Quando o subalterno fala

 

Este texto conduz as principais conclusões a que chegou a pesquisa de doutoramento intitulada Migrantes nordestinos na literatura brasileira. A pesquisa estudou o processo de vocalização da personagem migrante nordestina na literatura brasileira canônica. O conceito de canône foi usado para limitar o corpus e o sentido atribuído ao conceito é o de repertório de obras consagradas pela crítica acadêmica, de modo que já são amplamente conhecidas e reconhecidas pelas instâncias do campo literário como universidades, suplementos especializados, listas de obras indicadas em vestibulares e exames nacionais de cursos do Instituto Nacional de Educação e Pesquisa (INEPE).

Concentrando a análise na voz que fala na narrativa e observando minuciosamente o estatuto da narração, esse estudo mostrou a inserção de um sujeito na literatura brasileira, uma vez que o migrante passou de tema, de objeto da narração, a sujeito da enunciação.

A tese foi dividida em quatro capítulos mais as considerações finais. A divisão dos capítulos de análise intitulados “A migração do ponto de vista da origem”, “A migração do ponto de vista da cidade grande” e “O efeito migração” dão a noção da trajetória periferia-centro por que passa não somente a personagem, enquanto sujeito de um movimento migratório, mas também a personagem enquanto sujeito que vai da interdição à dicção.

O primeiro capítulo tenta situar alguns pressupostos da análise. Inicialmente mostra que a relação entre nação – literatura nacional e região – e literatura regional foi determinante para a construção crítica do que ficou conhecido como regionalismo nordestino e do qual é baliza Franklin Távora. O migrante nordestino aparece como referência no romance O cabeleira (1876), de Franklin Távora, que, com seu projeto “Literatura do Norte”, tentou construir uma identidade um pouco diferente daquela que vinha sendo trabalhada por Alencar no seu projeto de construção de uma identidade nacional através da literatura.

Essa discussão é aprofundada com uma comparação entre as obras e a recepção crítica de O sertanejo (1875), de Alencar, e o romance de Távora, em que se mostra que ambos concentraram esforços para a representação do homem do sertão nordestino. Alencar escreve da e para a elite num tom que busca adaptar o tema ao gosto do público. Távora, de uma perspectiva quase que estrangeira, submissa, desculpando-se, apresenta o tema com tom de denúncia e verdade e tenta conferir ao relato ares de documento histórico.

Depois de Távora, há referências a outros autores nordestinos que foram destaque nas histórias literárias, como José Américo de Almeida, com A bagaceira (1928), romance que conta a história da decadência do engenho e das lutas entre pai e filho, proprietários e retirantes, que é recebido pela crítica de modo mais positivo que Távora, e O quinze (1930), de Raquel de Queiroz, que vai ser saudado pela crítica e que de uma perspectiva interna vai aproximar a visão do drama dos retirantes da seca. É uma brilhante narrativa que do ponto de vista da casa-grande constrói uma situação de profunda empatia com o drama dos retirantes.

A partir desse filão é feita uma apresentação preliminar do corpus da pesquisa. Como seguimento, o primeiro capítulo, talvez de modo espasmódico, continua a indicação dos pressupostas da pesquisa, dentre os quais destaco:

A relação entre regionalismo e dependência tomando por base a conceituação de Antonio Candido, que mostra como na década de 1930 a noção de subdesenvolvimento, presente em toda a América Latina, deu uma virada nas perspectivas críticas, e que foi durante essa virada de pensamento que o romance do nordeste foi melhor recebido pela crítica. Essa idéia não afasta o reconhecimento de que essa virada de pensamento também influenciou os escritores que inventaram novas formas de dizer as diferenças.

A insuficiência e a fragilidade dos argumentos, na verdade políticos, mas cobertos por razões estéticas, com que o regionalismo foi estudado por algumas de nossas principais histórias literárias e mais alguns críticos estudados. Os pontos mais importantes dessa passagem são: a idéia de Candido de que o conceito de regionalismo serviu para designar literaturas produzidas fora do Rio de Janeiro, ele lembra que não há regionalismo carioca; a argumentação de Lucia Miguel-Pereira sobre as fases do regionalismo, que defende que o regionalismo era a literatura produzida com diferenças da “civilização niveladora” e que melhora na medida em que se torna mais universal; e, por último, a radical transformação do ponto de vista do Bosi da História Concisa, que afirma que o regionalismo sobrevivia apenas por uma necessidade escolar, para o Bosi de Literatura e resistência, que muda o foco da questão para as possibilidades de representação dos excluídos, bem como a questão da oralidade, marca forte de narrativas regionais.

