegou a Manaus.

 

Narradora-escritora-missivista

 

Mas que narrador é esse de Relato de um certo Oriente ; personagem cujo nome desconhecemos, porém revela marcas de sua própria história? Como percebemos ao longo da leitura, essa figura, fundamental no romance, não manterá intactas as suas características tradicionais. Pois, como afirmou Walter Benjamin, “o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva”. [12] De que modo ele ainda pode existir no romance contemporâneo constitui uma importante questão que nos ajudará a interpretar esse livro.

 

Hatoum cria um personagem que constitui um misto de narrador, escritor e missivista. Ao mesmo tempo em que a sua voz se aproxima daquela do contador de histórias - ou melhor, de vários contadores de histórias, já que a sua fala dá espaço a outras - ele se dedica a reunir essas lembranças numa longa carta, carrega um gravador e não oferece nenhum tipo de conselho ao leitor; ou seja, seus relatos não trazem sabedoria e não servem de exemplo para quem o escuta. Torna-se claro, portanto, que a época em que a experiência do indivíduo era valorizada pela comunidade de ouvintes ou de leitores passou. Isso, como mencionamos, foi afirmado por Benjamin num texto de 1936, que apresentaremos brevemente.

 

Nesse ensaio, antes de descrever e desenvolver algumas idéias a respeito da figura do narrador, Benjamin diagnostica o seu desaparecimento e assinala nossa incapacidade de trocar experiências. Nesse contexto descrito pelo filósofo – após as experiências traumáticas da Primeira Guerra e poucos anos antes da Segunda - as vivências dos indivíduos perderam seu valor, não têm mais poder de ensinar e de serem comunicadas, quem sabe porque passaram a carregar a marca de uma perplexidade do indivíduo diante do mundo, emudecendo-o, ou porque a morte, que impunha autoridade e respeito à palavra do narrador, foi alijada do nosso convívio, isolada do cotidiano dos homens. Nesse momento histórico em que os indivíduos não conseguem aprender com a vivência alheia, a forma do romance, com a sua busca pelo sentido da vida, torna-se mais atraente. Mas deixemos, por enquanto, a teoria do romance de lado.

 

Segundo Benjamin, existem duas famílias de narradores, que se mesclam de diferentes modos: a daquele que chega de fora, de longe; e a do enraizado naquela terra e naquelas tradições. O narrador também é caracterizado pelo seu senso prático e sua capacidade de aconselhar. Mas, ao mesmo tempo, ele evita dar explicações sobre o fato relatado, que desse modo conserva sua capacidade de surpreender. Nesse ponto, a narrativa se oporia à informação, na qual os fatos já vêm com uma explicação.

 

Para o autor, o desaparecimento da narrativa não é simplesmente uma ilustração, mera característica dos tempos modernos. Resulta de um processo mais antigo, que viria se desenvolvendo ao mesmo tempo em que uma outra mudança, na esfera da força de produção. Com efeito, Benjamin relaciona a narrativa ao trabalho artesanal. Assim, além de ter florescido nesse meio, ela constituiria “uma forma artesanal de comunicação”. [13]

 

O relato de uma história pode, desse modo, trazer as marcas de quem a transmite, como um produto artesanal carrega as de quem o fez. Ao iniciar um “causo” revelando de que modo ele chegou a seus ouvidos, o narrador estaria deixando a sua marca, imprimindo seu vestígio naquele relato. Quando a nossa narradora revela em que circunstâncias encontrou tal personagem, que a partir daí vai lhe contar uma determinada história sobre Emilie e o resto da família, ela está nos deixando a sua marca, mas, no caso deste romance, a personagem vai além disso. Ela não apenas descreve como soube de tal fato, mas se cala para que a pessoa que o transmitiu nos conte, com sua própria voz. Desse modo, uma história do livro vai puxando, se encadeando, numa outra. No entanto, ao utilizar esse artifício, nossa narradora não deixará simplesmente os outros personagens falarem; é preciso inserir suas vozes numa linguagem escrita, a carta que ela escreve a seu irmão. E, ao fazer isso, ela se perguntará sobre quem fala e enfrentará a dificuldade de ordenar fatos dispersos, vozes heterogêneas.

