PEREGRINAÇÃO NA MATA AMAZÔNICA:

Aspectos locais e metáfora do Brasil.

Camillo Cavalcanti (UFRJ/CAPES/UFF)

 

1 - O diálogo entre o nativo e o cearense: o que representa?

 

A diversidade cultural de um país imenso como o Brasil é acentuada não só pelo que se tem de contraste entre as regiões, mas também (e principalmente) por uma história oligárquica de 500 anos semeando a desigualdade social. Como muitas ex-colônias americanas, o Brasil precisava optar entre a permanência de centralizações político-econômicas ou arriscar um planejamento de integração identitária. Sabemos que se escolheu a primeira alternativa, e os recantos do Brasil, principalmente a longínqua Amazônia, quedaram em esquecimento e sofreram um forte abandono.

A ausência do governo nesta região teve pelo menos duas conseqüências: a) a falta de urbanização; e b) a quase inexpressiva densidade demográfica, principalmente dos séculos de colonialismo. A partir de meados do século XX, houve algum movimento migratório para a região amazônica. A comprovação desse quadro se encontra nas primeiras linhas de “Areia ¾ Gulosa”, cuja interpretação abre duas perspectivas de análise: a) uma que problematiza a realidade da Amazônia; e b) outra que metaforiza as cisões geopolíticas e sociais do Brasil:

¾ Não sou daqui não. Sou cearense, nhor sim. Nasci no Catolé do Rocha, no Rio Grande do Norte. E vosmecê, que mal pergunto?

¾ Do baixo Amazonas. Distrito de Óbidos.

¾ Tá bom. Então, já conhece estes mundos?

¾ Uai! Viver a gente vive aqui a vida inteira e mais quinze dias, mas conhecer este mundão de terra, não conhece não!

 

Logo no começo, o conto mostra a diferença entre o homem local e o migrante, mas os aproxima, em seguida, ao revelar que tanto um quanto outro não conhecem o "mundão". De que mundão está-se falando: Amazônia ou Brasil? Não seriam os dois? A ignorância do migrante a respeito de sua naturalidade cívica, num plano de análise mais imediato, traduz uma ligação entre Ceará e Rio Grande do Norte. Num plano mais reflexivo, demonstra a profunda consciência nacional do autor: Ceará e Rio Grande do Norte integram a região nordeste, portanto "cearense" abrange o contingente de migrantes vindos do nordeste para a Amazônia. O termo "cearense" mostra a diferença entre o habitante local e os migrantes nordestinos, apresentando o signo da diferença.

 

2 - Elementos populares na construção da habitação e da canoa.

 

O tipo de habitação da classe pobre revela um aproveitamento da flora local, harmonizando-se dessa forma com a natureza:

Josino ficou mesmo na beira do igarapé, perto do cacaual. Cortou pau na mata e plantou seu rancho na barraca peluda, encostado às sapopemas tentaculares de uma musculosa sumaumeira de fronde crespa. Casa simplíssima: dois esteios enforquilhados; na forquilha, a cumeeira, a dez palmos do chão; os caibros, caindo oblíquos da cumeeira ao solo, diretamente; palhas e palmas trançadas e amarradas num tecido apertado, para tapar a chuva e o vento. Depois, pedaços, toros finos de madeira, em forma de esteira, cobrem o chão, e são leito e assoalho. [...]

 

O Natural-popular, neste caso, emana do homem em seus empreendimentos básicos, ligados principalmente com a natureza, atuando nele como um catalisador da simplicidade, da pureza e das características mais "ingênuas", livres e fluentes, "depositárias de um saber intuitivo... [que] refletiria... a integração sem fronteiras da humanidade primitiva" (MATOS: 1992, p. 315).

As diferentes moradias em “Areia ¾ Gulosa” traduzem a formação de extratos populares. A população nativa se concentra na beira do igarapé , que significa margem do rio, enquanto os "cearenses" vão encontrar espaço mais para dentro da mata:

Varando a mataria braba, Antônio Cardoso foi trepar os esteios do seu rancho lá em riba, num teso, longe do igarapé.