O argumento de que a relação belicosa entre o modernismo paulista e o regionalismo nordestino tinha um fundo mais político do que realmente de programa, como demonstram as argumentações de Neroaldo Pontes de Azevedo e Mario da Silva Brito mostraram.

E, finalmente, a contribuição que o Manifesto Regionalista e o Livro do Nordeste de Gilberto Freyre deram para a ampliação do conceito de regionalismo nordestino como relação orgânica entre homem-natureza-cultura, talvez válido para qualquer literatura.

Uma vez contextualizado o corpus nesse campo de representações e sentidos, seguiram-se os capítulos de análise. O primeiro capítulo reúne Vidas secas (1938), Morte e Vida severina (1956) e Essa terra (1976), textos que se concentram no ponto de vista da origem, na partida ou no trajeto da jornada.

 

Vidas Secas, obra clássica da literatura brasileira, é narrada em terceira pessoa e tem uma visão que ora se identifica com a da personagem ora se afasta. A partir da leitura de Bosi, o estudo da obra mostrou que o fato de o narrador estar despregado da matéria que narra, não favorecendo nem a linguagem do dominado, que é descrita na sua debilidade, nem a linguagem do dominante, que é denunciada, constrói uma narrativa na qual há a problematização de sujeito e objeto. O narrador não pode ser simplesmente descrito como pessoa ilustrada que representa a condição subalterna. O narrador e o subalterno se aproximam e se afastam. A aproximação se dá em momentos de desconfiança da cultura letrada como instrumento de dominação – lembre-se do capítulo “Contas”, ou da relação de Fabiano com Seu Tomás da Bolandeira. O afastamento acontece quando a visão desiludida e desencantada do narrador ultrapassa as ilusões consoladoras de Fabiano, como no último momento da narrativa em que Fabiano sonha com a vida no sul enquanto o narrador diz que caminham para uma terra desconhecida e civilizada onde ficariam presos.

Destaco ainda da análise o modo como Fabiano se constitui como sujeito subalterno quando se consola com frases feitas do tipo “apanhar do governo não é vergonha” ou “quem é do chão não se estrepa”.

 

O primeiro texto a apresentar o migrante com fala própria, e curiosamente corpo, é Morte e vida severina. Sucesso de público, tendo percorrido grande parte das capitais do Brasil e tendo ganhado vários prêmios, Morte e vida fez com que a poesia de Cabral fosse conhecida do grande público. Mescla de prosa, poesia e drama, o texto mostra o trajeto que Severino percorre para a capital. Embora só encontre morte, seja o assassinato de pequeno sitiante pela fome do latifúndio, seja pela morte das usinas e roças por falta de incentivos de produção, a perspectiva do protagonista é otimista – a vontade de encontrar melhores condições de vida só acaba quando escuta a conversa dos coveiros ao chegar em Recife. Uma vez tendo percebido que seu sonho não passava de uma ilusão, ele pensa em se matar, mas o auto de natal que é encenado para ele e a lição de fé na vida que Seu José lhe dá, mostram uma alternativa. Mas aí o texto acaba. O destino de Severino resta aberto.

Essa terra é o primeiro romance que apresenta um narrador migrante nordestino em primeira pessoa propriamente dita. (Curiosamente houve um percurso de exatos 100 anos desde a publicação de O cabeleira (1876) até Essa terra (1976)). O romance é construído pelo espelhamento entre dois irmãos. O mais velho, Nelo, volta depois de 20 anos de SP e, sem ter forças para frustrar as expectativas da família, principalmente as da mãe, se suicida. Acontece que o suicídio de Nelo não mata o sonho da cidade de ir para São Paulo. Totonhim é o outro irmão, que lida primeiro com Nelo, depois com seu suicídio, depois com a loucura da mãe, e decide, passado o drama da primeira hora, ir também para São Paulo. Os títulos das partes nas quais a narrativa se divide já dão noção das matizes do drama da migração para o sul: “Essa terra me chama”, “Essa terra me enxota”, “Essa terra me enlouquece”, “Essa terra me ama”. Lançando mão de um diálogo com textos já tradicionais sobre o tema como Os sertões , de Euclides da Cunha, e Morte e vida Severina, de Cabral, o texto, que teve uma tiragem inicial de 30.000 exemplares, um fenômeno editorial, e esgotou edições posteriores, promove uma inserção de um sujeito subalterno na literatura e elimina a distância sujeito intelectual – objeto subalterno, uma vez que institui um sujeito que fala a partir de sua condição subalterna.