 

É como se ela tentasse dividir sua fala com a de outras pessoas, formando uma polifonia de narradores orais, mas isso se tornará uma tarefa impossível, já que o falar no lugar do outro constitui sempre uma apropriação dessa fala. Poderíamos dizer que uma espécie de “inocência” do narrador, que relata os fatos sem se preocupar em esconder sua voz, sua marca na narrativa, se perdeu. E não porque essa narradora do Relato se encobre por detrás de uma voz imparcial e onisciente, mas porque ela não consegue se esconder e precisará, de alguma forma, coordenar as narrativas alheias, regê-las. Ao realizar isso, ela tem a consciência de que a sua voz também está presente na fala do outro, norteando-a.

 

Ela traz, assim, uma preocupação com o “puro em si” da coisa que, segundo Benjamin, não existia no narrador tradicional. Ora, quando o narrador está atravessado por essa preocupação, não é possível nem contar um “causo” sem citar a fonte nem, transmitindo o “causo” na voz alheia, se fazer passar pelo outro. É preciso, mais do que isso, deixar claro que aquela história está sendo citada, abrir aspas no texto escrito e, finalmente, esclarecer no final do livro que aquele concerto de vozes possui um regente, uma voz que coordena, com todas as dificuldades, as outras falas. Desse modo, ela nos explica sua preocupação no final do romance: ““(...) como transcrever a fala engrolada de uns e o sotaque de outros? Tantas confidências de várias pessoas em tão poucos dias ressoavam como um coral de vozes dispersas. Restava então recorrer à minha própria voz, que planaria como um pássaro gigante e frágil sobre as outras vozes. Assim, os depoimentos gravados, (...), e tudo o que era audível e visível passou a ser norteado por uma única voz, que se debatia entre a hesitação e os murmúrios do passado. (...)””. [14]

 

A polifonia de vozes que, à primeira vista, sugeria uma narrativa espelhada naquelas de narradores tradicionais, diante da impotência da contadora da história, transforma-se numa construção atravessada por uma certa consciência desse seu caráter. Os outros narradores tornam-se, desse modo, personagens de quem ela recolheu depoimentos que agora reproduz, apropriando-se deles. Não que numa narrativa tradicional a narradora não se aproprie da voz de outros contadores de história, de quem ouviu tal relato, mas certamente ela não se preocupará em saber o que vem dela e o que vem do outro, que voz rege qual relato, pois essa distinção não constitui um problema.

 

Outra importante diferença entre o romance e a arte de narrar está na sua relação com a reminiscência, que, segundo Benjamin, “corresponde à musa épica no sentido mais amplo”. [15] É graças à reminiscência que as histórias são transmitidas de geração em geração e encadeiam-se umas às outras, como ocorre em narrativas orientais e nesse romance de Hatoum. Ela aparece, porém, de modo distinto na narrativa e no romance. Assim, enquanto o narrador possui uma “breve memória”, capaz de se dedicar a diversos fatos, o romancista se serviria de uma “memória perpetuadora”, que se consagra a um herói específico, uma guerra, uma peripécia. Podemos, portanto, a partir dessa diferenciação, compreender melhor a dificuldade de nossa narradora já que, para encadear os diversos relatos que recolheu, ela precisaria de uma memória capaz de tecer esses diversos depoimentos, como na narrativa, e não de uma própria para rememorar, eternamente, os mesmos fatos.

