FERNANDO PESSOA: A DECISÃO SOBRE O SENTIDO DO SER

 

Antônio Máximo Ferraz *

 

No presente ensaio procuramos abordar a dimensão crítica da obra pessoana em relação à tradição metafísica ocidental. Esta se instituiu a partir de uma decisão sobre o sentido do ser, que veio a se converter em tradição. Cada máscara que compõe a obra de Fernando Pessoa igualmente assume sua própria decisão sobre a questão do sentido do ser. Assim o fazendo, elas terminam por teatralizar a tradição metafísica, em perceptível movimento de desconstrução.

 

Partimos da hipótese de que para adentrar nas densas questões da obra pessoana há que se considerar que tanto o ortônimo quanto os heterônimos devem ser compreendidos como personae (etimologicamente, “máscaras”), as quais não exprimem uma suposta subjetividade ou a opinião do autor Fernando Pessoa. Assim percebida a poética da despersonalização, verifica-se que tais máscaras não efetuam somente a desconstrução da subjetividade em seu sentido moderno (cartesiano). Vistas em conjunto, como personagens que fenomenologicamente se apresentam em um teatro ( théatron , “máquina de ver”), elas colocam em cena a tradição metafísica ocidental e questionam o essencialismo que a caracteriza, ancorado em um fundamento substancial ( hypokéimenon / subjectum ) que serve de base para o ser, o real e a verdade. Ultrapassando este essencialismo, a obra pessoana ganha a dimensão de uma reflexão ontológica – isto é, sobre o sentido do ser –, ao cumprir a trágica descida ao não-ser e ao nada. Estes devem ser compreendidos como aberturas plenas de possibilidades de realização de identidades e diferenças, as quais se consumam nas diversas máscaras poéticas, em seus desempenhos teatrais específicos. Para que se compreenda em que sentido a questão do ser é teatralizada na obra pessoana, é preciso acompanhar a decisão sobre o sentido do ser empreendida pela tradição metafísica.

 

1) A tradição metafísica ou a decisão sobre o sentido do ser

 

Nos primórdios da Filosofia Ocidental, os “pensadores originários”, também conhecidos como fisiólogos, focaram sua reflexão ontológica sobre a phýsis . [1]Phýsis viria a ser traduzida para o mundo romano por natura . Na contemporaneidade, em que prevalece a construção técnico-científica do real, “natureza” já não evoca o mesmo que o termo grego. Esta costuma ser vista como um conjunto de relações de causa e efeito do mundo físico. A reflexão dos fisiólogos, entretanto, se operava em uma outra dimensão: a phýsis era encarada como a manifestação de uma arché (“origem”). Em seu constante devir – surgimento, transformação e desaparecimento das coisas –, a phýsis se revela como tal, mas oculta a sua origem, precisamente em função de sua permanente transformação. Justamente por se mostrar e se ocultar, a phýsis veio a possibilitar a questão central da ontologia: “qual o ser dos entes?” (“ tí tó ón; ”). Tal questão, para os fisiólogos, estava “em aberto”, porque não estabeleceram um fundamento substancial permanente para o ser dos entes. Como nos diz Heráclito: “ phýsis krýptesthai philéi ” (DIELS, frag. 123) [2].

 

O efervescente ágon teórico da filosofia grega daqueles tempos culminará, a partir dos antropólogos (os filósofos a partir de Sócrates), em uma radical mudança de postura ontológica. Com Platão e Aristóteles, haverá uma decisão sobre o sentido do ser . Decisão em seu pleno significado etimológico, proveniente do verbo latino decidere (“cortar”), formado da partícula “- cisio ”, esta derivada do verbo caedere (“cortar”, “cindir”, “talhar). Este “corte” ou “de-cisão” produzirão uma concepção substantiva do ser, que afasta e exclui a noção de não-ser. O ser passará a ser visto como substância, também entendida em seu sentido etimológico: substare , formado das partículas “ sub ” (“embaixo”) e “ sta ” (“estar firmemente de pé, permanecer fixo, estável, imóvel”). [3] Concebido substancialmente, o ser se torna o fundamento que subjaz, firme, imóvel, estável, por debaixo da phýsis , por debaixo da transformação das coisas do mundo fenomênico.