No terceiro capítulo, segundo da análise, reuni dois textos: A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector, e As mulheres de Tijucopapo (1982), de Marilene Felinto. Nessas duas obras a migração é abordada já do ponto de vista da cidade grande.

A hora da estrela apresenta um prefácio que já problematiza a autoria da obra quando aparece na Dedicatória do autor, entre parênteses, a expressão “Na verdade, Clarice Lispector” que traz para dentro do texto uma entidade que rivaliza com o narrador. É uma narrativa de primeira pessoa, mas que tem um narrador construído como uma terceira pessoa e que, nessa condição, medeia a interação entre a autora, que custa e se esconder nos parênteses, e a personagem, que é descrita na sua inabilidade de se expressar.

Espelho dessa condição dupla de narração, o texto é construído a partir de duas instâncias discursivas – a da narrativa – na qual o narrador conta a história de Macabéa, e a da narração – na qual o narrador se debate numa reflexão sobre o processo de escrita que está desenvolvendo e sobre o qual lança constantes dúvidas e suspeições. O principal problema da narrativa é a identificação: como narrar a história de uma personagem com a qual o narrador não se identifica.

A saída de interposição de um narrador, Rodrigo S. M., não é suficiente, e por isso há a constante re-discussão e interferência do e no processo. O narrador quer a todo custo afastar a idéia de que o texto seja um romance engajado. A ausência de pretensões nessa direção, a recusa de arvorar-se a uma possível tentativa de resolução do problema, faz com que a primeira frase da narrativa já apresente o tom de menosprezo pelo texto, que é denominado como “esta coisa aí”.

O texto apresenta ainda um diálogo com os já clássicos Euclides, Graciliano e Cabral, e dentro desse contexto de interrelações nota-se como Macabéa interpreta sua vida a partir de frases feitas (quem cai não passa do chão, quem espera sempre alcança), achando aí um tipo de consolação, como também fazia Fabiano. A pertinente exploração da classe social do leitor, de si mesmo e da personagem, que o narrador empreende, o faz concluir que, ao escrever aquela história – que está ao alcance de todos, mas que é de difícil elaboração e que possui tema extremamente desinteressante e importuno, desinteressando e importunando o narrador –, ele opera como se fosse uma válvula de escape da classe média, ou seja, como se construísse uma ilusão consoladora para o problema real.

As mulheres de Tijucopapo apresenta a primeira narradora migrante nordestina. A dicção da protagonista, Rísia, é marcada pela violência da raiva, pelos sentimentos brutos que são exteriorizados e por uma oralidade construída pelo viés do diálogo que a narrativa institui. A narrativa é o espaço onde é possível que a narradora construa suas ilusões consoladoras. É pela narração que acontece a vocalização de falas que a narradora gostaria de dizer à mãe, à amiga Nema (principal interlocutora no texto) ou à inimiga dos tempos de infância, Luciana.

O modo de construção do texto, feito todo em zigue-zague, com repetições de partes inteiras, funciona como um correlato objetivo da situação de opressão, mudez e gagueira pela qual viveu a personagem e da qual se livra na busca das mulheres guerreiras de Tijucopapo. A narradora vai em busca de uma origem inventada para nela se redimir de seus males e raivas. Seu discurso opera uma re-inserção no mundo, consertando sua vida marcada pela miséria e traição.

No sonho que toma lugar na narrativa, Rísia é uma migrante às avessas. Ela deixa São Paulo, “a rica”, na direção de Recife, “a coitada”, de onde saiu ainda criança. A verdadeira Tejucopapo, hoje Goiana, fica a 60 km de Recife e sediou o que hoje é encenado pelo Clube de mães da vila de Tejucopapo como a Epopéia das heroínas de Tejucopapo que, em 1646, defenderam a vila da invasão de holandeses. Rísia pinta a giz de cera a revolução que parte de Tejucopapo com Lampião como líder a pé pela BR contra São Paulo. Tudo se dá num intervalo de fantasia e sonho, no qual as visões contraditórias de feminilidade que Rísia vive são harmonizadas e ultrapassadas.