 

Mas a rememoração também será útil a essa narradora-escritora. A partir dela, o leitor busca o sentido da vida daquele personagem, cujos atos não podem dar origem a nenhuma moral ou ensinamento, mas cujo passado, a nos ser desdobrado, poderá ser interpretado a partir do que já sabemos sobre o seu destino, deixando-nos pistas para tentarmos entender o sentido de sua vida. O passado pode, na rememoração, indicar como ler o presente e vice-versa. Como no romance essência e vida se encontram separadas, hipótese apresentada por Lukács na sua Teoria do romance [16][17], a leitura do tempo, na rememoração, guiará o leitor nessa busca pela compreensão do sentido da vida daquele personagem e de seu destino. Perplexo diante do mundo, onde essência e vida se distanciaram, o leitor procura não mais um exemplo que possa mirar e seguir, mas vislumbrar o sentido de uma vida, e mesmo afirmar sua ausência. Desse modo, o rememorar constitui uma forma criadora de memória, pois permite ao leitor e ao personagem que vejam no passado um sentido que se descola do fato vivido e modifica o olhar sobre o presente ou o futuro.

 

Uma outra face da morte

 

A narradora do Relato de um certo Oriente buscará, portanto, ler, interpretar os atos de Emilie a partir de pistas de seu passado; procurará reunir essência e vida. Ela terá acesso, graças ao auxílio dos outros narradores, a fatos dispersos da história da matriarca da família, porém, como já foi dito, ao tentar coordenar os vários relatos que ouviu, revelará uma impotência, encontrando lacunas e informações em excesso.

 

Mas avancemos um pouco mais no romance. A segunda fala do livro, de Hakim, se inicia após a morte de sua mãe. Nesse caso, como foi mencionado, a morte não transformará a vida da matriarca num exemplo, mas o acontecimento será a ocasião para os outros personagens se debruçarem sobre o passado de Emilie, desvendando seus mistérios e interpretando seus atos; eles rememorarão a sua vida, em detalhes, tentando compreendê-la.

 

Em seu ensaio, Benjamin também ressalta uma mudança no “rosto da morte” que acompanharia o enfraquecimento da nossa capacidade de transmitir experiências: o seu afastamento, isolamento, do mundo dos homens. Na narrativa, o momento da morte é aquele que confere autoridade ao contador da história. Já no romance, a morte do personagem, ou o fim do livro, permite que o leitor vislumbre o sentido da vida daquele indivíduo, perceba o fluxo entre o seu passado e futuro, mesmo que seja para afirmar a ausência de qualquer sentido. Será com os olhos e o sentimento de quem está certo de que acompanhará aquele personagem até o seu último dia ou até o final da trama que o leitor se embrenhará no romance, perguntando-se de que modo aqueles fatos que ele lê podem já indicar a morte que acontecerá.

 

E será a partir da notícia da morte de Emilie, anunciada logo no primeiro capítulo do livro, que acompanharemos diversos episódios da sua vida. Senão para buscar um sentido último e único na sua existência, ao menos para entender e encadear suas ações e reações. Ao mesmo tempo, também tentaremos compreender a trajetória misteriosa de nossa narradora, que não sabemos o nome, de quem é filha e como veio parar naquela casa em Manaus.

 

A partir do relato de Hakim sobre um determinado acontecimento na vida de Emilie, adentraremos no universo religioso da matriarca. Ele nos conta como ela ingressou no convento de Ebrin quando se separou dos pais, que haviam deixado o Líbano em busca de uma nova terra. Emilie só saiu do convento porque seu irmão Emir ameaçou se matar e, mesmo assim, descobriremos depois, manteve uma correspondência com a Vice-Superiora, Irmã Virginie Boulad. Também saberemos mais adiante que Emir realmente se matou, mas já em Manaus. E, apesar de o suicídio não ter sido causado pelo confinamento de Emilie, ela terá, ainda que indiretamente, algum envolvimento no fim trágico do irmão.

 

A religião também ocupa um espaço importante na vida do pai de Hakim. Mas diferentemente de Emilie, ele não era católico, e sim muçulmano. E ainda que essa não fosse a regra, houve momentos na vida do casal em que eles entraram em conflito por conta dessa diferença, como numa noite de Natal em que o pai de Hakim não dormiu em casa e destruiu imagens de santo da mulher.