 

Como decorrência desta decisão sobre o sentido do ser, a phýsis , em sua constante deveniência, em seu constante jogo entre ser e não-ser, sofrerá uma mudança de enfoque. Platão a separará ( khorismós , “ação de separar, cortar”) em dois mundos: o das idéias, compreendido como verdadeiro, porque em seu entender seria permanente, e o sensível, entendido como falso, porque para ele seria transitório. Aristóteles, embora fuja da duplicação de dois mundos, também estabelece um fundamento permanente e imóvel para o ser dos entes. Este é nomeado como to hypokéimenon (“o que está deitado por debaixo, o que serve de fundamento imutável”). O termo será traduzido para o latim por subjectum (“o que está lançado ou posto por debaixo”). To hypokeimenon se contraporá ao symbebekós (“características não necessariamente ligadas às coisas, qualidades não-essenciais”). Este será traduzido para o mundo latino por acidente ( accidens ).

 

Tanto a essência ( ousía ) platônica, entendida como idéa , quanto o hypokéimenon aristotélico correspondem à identificação do ser com um subjectum (“o que está fixamente lançado por debaixo”). Assim entendido, o ser é concebido como um fundamento permanente, eterno e imóvel, que reduz o não-ser ao terreno da aparência, da falsidade ou do mero acidente ( accidens ). Esta interpretação do ser desconsidera a finitude radical dos entes, por excluir de seu horizonte o não-ser e o nada.

 

Na passagem de registro filosófico dos fisiólogos para os antropólogos, haverá também uma mudança no sentido da verdade: para os primeiros, a verdade era tida como alétheia (termo composto da partícula negativa ou privativa alfa e de Léthe , a deusa que personificava o esquecimento e o rio que envolvia o reino dos mortos). Alétheia significava, portanto, “des-ocultamento”, “des-velamento” ou “o mostrar que encobre”. Já a partir de Platão, com o método dialético, mas mais precisamente a partir de Aristóteles, a verdade se tornará orthótes (“conhecimento preciso, exato”). Com base na aludida decisão sobre o sentido do ser, se assistirá à conversão do lógos em lógica – esta entendida como as regras de um pensar “correto, preciso e mensurável”. Lógos se transformará em ratio (etimologicamente, “medida”). A partir de então, a via considerada adequada para se chegar à verdade seria o exercício de uma razão metodologicamente municiada.

 

O processo de transformação do ser em subjectum é o que caracterizará a tradição metafísica. Ela é “ metafísica ” porque , como diz a expressão que lhe deu origem ( tà metà tà physiká ), se orienta para o que está “por detrás”, “além” ou “transcende” ( metá ) a phýsis : ela busca um princípio universal , um fundamento ontológico permanente e imutável, e com isso nega a phýsis , porque desse fundamento não participa sua deveniência e transformação. [4] Por outro lado, ela é uma “ tradição ocidental ” porque , como nos revela a etimologia da palavra , oriunda do latim tradis (“dar, entregar , transmitir”), ela nos foi entregue e transmitida por aqueles pensadores. Como tal , a cada nova quadra da sucessão histórica do Ocidente , ela já nos está confiada e destinada: a resposta que inicialmente Platão deu à questão “ qual o ser dos entes?”, encontrando um fundamento permanente e imóvel para além da phýsis , é a origem dessa tradição .

 

A tradição metafísica é, portanto, a história do subjectum , daquilo que está lançado ou posto por debaixo, para além ou para fora da phýsis , e que seria, portanto, seu fundamento permanente, não submetido à deveniência. Este subjectum assumiu, ao longo da História do Ocidente, diferentes configurações. Em todas elas, entretanto, o não-ser e a finitude se acham excluídos do fundamento tomado por substancial: em Platão, o fundamento é a idea e a deveniência do mundo sensível é aparência e falsidade. Em Aristóteles, o fundamento é o “primeiro motor imóvel”, causa primeira do movimento e transformação de todos os entes da phýsis : os variados atributos concretos das coisas são meros accidens . No medievo, o fundamento passa a ser o lógos divino, encarado à maneira judaico-cristã. Deus é considerado a causa primeira, eterna e permanente que se encontra por detrás da deveniência da natureza. No âmbito desta teologia supranaturalis , o “transitório mundo sensível” será moralizado, visto como mau, por distanciar o homem de sua verdadeira missão na terra: a ascese espiritual rumo à eternidade do divino. Finalmente, na Modernidade, o fundamento passará a ser o sujeito cartesiano. Este, a partir do cogito , projeta o mundo com base na metodologia prévia ancorada nas certezas da subjetividade, as quais darão esteio ao discurso científico que viria a redundar na construção técnico-científica do real. Verifica-se, assim, uma linha de continuidade e uma assimilação entre o sujeito, modernamente concebido, e o subjectum que dá origem e perpassa a tradição metafísica desde seus primórdios. Uma característica primordial desta tradição é o estabelecimento de uma identidade abstrata entre os entes da phýsis , rasurando suas diferenças concretas.

