A LÓGICA DO INVISÍVEL

                Marcia Cristina Silva

 

   Ao cair a primeira palavra no papel em branco começa a magia. Assim como o mágico tira da cartola um coelho, o escritor tira de dentro de si um mundo muitas vezes desconhecido. Entrar  no branco do papel é descobrir as próprias lacunas, é penetrar nos mistérios da alma, é revirar-se pelo avesso. Todo ser humano é mágico-poético por natureza, mas se não articula isso acaba mimético, como a maioria. O poeta é uma pessoa que está constantemente renascendo, recriando-se na própria linguagem. Assim como a  criança,  tem o dom de viver a vida na plenitude, sem máscaras, sem regras, apenas guiado pelo desejo da criação. Quando nos tornamos adultos, ganhamos a obrigação de ter que enxergar com maior precisão, objetividade, de saber exatamente para onde estamos indo (ou pelo menos de fingir saber). A sociedade nos impõe um pensamento orientado pela razão, um pensamento lógico, coerente, sensato, isto é: mimético. Pois é exatamente disso que fogem o poeta e a criança, já que ambos têm o desejo da liberdade como expressão máxima de si mesmos. A criança consegue essa liberdade quando, na fantasia, através das brincadeiras, cria um mundo próprio e o poeta quando solta o coração em meio a  regras gramaticais, distorcendo-as, reinventando-as para assim também reinventar-se. Os dois são rebeldes, se negam a viver dentro de padrões pré-estabelecidos, têm certeza de que o mais importante não está ao alcance dos olhos. Algo escapa e eles querem lidar com essa falta, com  o mistério que acontece na lógica do invisível. Ao invés de fugir da falta de sentido inerente à vida, a criança e o poeta atiram-se no abismo da fantasia.  Eles desenvolvem um potencial criador a partir de uma percepção diferente do mundo, seguindo a intuição. Mas é na linguagem que essa semelhança se materializa, se torna mais visível, pois tanto a criança quanto o poeta trabalham com as palavras no sentido mais puro, ambos brincam com as palavras colocando-as em diferentes lugares, mudando estruturas. Vico, poeta barroco, acreditava  que a linguagem original era poética e que o desvío sería o prosaico, já que a linguagem poética recria o objeto, não o coloca separado do sujeito, como dois polos que se opõem. Vico afirmava ainda que a criança tem também essa capacidade de estar sempre nomeando as coisas, inventando a linguagem e reinventando-se nela. A criança e o poeta reconhecem que as palavras estão sempre prontas para entrar nas frases mais inesperadas, com  isso se renovam e nunca envelhecem. Porém  no que se refere ao poeta, torna-se necessário apontar para todo o trabalho feito com a linguagem, pois ele é um rebelde que deve conhecer as regras muito bem, ao ponto de poder ultrapassá-las. O poeta age como um mágico ilusionista, velando em cada palavra um segredo maior, analisando cuidadosamente os próximos passos, pois um erro pode ser fatal e destruir todo o encanto do poema. Já a criança quando brinca com a linguagem, o faz de maneira  natural e simples, sem premeditações,  conforme diz Jacqueline Held em seu livro O Imaginário no Poder:

 

 A criança, por si mesma e espontaneamente, gosta de criar palavras...A linguagem antes da intervenção normativa adulta, é recebida como misteriosa, multiforme, plástica. Material para formar, deformar, construir, reconstruir, indefinidamente. Atitude que o poeta, ou geralmente qualquer escritor, que cria um fantástico da linguagem,  deverá um dia,  duramente encontrar,  fazer ressurgir. Esta atitude a criança a tem.”

 

  O poeta aí encontra-se em desvantagem, pois trabalha arduamente numa manipulação consciente da linguagem para chegar até a espontaniedade primitiva das palavras, espontaniedade essa a que a criança chega com naturalidade por já estar inserida no mundo fantástico, ainda não dominado pelos cortes da razão. Poesia, é um fingimento, onde a organização finge a desorganização. A criança, ao contrário, não domina esse discurso organizado. Por isso quanto mais nova é, quanto menos domínio tem da linguagem, mais aberta está para beber da sua fonte original, para deixar-se levar pelo jogo das palavras, sem medo de censuras ou repressões.  Qualquer escritor que queira trabalhar com a literatura poética e não mimética, deve estar pronto a criar um novo mundo, vivendo a magia da escrita com toda a verdade. Como bem disse Fernando Pessoa: “ o poeta é um fingidor.”  Algumas vezes o escritor traz as próprias lembranças para o papel, mas muitas vezes também traz lembranças criadas pela observação e pela leitura. Não é preciso ter perdido um passarinho para saber escrever sobre isso, basta mergulhar no real da fantasia e buscar toda a sensibilidade para escrever sobre algo não vivido. O mais importante não é viver o acontecimento na realidade, mas ser capaz de vivê-lo na fantasia. Isso é o que distingue o bom escritor do mal: a capacidade de ser outros e de ser ele mesmo, de fazer com que as emoções deixem de ser somente suas e passem  a ser do leitor também. O escritor tem de deixar de lado a inspiração e preocupar-se mais com a obra em si. No caso da poesia, é fundamental não ficar limitado dentro de um mundo emocional, mas sim fazer com que as emoções do poeta encontrem as esmoções alheias. No caso da prosa, é preciso que o escritor crie todo um universo, saiba exatamente quem são os personagens, onde vivem, o que vestem... Quanto mais verossímil esse mundo encantado estiver, mais fácil será convencer o leitor a entrar e viver a história. Porém essa verossimilhança não é com o mundo real, mas sim uma coerência interna com o mundo novo que está sendo criado naquele momento, uma coerência com a lógica do invisível. É importante montar o mundo fantástico da história nos mínimos detalhes, mesmo que esses detalhes não apareçam. Todo material é importante durante o processo de construção e um bom construtor nunca desperdiça nada, mesmo que o material não apareça na faixada do prédio, estará lá, na sua estrutura, na planta.