 

Hakim (e a nossa narradora) cresceu, dessa maneira, num ambiente onde são praticadas duas religiões, faladas duas línguas e no qual convivem diversas culturas. Mais do que isso. Ele foi o filho escolhido por Emilie para aprender o árabe, tornando-se, assim, o que poderíamos denominar de um “mensageiro entre dois mundos”: ““(...) sabia que tinha sido eleito o interlocutor número um entre os filhos de Emilie (...)”” [18], diz. Mais adiante, ao se referir a sua mudança para o “sul”, utilizará o termo “exílio”. A cidade para a qual Hakim se mudou, porém, provavelmente fica no sudeste, já que ele conta num determinado momento que morou em um estado vizinho ao da nossa narradora, que possivelmente foi para São Paulo.

 

De qualquer modo, é o aprendizado desta segunda língua que ajudará Hakim a descobrir mais segredos sobre o passado da mãe, revirando ““(...) o mundo íntimo de Emilie (...)”” [19] trancado num armário do sobrado onde a família morava: cartas; pulseiras de ouro, em número correspondente ao de filhos de Emilie; e o hábito branco que ela havia usado em Ebrin faziam parte deste universo fechado. Hakim, esse nosso segundo narrador, agiu como uma espécie de detetive para desvendar mistérios de sua família. Remexeu em objetos proibidos, relembrou fatos de sua infância, conversou com Hindié da Conceição sobre a mãe e com o alemão Gustav Dorner sobre seu pai. E é esse último personagem, um outro exilado, que surgirá como a próxima voz deste relato.

 

Dorner nos revelará as circunstâncias da morte de Emir, irmão de Emilie. Ele não narra esse episódio a nossa narradora, mas a Hakim. Esse trecho do relato, portanto, passou por uma dupla apropriação. Foi narrado primeiro a Hakim, que o transmitiu à narradora do romance, que agora conta em carta ao irmão, nessa correspondência que está sendo lida por nós.

 

O fotógrafo alemão se encontrou com Emir no dia do seu suicídio, mas não atinou para a expressão de desespero do seu amigo e, portanto, não tentou impedi-lo de se matar. Foi ele quem tirou a última foto de Emir, no dia mesmo da sua morte, com uma orquídea rara na mão. É a Dorner também que o pai de Hakim narra sua chegada no Brasil, na segunda década do século XX. Essa história, entretanto, ouviremos da voz do próprio imigrante libanês, já que o fotógrafo a transcreveu num caderno, de acordo com o relato do amigo. Nesse caso, portanto, a dupla transmissão também ocorre, mas dessa vez por escrito, desde a primeira vez em que é comunicada.

 

Gostaríamos de chamar a atenção para algumas características de Dorner. Além de fotógrafo, ele é um colecionador, de fotos, desenhos e lembranças (já que anota as do amigo). Dorner também tinha um orquidário e agia como um repórter ou um etnógrafo, escrevendo sobre o comportamento dos amazonenses. E depois de abandonar o laboratório e o material de fotografia, irá trocá-los por outra coleção, a de livros raros, reunidos numa grande biblioteca. Desse modo, se a voz de nossa narradora é também a de uma missivista-escritora e a de Hakim, de um detetive, a de Dorner será a de um etnógrafo-fotógrafo-colecionador. Todos eles buscam a apreensão e a compreensão do passado e do presente que, de uma certa forma, também os envolve, principalmente Hakim e a narradora.

 

E a hipótese sobre o que pode ter levado Emir ao suicídio será levantada e formulada pelo narrador-detetive Hakim, quando esse se encarregar de puxar o próximo fio da história. Trata-se de uma possibilidade que nosso investigador levanta com base na leitura que fez das cartas guardadas por Emilie: a de que Emir havia se apaixonado no porto de Marselha, onde o navio que os trazia de Beirute para o Brasil fez uma escala, mas foi impedido de fugir com a amada ou trazê-la com ele porque Emilie aconselhou o irmão deles, Emílio, a procurar a polícia, que o embarcou à força no navio. A partir de então, Emir e Emilie se estranharam pelo resto da vida.