 

De fato, a tradição metafísica, em um arco que vai dos antropólogos até a modernidade, se escora na noção de um fundamento situado “além” da phýsis para o ser dos entes – fundamento este que possui um caráter de substancialidade. Por isso tal tradição é a história da substância, ou do sujeito. Sujeito não considerado apenas em sua acepção moderna, a partir de Descartes, mas como substância que exclui de seu horizonte o não-ser e o nada. A meditação dos “pensadores originários”, ao contrário, uma vez que não instituíram um fundamento metafísico que da phýsis excluísse o não-ser, possui uma dimensão trágica. Ela se abre para o vazio ou para o não-ser como constitutivos ontológicos que tornam possível a construção da verdade e da realidade . O trágico não é, assim , uma forma literária , nem mesmo um evento funesto ou catastrófico , como se costuma entender , mas um dado ontológico que envolve tudo o que existe. O trágico é antes de tudo uma questão, e jamais se deixa aprisionar em um conceito ou uma definição. Ele é a experiência radical , a experiência do não-ser. A tradição metafísica , ao contrário , silenciou a questão do trágico , exatamente por ter estabelecido uma fundamentação ontológica excludente do não-ser.

 

O que caracteriza esta tradição, até que os movimentos filosóficos desconstrucionistas viessem a pô-la em xeque, é, nos dizeres de Heidegger, uma “entificação do ser”: o ser deixou de ser uma questão que convida ao pensamento, como se deu nos primórdios da ontologia, para se tornar uma resposta entitativa. Apreendido como ente substancial, o ser se desloca do questionamento no plano ontológico para se converter em uma resposta no plano ôntico. Ao excluir de seu horizonte o não-ser e o nada, a tradição metafísica se recusa a pensar e admitir a finitude radical de todos os entes. [5] Por isso, o subjectum que dá fisionomia à esta tradição conduz a uma postura nitidamente antitrágica, que procura expurgar da ontologia a finitude, o não-ser e o nada. A paidéia filosófica metafísica se contrapõe, neste sentido, à paidéia poética. Esta, já no tempo dos tragediógrafos do mundo helênico, meditou, através da configuração de imagens-questões, sobre a finitude radical dos entes.

 

•  A teatralização da metafísica ou a decisão sobre o sentido do ser na obra de Fernando Pessoa

 

Ora, Fernando Pessoa, no âmbito da paidéia poética, constitui um grande pensador do não-ser, do nada , da finitude. Só que o faz não discursivamente, mas através de imagens portadoras de questões que se doam ao leitor em convite ao diálogo.

 

Partindo do pressuposto de que tanto o ortônimo quanto os heterônimos devem ser compreendidos como máscaras, as quais não exprimem uma suposta subjetividade ou opinião do autor, ao leitor oferecem-se caminhos interpretativos que contrariam a tradição mimética nos domínios da arte.

 

Com efeito, a arte em geral costuma ser encarada – e isto se pode considerar um verdadeiro lugar-comum – como expressão da subjetividade do artista. Quando se trata de poesia, ela é comumente interpretada como expressão da subjetividade do autor. Tal forma de compreender a arte se enquadra na assim chamada teoria expressiva, cujo maior expoente é Benedetto Croce. Os que assim cogitam sobre a arte desconhecem que suas convicções deitam raízes na Ontologia Antiga, mais precisamente na concepção do ser empreendida por Platão.

 

De fato, a teoria expressiva é tributária da tradição mimética, derivada dos ensinamentos platônicos. Como sabido, o filósofo, na República , considera o mundo sensível uma cópia do ser, o topos uranos , entendido como a Idéia metafísica que se confundiria com a Beleza e o Bem.