 

A construção da canoa também é um empreendimento do homem a partir de elementos exclusivamente naturais e se apresenta como um minucioso ritual, em que a tradição, as crendices e superstições aparecem inerentes ao empreendimento, incônscios ao nativo, mas a um estudo sobre o Popular, revelam-se resultantes de um acervo folclórico da região profundamente identificado com a herança cultural indígena, privilégio dos nativos:

Restava fazer a montaria. Trabalho paciente de longos dias vagarosos e intermináveis.

Cortando um tronco na mata ¾ uma itaúba possante que ele não abarcava com os dois braços ¾ levou três dias.

Teve o cuidado supersticioso de fazer o serviço antes da lua minguante e não deixou jamais que Florência o assistisse, porque ele ela estava grávida.

¾ Mulher prenha fica saru. Quando ela aprecia o corte da canoa, o casco racha na certa.

No preparo do casco, repetiu empiricamente a lição do pai, que era índio: usou sempre fogo para desgastar a madeira.

 

Interessante notar que a nau para os nativos é chamada montaria . Ao fim do ritual de construção, Josino diz que vai pedir ao pajé para benzer a canoa "e livrar a gente de mandigagem". Os aspectos populares estão diretamente ligados à simplicidade de empreendimentos "ingênuos". O homem, nesse caso, age tão natural e espontâneo que nem passa por alto a indagação desses aspectos míticos: por que o pajé livra da mendicância não interessa ao nativo. Tal recepção desses elementos folclóricos demonstra que o mundo é e deve ser conhecido dessa forma, respeitando profundamente a herança cultural, não do que se impõe às classes populares e sim a cultura produzida por essas classes (GINZBURG; 1989, p. 18).

 

3 - A diversidade entre a beira do igarapé e outras localidades.

 

Os aspectos locais, como dissemos sobre as habitações, contribuem para uma representação da extratificação social. A população ribeirinha que serve de mão-de-obra aos grandes fazendeiros é o ponto sobre o qual gira o eixo temático que investiga o material do popular naquela comunidade. A distinção entre local e migrante ganha relevância para uma hierarquização dentre os próprios homens da classe pobre. Até mesmo o maranhense (que pode perfeitamente nascer na Amazônia) sofre discriminação:

Preferia pescar, que era mais fácil. Caçar dava muito trabalho. Tirar seringa arrasava um homem. Tratar de gado, só pra marajoara. E fazer roçado era serviço pra cearense. Não dava pra isso, não.

 

Os serviços eleitos como melhores pelo nativo são a pesca e a navegação, profundamente relacionados com os aspectos naturais da localidade e a exclusividade de saber construir naus. As atividades que não se relacionam diretamente com a biodiversidade local não servem aos nativos, e os trabalhadores desses serviços são discriminados. Esse estereótipo confunde-se com a diferenciação social entre local e migrante, já que serão os migrantes os que se ocuparão dos trabalhos estigmatizados.

O mercador Bichara sabia fazer bons negócios: era a personagem que explorava a miséria. Sua dicção trocava fonemas homorgânicos: é provável que fosse estrangeiro, pois já que era psicólogo ou ao menos mercador, teria recursos para tratar desse problema. A informação sobre a formação profissional do mercador certamente não foi dada pelo imaginário popular, porque não domina esse tipo de conhecimento. De origem e morada desconhecida, parece representar os interesses capitalistas, quiçá até de outros países.

O capataz Marguião trabalha como representante mais direto do grande fazendeiro. Não se insere nem nas altas camadas nem nas de baixa renda como Josino e Cardoso. Desse modo, parece estar num extrato social intermediário, não menos interessado em explorar Josino do que o mercador Bichara. É uma referência muito nítida à classe média, que se deixa vencer pela preocupação de ascensão econômica, abandonando o sentido de crescimento nacional quando lhe convém.