 

Mas deixemos esse relato do relato por aqui, já que não se trata de retransmitir, mais uma vez, as histórias de Emilie e de sua família. Como podemos perceber, o romance de Hatoum reúne diversos personagens exilados, que deixaram o seu país ou sua cidade natal por motivos diferentes. Na trama, eles se aproximam com a volta da nossa narradora a Manaus e com a morte de Emilie, que os leva a rememorar o passado que é o dela, mas também faz parte da vida de cada um deles. Ao rememorar essa vida, portanto, eles também estão recordando-se da sua própria. Hakim, por exemplo, ao lembrar como os empregados eram mal tratados na casa de sua infância, trabalhando sem receber e sem autorização para comer todas as guloseimas da casa, nos revela que esse foi um dos motivos que o levou a deixar Manaus. Assim, além de perscrutarmos o destino de Emilie, sondamos os episódios da vida dos outros personagens do romance, principalmente da narradora, que guarda tantos mistérios. Porém, mais do que isso, Hakim e a nossa narradora, ao se dedicarem a essa tarefa, também estão envolvidos nessa busca de sentido, marcada por uma impossibilidade.

 


Retorno a um local fora do mapa

 

No último capítulo do romance, a narradora nos conta um pouco da sua vida. Sabemos, através de sua carta, que ela passou um período internada numa “clínica de repouso”. Foi nessa época que redigiu um texto que não sabe definir o gênero, mas chama de “um relato”. Essa escrita tem um caráter desordenado semelhante ao da linguagem da loucura, uma lógica outra: ““(...) cada frase evocava um assunto diferente, uma imagem distinta da anterior, e numa única página tudo se mesclava: fragmentos das tuas cartas e do meu diário, a descrição da minha chegada a São Paulo, um sonho antigo resgatado pela memória (....) e a voz de uma mulher que nunca pronunciou meu nome. (...)””. [20]Essa voz, fica fácil deduzir, é a de sua mãe, a quem ela viu somente uma vez quando pequena.

 

O relato escrito na clínica acaba por ser destruído e vira uma colagem, na qual as palavras se mesclavam aos lenços nos quais ela havia bordado imagens abstratas. ““(...) O desenho acabado não representa nada, mas quem o observa com atenção pode associá-lo vagamente a um rosto informe. Sim, um rosto informe ou estilhaçado, talvez uma busca impossível neste desejo súbito de viajar para Manaus depois de uma longa ausência. (...)””. [21]

 

Desse modo, o retorno à cidade de sua infância constitui uma procura, impossível, por uma “identidade”. Por mais que nossa narradora se embrenhe nessa busca quando desvenda o passado de Emilie, jamais encontrará um momento, uma lembrança, que explique a ela mesma ou ao leitor seu destino, sua morte.

 

A escrita sobre esse retorno, e essa procura, farão com que nossa narradora se aventure por um espaço desterritorializado e fora do campo da representação; espaço similar àquele do desenho, citado no início do ensaio, ocupado por um navegante cujo rumo desconhecemos e sem horizonte dentro da margem do papel. ““(...) Pensava (ao olhar para a imensidão do rio que traga a floresta) num navegante perdido em seus meandros, remando em busca de um afluente que o conduzisse ao leito maior, ou ao vislumbre de algum porto. Senti-me como esse remador, sempre em movimento, mas perdido no movimento, aguilhoado pela tenacidade de querer escapar: movimento que conduz a outras águas ainda mais confusas, correndo por rumos incertos (...)”” [22], escreve ela.

 

A sua busca é atravessada por uma impossibilidade porque a viagem de retorno é interminável; não há um local de origem, um ponto no mapa, que possa dar a essa narradora uma identidade sólida, uma subjetividade estável. O seu exílio, portanto, possui um caráter radical, já que não existe um lugar que faça com que nossa narradora sinta-se plenamente em casa; que dê a sua vida um local próprio na ordem do universo, com um sentido correspondente e, portanto, uma identidade e uma voz dadas.