 

Desta concepção do ser decorre a posição de Platão sobre o fenômeno artístico: a arte seria a cópia do mundo sensível, e este, por sua vez, cópia das idéias ( eidos , o aspecto ideal das coisas). Por este motivo, Platão sustenta que a arte estaria três degraus abaixo do ser.

 

A teoria expressiva em arte é um desdobramento teórico-literário da tradição mimética: se a primeira encara a arte como expressão de um sujeito, e a segunda como cópia do mundo sensível – reflexo pálido e imperfeito do mundo das idéias –, o fato é que em ambos os casos a arte é concebida como cópia de uma substância previamente existente. Seja ela a idéia platônica ou a subjetividade cartesiana. Como visto, a teoria expressiva, no âmbito da Teoria da Literatura, é tributária da tradição mimética. E esta, por sua vez, inteiramente caudatária da tradição metafísica...

 

Superando a tradição mimética, assim como a teoria expressiva dela derivada, o desempenho das máscaras pessoanas assume ares de reflexão ontológica, isto é, sobre o sentido do ser. Sua obra retoma a meditação sobre o nada e o não-ser através de máscaras que, como tais, são vazias no interior. Colocando em questão a noção de subjectum , elas realizam a teatralização da tradição metafísica.

 

Com efeito, cada máscara pessoana assume uma diversa decisão sobre o sentido do ser . Em meio às inumeráveis personae de sua obra (quase trinta ao longo de todos os seus escritos, algumas menos individualizadas – estas geralmente designadas como “semi-heterônimos”), detenhamo-nos brevemente sobre algumas máscaras que, uma vez confrontadas, trazem à luz uma rica dinâmica de criação de identidades e de diferenças face à questão do sentido do ser.

 

Alberto Caeiro é o poeta que tenta retornar à phýsis à maneira dos fisiólogos, tais como Heráclito e Parmênides, antes de que se houvesse estabelecido um fundamento substancial anterior e fora ( metá ) da phýsis . A metafísica, para ele, seria, a rigor, como o “ peri phýseos   ” parmenídico – ou seja : estar “ entre ” ou “ em meio ” às coisas. Caeiro procura se desvencilhar do arsenal conceitual subjetivista advindo da tradição metafísica. Ricardo Reis, através de uma poética clássica inspirada em Horácio, medita sobre a existência do homem entre o fatum e os deuses, enfrentando a deveniência das coisas com uma ataraxia estóica. Álvaro de Campos é o poeta situado nas inquietudes do mundo moderno, e deixa transparecer o desespero de se encontrar imerso na era da construção técnico-científica do real que se originou do cumprimento da tradição metafísica. Fernando Pessoa, na obra Cancioneiro , utiliza uma poética de ritmos populares para cantar a saudade, a melancolia e o sentimento de perda face ao tempo que tudo arrebata. No livro Mensagem , o mesmo Fernando Pessoa, agora representando o papel de uma outra persona , propõe a areté (virtude) do herói trágico como meio de enfrentar o devir das coisas. Bernardo Soares, no Livro do Desassossego , se acha mergulhado no niilismo e na abulia por não conseguir realizar a existência como um projeto da experiência. Murado na construção metafísica do real, ele escapa, então, para um mundo de sonho grandioso e desesperado.

 

Face às diferentes decisões sobre o sentido do ser assumidas por cada máscara, a distinção de base puramente biográfica entre heterônimos e ortônimo – os primeiros com biografias ditas “fictas”, e o segundo , Pessoa “ ele mesmo ”, com biografia dita “ real ” – já não tem sustentação. “Real” vem de res , que queria dizer coisa. O homem está desde sempre lançado entre as coisas, a elas conferindo sentido. Esta é, aliás, a acepção mais originária de metafísica: a construção de sentido que o homem opera dialogalmente, por já se achar desde sempre, na facticidade de sua existência, entre as coisas. E este operar de sentido também já é desde sempre “ficto”, no sentido de fingere , isto é, “plasmar”, “moldar”, como nos ensina a etimologia.