O grande fazendeiro, coronel Zé Júlio, apenas se interessa pelo pagamento do dízimo e pelo voto dos trabalhadores em sua candidatura. É o único personagem envolvido com a política; ele estabelece uma profunda relação com o coronelismo e o comportamento da aristocracia e das altas camadas acerca da situação sócio-econômica dos subalternos e do povo como um todo.

O Nacional-popular, associado "ao processo de afirmação e transformação dos Estados nacionais" (MATOS: 1992, p. 312), emerge, portanto, de um paralelo entre o comportamento social dos habitantes da região e sua funcionalidade enquanto microcosmo da nação, "coletividade corpulenta" (MATOS: 1992; p. 312). Nesse sentido, o projeto de Peregrino não é idealizar o Brasil e sim, representar a realidade regional, que, num segundo plano de análise, ascende ao nacional.

 

4 - O mito do azar ¾ a tentação e a infelicidade na traição: a caracterização do feminino.

 

Florência, esposa de Josino, gostava das novidades que a canoa Monte Líbano de Seu Bichara trazia, especialmente vestidos e adereços, agitando os vestidos, oriçada com as mercadorias. Na festa do batizado de seu filho, Florência dançava uma polca com Cardoso e o capataz Mergulhão. Como era muito sapeca, apertou-os contra os peitos, deixando-os cheios de vergonha.

Com as fortes cheias, o filho morre; Florência foge de casa. Cardoso aconselha Josino a procurá-la na casa de Marguião. Espantado, Josino acredita que Florência tinha ido com o mercador da barca. Cardoso estava com a razão. Entretanto, enquanto Josino havia pegado montaria para a casa de Marguião, eis que Cardoso se depara com Florência por entre as matas, insinuando-se para ele e se queixando dos desamores de Marguião. Heroicamente, Cardoso resiste e pronuncia a frase que deu origem ao nome do conto:

¾ Me deixe, Sinhá Florência! Você o que é, é uma areia-gulosa de beira de aguapé: não respeita cara não!

 

Florência é a única mulher do conto; concentra, portanto, toda a representação sobre o feminino. Suas atitudes parecem ser calcadas na sobrevivência. Entretanto, seu comportamento é encoberto por um enigma: será que suas atitudes foram tomadas pela necessidade ou foram meticulosamente armadas para uma ascensão econômica?

Essa dualidade de sentido assustou Cardoso, que viu o perigo da traição e manteve um código de honra de respeito e dignidade com Josino. Paira sobre o nordestino uma atmosfera de medo e receio pela areia-gulosa, mito da região em que as mulheres muito fogosas azaravam tanto a vida de um homem que propiciavam unicamente a desgraça moral em primeiro lugar, social em segundo e econômica em terceiro. O mito contribui para a formação moral do homem, uma vez que transparece a infelicidade na traição: "a areia-gulosa não respeita cara não!". Na verdade, Cardoso foge de Florência não só pelo pacto social com Josino, mas também pelo medo das desgraças que a areia-gulosa traz. Antes de vê-la, pensa ouvir o Curupira, que vive nas matas, atentando as pessoas. Afinal de contas, a mulher, no conto de Peregrino, é fonte de superstições populares que atuam no imaginário masculino com um sentido negativo de desgraça e azar: as mulheres estão quando em vez associadas a esse material folclórico. As crendices populares não raro resgatam divindades indígenas, protetoras das leis naturais e perseguidoras dos destruidores da natureza (LONDRES; 1994, p. 409). Desse tipo de leitura, talvez, resulte ao mesmo tempo o machismo daquele local e a ligação mulher ¾ natureza. E por esse ângulo, tudo leva a crer que Florência haveria mentido sobre Marguião e era mesmo uma sapeca, uma areia-gulosa.