 

O exílio, desse modo, não significa somente uma distância em relação à terra natal, que desaparece com a simples volta ao país de origem. O imigrante pode também experimentar uma perda radical da pátria e do sentimento de pertencimento a um país, uma cultura, uma língua. E esse exilado que estranha o mundo onde mora e aquele de onde veio poderá notar com mais facilidade como as narrativas, as crenças, os hábitos e as identidades são construções. Mas ao mesmo tempo em que percebe isso, sentirá que sua voz, e aquela que reproduz dos outros, também o são.

 

Daí a dificuldade da escrita dessa narrativa, a impotência da nossa viajante diante da tarefa de construir tal relato. Nesse processo, ela se deparará com lacunas, excesso de dados e com o fato de que precisará se apropriar de outras vozes. Diferentemente do narrador tradicional que, como afirmou Benjamin, tem a dignidade de contar sua vida inteira, ela encontra um mundo e histórias fragmentadas, cujos sentidos não podem ser inteiramente preenchidos e compreendidos. Por mais que tenha conversado, se informado com outros personagens, o material que consegue reunir não lhe é suficiente, o universo que tenta construir não fecha, essência e vida não se unem, fatos dispersos continuam separados uns dos outros. A forma em que deverá escrever essa carta, portanto, só poderá ser a do romance, que constitui, mais do que todas as outras, “uma expressão do desabrigo transcendental”. [23]

 

Desse modo, por mais que Hatoum tenha se apropriado nesse livro da noção de narrador tradicional, do velho contador de histórias - e por isso mesmo -, torna-se evidente que essa forma de relato não poderá dar conta da problemática explorada na obra, com a sua busca pelo sentido da vida de personagens, com a sua narradora atravessada pelo questionamento de quem fala e seus imigrantes e migrantes, divididos entre línguas, culturas e diferentes locais.

 

Nesse contexto, nossa narradora, que não tem um lugar garantido no mundo e uma identidade estável, cuja escrita se dobra sobre si mesma, revelando que não constitui um espelho, uma representação do mundo, deverá construir uma história repleta de lacunas, abrindo mão da vontade de deixar estampado o contorno de um rosto inteiro nas folhas de papel. Continuaremos sem saber quem são sua mãe e seu pai, do mesmo modo que desconheceremos o destino de Samara Délia e quem foi o pai de sua filha; tudo isso só podemos imaginar. Não deixaremos, porém, de seguir a narrativa como quem procura encadear os fatos narrados, juntar elementos do passado e do presente e tentar entender os mistérios dessa narradora que, nesse sentido, se apresenta como a personagem principal do romance, aquela que nós leitores devemos desvendar, enquanto ela tenta descobrir o passado de Emilie para de lá retirar sua voz.

 

Para poder escrever sua carta, nossa narradora busca as lembranças de Emilie e debruça-se sobre outras vozes, tentando inventar a sua própria. As narrativas orais se tornam no livro, desse modo, uma dobra da escrita, originada de uma linguagem que se multiplica e é atravessada pelo questionamento sobre quem fala . Nesse contexto, o narrador tradicional, aquele que “não está de fato presente entre nós” [24], para permanecer no livro, precisa ser apropriado por um romancista.

 

Por isso, ao apontarmos o triplo caráter da nossa narradora, mencionamos que ela é também missivista e escritora. A sua carta se transforma, dessa forma, num romance, no qual a linguagem se dobra sobre si mesma e se verticaliza, mantendo similaridades com a linguagem da loucura, na qual os diferentes fatos relatados não precisam manter um encadeamento lógico e causal e na qual as lacunas permanecem visíveis. Essa constitui, portanto, a forma encontrada pela narradora para narrar um acontecimento aparentemente simples a seu irmão: o seu retorno a Manaus e a morte de Emilie.