 

Tendo-se em conta a insuficiência do senso comum na distinção entre real e ficto, percebe-se que os termos “ortônimo” e “heterônimos” assumem contornos puramente subjetivistas quando abordados no âmbito do maniqueísmo “verdadeiro” versus “falso”: os heterônimos seriam mero fingimento , no sentido de mentira que encobriria o “ verdadeiro ” “ eu ” pessoano; o ortônimo seria, este sim , o “ sujeito ” Fernando Pessoa , o que equivale dizer: o “verdadeiro”, o “autêntico”, o “real”. A distinção entre ortonímia e heteronímia, que, como sabe, foi feita pelo próprio autor –, não autoriza, entretanto, que se trate a primeira como expressão de um suposto sujeito chamado Fernando Pessoa, e a segunda como mera ficção, no sentido de mentira ou falsidade. Como já tivemos a oportunidade de apontar em artigo anterior, a crítica ouve de bom grado as palavras de Pessoa quando diz que, nos heterônimos, as idéias, os sentimentos e o estilo diferem dos dele. [6] Mas fazem ouvido de mercador – é claro que para não pôr em risco seu arsenal metodológico subjetivista – para o principal que por ele foi dito, e que engloba toda sua obra, tanto o ortônimo quanto os heterônimos: que se considerava “um poeta dramático”, e que punha, em tudo quanto escrevia – isto é, não somente nos heterônimos, mas também no ortônimo –, “a exaltação íntima do poeta e a despersonalização do dramaturgo”. Em que pese o subjetivismo ainda reinante na crítica literária , frise-se que o que cabe ao intérprete da obra pessoana – intérprete realmente disposto, em palavras do próprio Pessoa, a “voar outro”, – é dialogar com as questões que cada personagem poética e que a obra como um todo suscitam.

 

Conclusão

 

Abandonada, assim, a oposição comumente feita pelos críticos da obra pessoana entre um verdadeiro Fernando Pessoa (o ortônimo) e os heterônimos – estes habitualmente vistos como simples disfarces da subjetividade do autor –, oferece-se ao intérprete a possibilidade de penetrar na dimensão ontológica de sua obra. Cada máscara assume uma diversa decisão sobre o sentido do ser . Mas “decisão”, aqui, já não há de ser entendida como “cisão” ou “corte”, tal qual se passa, como expusemos acima, no âmbito da tradição metafísica. A decisão que se acha presente em sua obra é a de retomar a questão sobre o sentido do ser, mediante o resgate da meditação sobre o nada e a finitude radical das coisas. Pessoa o faz através do desempenho teatral de máscaras, modeladas a partir do nada subjacente a todos os entes – aí compreendido o próprio homem. O célebre verso “O poeta é um fingidor” quer dizer exatamente isto: o poeta é aquele que modela ( fingere , “modelar”) não seus sentimentos, mas máscaras ou personagens teatrais, dando origem a alteridades que, através da poética da despersonalização, desconstroem não só o sujeito moderno, mas o subjectum da tradição metafísica.

 

Como visto, a obra pessoana desce às raízes da Filosofia ocidental. Para se compreendê-la em toda a sua envergadura, há que se perceber o diálogo que ela empreende com os primórdios do pensamento ontológico. Muito mais do que moderno – mera classificação periodológica que encerra a poesia da existência em estantes classificatórias – Pessoa é arcaico, no sentido de se debruçar sobre a arché , isto é, sobre o sentido do ser, questionamento que obviamente não vem de ontem. Pessoa pensa “sempre o mesmo acerca do mesmo”. Sua obra dialoga muito de perto com pensadores que estão nas primícias da ontologia. Alberto Caeiro, e não ao acaso, a exemplo de Parmênides, também escreveu seu “ Peri Phýseos ” (“Sobre a natureza”): o grandioso poema “O Guardador de Rebanhos”.

 

Caeiro possui especial relevância no conjunto das máscaras pessoanas, pois os demais poetas de sua obra o consideram expressamente como “o mestre” – inclusive, por paradoxal que pareça, o próprio Fernando Pessoa. E, se o fazem, é porque Caeiro, em evidente diálogo com os “filósofos originários”, empreende a desconstrução da tradição metafísica ao defender o abandono do pensamento representativo dos conceitos subjetivistas em favor do diálogo poético com as coisas. Tal qual diz Caeiro:

 

O universo não é uma idéia minha.