A reflexão constante sobre a classe social e a riqueza de São Paulo informam a revolução que tem muito mais peso na narrativa que as sutis referências a sua condição de negra. Ela se refere à brilhantina derretendo no cabelo ao sol de meio-dia, mas o forte de sua revolta não vem da condição de ser negra, mas da condição de migrante pobre nordestina.

O último capítulo de análise mostra como no romance O cachorro e o lobo , de Antônio Torres, o personagem Totonhim, de Essa terra, volta a pisar em sua terra agora de modo a tornar possível a harmonização de seu passado do interior sertanejo com a vida já assentada de classe média de São Paulo. O efeito migração aponta nesse sentido para essa adaptação do migrante, que constrói um discurso que reflete essa mescla.

O discurso no romance é construído a partir do amálgama da cultura regional, marcada pela oralidade, e da cultura letrada, do fundo da qual cita uma longa lista de autores nacionais e estrangeiros. O contato com sua terra natal, especialmente com seu pai, dispara um processo de identificação, que chega ao ponto máximo quando Totonhim diz ao pai que não pode ficar ali porque já está acostumado com a vida de São Paulo e que ali não há nada para ele. A vocalização dessa conclusão mostra a terrível estagnação daquele interior que quase permaneceu inalterado no decorrer do tempo.

A crítica da modernização como uma traição é um dos pontos mais fortes da narrativa, que mostra como as armadilhas políticas e econômicas iludem e empobrecem o povo, favorecendo apenas a uns poucos. A alternativa da cidade ainda é a mesma, as tristes estradas. Estrada para a qual um menino olha com saudade dos pais que estão trabalhando em São Paulo. O narrador, desiludido, conclui que o ir e vir de São Paulo ainda não terminou.

Considerando tudo, Vidas secas e A hora da estrela são os dois textos que apresentam o binômio clássico intelectual-subalterno. Nos dois, o subalterno não fala, mas também o sujeito que fala é extremamente problematizado, tanto em Graciliano com suas aproximações e afastamentos, quanto em Clarice com a criação da terceira pessoa, o Rodrigo S. M., que enuncia todos os problemas que a não identificação entre personagem e narrador, por causa da classe social, impõe.

Morte e vida severina , o primeiro texto, não por acaso saído de 1956, ano especialíssimo para a discussão da representação dos excluídos na literatura brasileira – Grande Sertão: veredas , de Guimarães Rosa foi publicado nesse ano –, coloca na cena brasileira de corpo inteiro, não apenas em voz, um Severino que explica a si mesmo, que vai e que fica lá pensativo e desiludido.

 

Finalmente, Antônio Torres e Marilene Felinto, ambos com traços fortes de oralidade e de autobiografia, implodem o binômio intelectual-excluído. Ambos criam representações estéticas do excluído que partem da experiência de vida de cada um deles.

A literatura brasileira, essa riqueza que nós temos, é fonte inesgotável para quem deseja conhecer o Brasil, para quem deseja saber como as criações literárias responderam as nossas questões sociais e políticas. É nessa literatura que eu vejo uma resposta original a uma questão teórica que suscitou a primeira idéia de realização desta pesquisa. Foi quando em 2000, na UFBA, eu ouvi Gaiatri Sivak dizendo que seu trabalho como intelectual indiana e mulher era emendar laços rompidos.

O texto de Spivak “Pode o subalterno falar?” produzido na década de 1980, dez anos depois ele fez uma segunda versão na qual avançou na discussão sobre o tema, já tinha deixado uma série de indagações, mas eu sabia que havia algo ali muito significativo. Spival na primeira versão do texto parte do diálogo sobre o papel do intelectual entre Foucault e Deleuze no qual eles chegam à conclusão que o intelectual deve falar pelos que não têm voz.

Spivak chega à conclusão contrária. Ela diz que o subalterno não fala, porque é exatamente a impossibilidade de falar que funda sua condição, e que ao intelectual resta falar por si e investigar o quanto seus métodos de análise carregam privilégios institucionais. A principal conclusão desta pesquisa é a de que os livros estudados, cada qual a seu modo, mostrou formas de escutar e dialogar com o silêncio fundador dos subalternos.

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