 

5 - Personagens e localidades ¾ sua funcionalidade: um sentido crítico sobre o Brasil

 

Em Peregrino Júnior, visualizamos o apartheid econômico do Brasil: os donos da fazenda não se fazem presentes dentre a população pobre, ou seja, a segregação existe verticalmente. Já horizontalmente, encontramos extratos que praticamente se sobrepõem: a população do igarapé , das matas mais densas e mercadores ambulantes (a princípio, sem residência fixa). O migrante do conto é nordestino, representando a grande parcela da população de lá, que foge das secas e da fome. Por outro lado, os nativos acreditam ter uma condição financeira melhor que os "cearenses", fazendo da beira do igarapé o local privilegiado. Com isso, o autor mostra que uma das barreiras para a formação de uma identidade cultural-nacional é exatamente esse estereótipo étnico, podendo ser lido como localista, que marca algumas fronteiras (barreiras) identitárias; os materiais culturais não precisam ser étnicos para representarem o espírito brasileiro (ANDRADE: 1962, p. 16). Florência, a mulher da localidade, demonstra a ânsia ou a necessidade de melhorar as condições de vida. Nas atitudes da única mulher do conto, o autor indica que as preocupações com o dinheiro e a ascensão social vêm corroendo os valores da sociedade.

Tanto o mercador Bichara quanto o capataz Marguião vivem da exploração das camadas subalternas, com uma diferença de grau: o primeiro como necessário à sobrevivência; o segundo como conveniente. Ambos nos fazem refletir sobre a contribuição dessas camadas (burguesia e classe média) para a formação de uma identidade nacional e uma melhor qualidade de vida no país. Não menos explorador é o grande fazendeiro (a aristocracia) que ao menos se preocupa como estão vivendo a população de baixa renda, depois da grande cheia, mas faz questão do dízimo sobre a produção dos subalternos.

Josino, mesmo ganhando um quinto dos bezerros que cuidava para Marguião, e Cardoso, mesmo construindo um patrimônio pelo esforço do trabalho, não conseguem manter os bens, nem muito menos melhorar de vida, por causa da cheia indômita, da qual só escapam a grande fazenda e o gado dos ricos fazendeiros. Que tipo de cheia é essa, que arrasa a prosperidade dos mais pobres? Onde ocorre essa cheia que impede o crescimento econômico da população? Peregrino responde: é cheia de "águas [que] acabaram de afogar todos os tesos da redondeza" cujos "vapores que desciam eram portadores invariáveis de notícias alarmantes"; ocorre na Amazônia, no Brasil.

 

 

 

BIBLIOGRAFIA:

CHAUÍ, Marilena. Seminários ¾ o nacional e o popular na cultura brasileira . São Paulo: Brasiliense, 1983.

 

MATOS, Cláudia Neiva de. Popular . in: JOBIM, José Luiz (org.). Palavras da crítica . Rio de Janeiro: Imago, 1991.

 

MOURALIS, Bernard. A Herança . in: ---. As contraliteraturas . Coimbra: Almedina, 1982

 

CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil . Belo Horizonte: Itatiaia/S. Paulo: Edusp, 1984.

 

LONDRES, Maria José. Literatura popular . in: PIZARRO, Ana (org.). América Latina: palavra, literatura e cultura . S. Paulo: Memorial/Campinas: Unicamp, 1994. (v. 2)

 

BOLLÈME, Genevière. Da popularidade do povo . in: ---. O povo por escrito . S. Paulo: M. Fontes, 1986.

 

LOBO, Luiza. Sobre poesia ingênua e poesia sentimental . in: ---. Teorias poéticas do Romantismo . Porto Alegre: Mercado Aberto/Rio: UFRJ, 1987.

 

GUINZBURG, Carlo. Prefácio à edição italiana . in: ---. O queijo e os vermes; o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição . S. Paulo: Cia. das Letras, 1989.

 

ANDRADE, Mário. Música brasileira . in: ---. Ensaio sobre a música brasileira . S. Paulo: M. Fontes, 1962. (obras completas VI).

 

ROMERO, Sílvio. Estudos sobre poesia popular do Brasil . Petrópolis: Vozes/Governo de SE, 1977.

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