A minha idéia de universo é que é uma idéia minha. [7]

 

Ao se livrar da teia conceitual instaurada pela tradição metafísica, Caeiro cria a abertura necessária para que cada máscara do “teatro em gente” assuma sua própria decisão sobre o sentido do ser. Por exemplo, Álvaro de Campos, engenheiro naval e fumador de ópio, testemunha a força irradiante do “mestre” Caeiro na apropriação do que lhe é próprio. Na apropriação de seu próprio destino, no des-velamento do real, da verdade, do sentido do tempo e da deveniência, do seu próprio sentido de ser:

 

MESTRE, meu mestre querido!

Coração do meu corpo intelectual e inteiro!

Vida da origem da minha inspiração!

Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

 

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,

Alma abstrata e visual até aos ossos.

Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,

Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,

Espírito humano da terra materna,

Flor acima do dilúvio da inteligência subjetiva...

 

Mestre, meu mestre!

Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,

Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,

Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,

Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

 

Meu mestre e meu guia!

A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,

Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,

Natural como um dia mostrando tudo,

Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.

Meu coração não aprendeu nada.

Meu coração não é nada,

Meu coração está perdido.

 

Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.

Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!

Depois tudo é cansaço neste mundo subjetivado,

Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,

Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas

Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.

Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento

Pela indiferença de toda a vila.

Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,

]Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.

Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,

E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém.

Depois, mas por que é que ensinaste a clareza da vista,

Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?

Por que é que me chamaste para o alto dos montes

Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?

Por que é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela

Como quem está carregado de outro num deserto,

Ou canta com voz divina entre ruínas?

Por que é que me acordaste para a sensação e a nova alma,

Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

 

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele

Poeta decadente, estupidamente pretensioso,

Que poderia ao menos vir a agradar,

E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.

Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

 

Feliz o homem marçano,

Que tem a sua tarefa cotidiana normal, tão leve ainda que pesada,

Que tema a sua vida usual,

Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,

Que dorme sono,

Que come comida

Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

 

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.

Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.

Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir. [8]

 

Ricardo Reis também reconhece no “mestre” Caeiro aquele que lhe oferta um diálogo que lhe trará a compreensão do sentido do ser face à deveniência das coisas, a qual procura enfrentar com a ataraxia dos estóicos:

 

MESTRE, são plácidas

Todas as horas

Que nós perdemos,

Se no perdê-las,

Qual numa jarra,

Nós pomos flores.

 

Não há tristezas

Nem alegrias

Na nossa vida.

Assim saibamos,

Sábios incautos,

Não a viver,

 

Mas decorrê-la,

Tranqüilos, plácidos,

Tendo as crianças

Por nossas mestras,

E os olhos cheios

De Natureza....

 

À beira-rio,

À beira-estrada,

Conforme calha,

Sempre no mesmo

Leve descanso

De estar vivendo.

 

O tempo passa,

Não nos diz nada.

Envelhecemos.

Saibamos, quase

Maliciosos,

Sentir-nos ir.

 

Não vale a pena

Fazer um gesto.

Não se resiste

Ao deus atroz

Que os próprios filhos

Devora sempre.

 

Colhamos flores.

Molhemos leves

As nossas mãos

Nos rios calmos,

Para aprendermos

Calma também.

 

Girassóis sempre

Fitando o sol,

Da vida iremos

Tranqüilos, tendo

Nem o remorso

De ter vivido. [9]

 

Convidando cada leitor ao diálogo com as questões que propõe, a mascarada pessoana oferta-nos não “momentos de beleza” ou de mero “gozo estético”, mas o operar da verdade ( alétheia ): o desvelamento e a decisão sobre o nosso destino, sobre o que nós mesmos somos. Ao contornar o essencialismo substancial que caracteriza a tradição filosófica, a obra pessoana termina por nos recordar uma lição de fundo teor ético: a de que a identidade só se pode estabelecer em relação dialogal com a alteridade. Deste diálogo entre o ser e o não-ser, entre o que somos e não-somos, provém nossas múltiplas possibilidades de realização e de construção poética do real, da verdade, do sentido do ser e do tempo que tudo arrebata: a aventura decisiva em que, afinal, desde sempre estamos lançados.

* Doutorando em Teoria Literária na UFRJ. O vertente artigo se insere em um contexto mais amplo, o da pesquisa de doutorado em realização na Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulada “Fernando Pessoa e a mascarada trágica”, sob orientação do professor Manuel Antonio de Castro.