 

Para revelar isso, ela precisará multiplicar sua voz e fazer com que seu relato se incline sobre sua própria construção e sobre a invenção de uma fala. Pois, o ponto de partida desse romance, aquele de onde ela retira sua voz, não está dado, constitui o murmúrio de alguém que habita um espaço fronteiriço, alguém que pertence e não pertence àquela casa, àquela família e a Manaus; ao mesmo tempo informada e perdida a respeito dos acontecimentos que se dispõe a narrar. Para contar esse retorno, ela precisa também contar o contar do retorno, transformando o narrar num romance, no qual a linguagem se verticaliza. Assim ela escreve, na conclusão da carta ao irmão, como fez para buscar e inventar esse passado: ““(...) Era como se eu tentasse sussurrar no teu ouvido a melodia de uma canção seqüestrada, e que, pouco a pouco, notas esparsas e frases sincopadas moldavam e modulavam a melodia perdida.”” [25]

 

1. HATOUM, M. Relato de um certo Oriente . São Paulo, Companhia das Letras, 1989. P. 71. Indicamos que o trecho citado está duas vezes entre aspas por já integrar, no romance, uma citação. Repetiremos esse procedimento outras vezes ao longo do ensaio, pois consideramos significativo o fato de a quase totalidade do texto do Relato se encontrar isolada por esse sinal de pontuação. E assim o leitor poderá identificar, em cada uma das citações do romance, aquelas que estão num capítulo do livro abrangido por aspas.

2. Op. Cit.

3. “ O narrador - Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” . In: Magia e técnica, arte e política Ensaios sobre literatura e história da cultura . São Paulo, Brasiliense, 1994. P. 198. Lembramos que o termo experiência deve ser remetido ao sentido de Erfahrung , em oposição à experiência vivida ( Erlebnis ). A modernidade, de acordo com Benjamin, seria marcada pelo enfraquecimento do primeiro tipo de experiência, pelo fim da tradição e pela redução da experiência ao espaço do privado, a Erlebnis vivida pelo indivíduo solitário, como são o leitor e o autor de romances. Cf. vocabulário elaborado por RAULET, G., em Walter Benjamin (1892-1940) . Ellipses Éditions, 2000.

4. “Reflexões sobre o exílio”. In: Reflexões sobre o exílio e outros ensaios . São Paulo, Companhia das Letras, 2003. P. 46.

5. A noção de exílio foi relacionada, de diferentes maneiras, aos conceitos de literatura moderna e contemporânea. Mas nos referimos aqui, especificamente, à Teoria do romance (Duas Cidades, Ed. 34, 2000), de Georg Lukács, para quem o romance constitui a forma da “ausência de uma pátria transcendental” e a Maurice Blanchot, que desenvolveu a idéia de que o autor se torna um estrangeiro ao escrever sua obra. Além disso, George Steiner, em ensaios produzidos nos anos 60 e publicados em Extraterritorial (Companhia das Letras, 1990), aponta para o fortalecimento da literatura de exílio, na qual o escritor é um desabrigado, e não o gênio romântico. Steiner também destacou nesses textos o surgimento do que ele denominou de “pluralismo lingüístico ou ´desabrigo´”, cuja literatura seria representada por Nabokov, Borges e Beckett, o “mestre das duas línguas”.

6. Orientalismo - O Oriente como invenção do Ocidente . São Paulo, Companhia das Letras, 1990. P. 14.

7. Idem. P. 37.

8. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.

9.Relato de um certo Oriente . Op. Cit. P. 10.

10. Idem. P. 11

11.Ibidem . P. 11.

12. “O narrador”. Op. Cit. P. 197.

13. Idem. P. 205

14.Relato de um certo Oriente . Op. Cit. P. 165-166.

15. “O narrador”. Op. Cit. P. 211.

16. Op. Cit.

17. Ao abordar em O narrador a importância do tempo e da busca pelo sentido da vida no romance, Benjamin também citou e trabalhou com a obra de Lukács.

18.Relato de um certo Oriente . Op. Cit. P. 52.

19. Idem. P. 53.

20. Ibidem. P. 163.

21. Ibidem. P. 163.

22. Ibidem. P. 165.

23. LUKÁCS, G. A teoria do romance . Op. cit. P. 38.

24.“O narrador”. Op. Cit. P. 197.

25. Relato de um certo Oriente . Op. Cit. P. 166.

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