1.Tais pensadores são muito indevidamente chamados de “pré-socráticos”, pois essa denominação não se reduz apenas à indicação de uma efetiva anterioridade no plano da linearidade temporal , mas deixa entrever um juízo de valor segundo o qual teriam sido “superados” pela tradição socrático-platônica... No entanto, nada poderia ser mais enganoso : cada nova formulação filosófica constitui uma nova experiência de questões que , em si mesmas, nada tem de novas ... Questões tais como “o que é o ser ?”, “o que é a verdade ?” se inscrevem no rol das perguntas originárias, para as quais qualquer pensamento efetivamente filosófico há sempre de retornar. O próprio Sócrates, certa vez perguntado sobre o que tanto conversava, todos os dias , nas ruas com os atenienses , teria respondido: “ Sempre o mesmo acerca do mesmo”.

2.Na tradução mais divulgada, “a natureza ama se esconder”. Heidegger, entretanto, na obra Heráclito: a origem do pensamento ocidental: lógica : a doutrina heraclítica do lógos, procura respeitar o sentido originalmente ontológico do fragmento, traduzindo-o por “ Das Aufgehen dem Sichverbergen schenkt's Gunst ”, ou “surgimento favorece encobrimento” (Rio de Janeiro : Relume Dumará, 1998, p. 122).

3.Substantia é a tradução latina para o grego hypóstasis , “aquilo que se coloca embaixo, que está no fundo, que serve de fundamento”.

4.Como se sabe, Aristóteles não chegou a cunhar o termo “ metafísica ”. Tal nome adviria, segundo antiga tradição , da ordem em que se encontravam os escritos aristotélicos na biblioteca de Andrônico de Rodes (séc. I a.C.). De qualquer modo , as palavras de Aristóteles bem se aplicam e são elucidativas sobre o campo de investigação e pressupostos do que veio a constituir o conhecimento metafísico : “Se há algo de eterno , de imóvel e de separado, o conhecimento deste deve pertencer a uma ciência teorética, mas certamente não à física ( que se ocupa das coisas em movimento ) [...] Somente a ciência primeira tem por objeto as coisas separadas e imóveis . Embora todas as causas primeiras sejam eternas, estas coisas são eternas em um modo especial porque são as causas daquilo que do divino é acessível a nós . [...] Se não existissem outras substâncias além das físicas , a física seria a ciência primeira ; mas se há uma substância imóvel , esta será a substância primeira ” ( Metafísica , VI, 1, 1026 a 10), apud ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia . São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 633. Entretanto, há que se notar que para prevalecer o sentido de metafísica como o conhecimento que se orienta para o que está “antes”, “além” ou “transcende” a phýsis , a conotação de “entre” ou “através”, a que está ligada originalmente a preposição metá , teve de ser esquecida. Com o metá de metafísica se passa o mesmo que ocorreu com o metá de método ( méthodos ). Assim como o método, a partir da modernidade cartesiana, passou a designar o que está “antes” ou “atrás” do caminho ( hodós ) – isto é, a estruturação metodológico-analítica prévia –, também a metafísica se debruça sobre o que estaria “antes”, “atrás” ou “além” da phýsis , por isso a precedendo. Assim como o método deixa de ser o sentido que se constrói no “caminhar entre”, “através” ou ao longo do caminho – ou seja, na articulação de sentido que se opera entre os que se oferecem ao diálogo –, também a tradição metafísica não é um “estar entre”, um “caminhar entre” a phýsis . Muito ao contrário, a phýsis , em sua deveniência, é rasurada, tout court , como mero “mundo sensível” (Platão) ou accidens (Aristóteles). Como se vê, o método, já em seu sentido moderno – isto é, de metodologia – é inteiramente tributário e dependente da tradição metafísica.

5. Não é sem motivo que a primeira frase de Introdução à Metafísica , de Heidegger, seja: “Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?” (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, p. 33).

6. FERRAZ, Antônio Máximo. “O teatro trágico da despersonalização pessoana”. “Revista Garrafa” (nº 4), publicação do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Cf. página 3 do citado artigo. [http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/index_revistae-escrita.htm].

7.PESSOA, Fernando . Obra Poética . Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 238.

8.Idem , p. 369-70.

9.Idem , p. 253-54.


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