  Segundo o psicanalista inglês  D.W.Winnicott em seu livro O brincar e a realidade, o ser humano está sempre em busca de uma ilusão por nunca aceitar a realidade como completa. Acredito que isso seja o que move o escritor a criar e o leitor também a ler e recriar a própria história. Ambos estão em busca de uma outra realidade e por isso a ilusão tem de parecer o mais verdadeira possível, qualquer deslize do escritor faz com que tudo volte para o real de onde tanto se tenta escapar.  Um escritor que se proponha a fazer uma literatura poética não está preocupado em  descrever uma cena, mas em fazê-la, inaugurando um novo sentido do homem no mundo. A literatura poética é vida, não representa a realidade, a constrói. Ela é forma de conhecimento e realização existencial. O leitor  identifica um verdadeiro poeta, quando esse interage com ele, quando o leitor se esquece que está lendo um poeta e tem certeza de que está lendo a si mesmo.

  A criança tem o inconsciente completamente livre da lógica, dos conceitos adultos e por isso consegue entrar na fantasia e se transportar no tempo e no espaço. Assim como a criança entra numa brincadeira e acredita estar  vivendo o real e não apenas uma fantasia, o adulto também ao ler um poema ou uma história pode viajar no tempo e no espaço, pois só a literatura é capaz de trazer por exemplo uma saga de cem anos em algumas horas. A noção de tempo e espaço é outra. A literatura cria espaço e temporalidade. Um personagem imaginário passa a ter vida própria. Ele existe em outro plano, mas existe. Daí podemos dizer que a literatura lida com o mesmo real da criança, pois ambos têm o poder mágico de criar realidade. Os limites temporais  que nós adultos conhecemos  e nos impomos não existem para a criança e nem para a literatura. Toda mágica é possível  na lógica do invisível. Seria Shakespeare antigo porque foi escrito há muitos anos atrás? Claro que não, o que faz uma obra ser moderna e atual é sem dúvida poder se pensar as questões relativas a seu tempo em outros tempos e isso se consegue com um profundo trabalho. Existem questões que por estarem relacionadas ao ser humano serão eternas e cabe ao poeta mostrá-las de forma singular. Vale lembrar aqui as palavras de Kant sobre a apreciação desinteressada de uma obra. Em sua terceira crítica sobre a faculdade do juízo estético ele afirma que a obra de arte não está ligada a nenhum interesse. Ela é pura fantasia e não remete para nada que esteja fora. Não há regras, modelos, para determinar o que seja o belo. Todo juízo é estético, sentimento do sujeito e não o conceito de um objeto. O modelo mais elevado é uma idéia que cada um tem que produzir em si próprio e a partir daí julgar se gosta ou não da obra. Assim diz Kant logo no início de sua crítica:

 

           "Para distinguir se algo é belo ou não, referimos a representação, não pelo entendimento ao objeto em vista do conhecimento, mas pela faculdade da imaginação ( talvez ligada ao entendimento) ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer. O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte não é lógico e sim estético, pelo qual se entende aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjetivo." 

 

  Kant tinha plena consciência de que a razão humana não  termina no entendimento, não se restringe às certezas  científicas, às leis deterministas. Para ele a noção de tempo e espaço são dadas a partir do sujeito. É uma noção de liberdade que a criança originalmente já tem. Cada momento para a criança é único, pois ela vive o momento presente com toda a intensidade, mesmo que esse presente seja transportado na fantasia para o passado ou para o futuro. Por exemplo:  se uma menina brinca de ser mãe, ela está naquele momento vivendo o futuro no momento presente com toda a realidade possível. O mesmo acontece quando lemos um poema de Safo, conseguimos abstrair da época em que foi escrito e senti-lo na essência como um poema moderno. Quando entramos no real da fantasia, entramos num tempo e num lugar mágico, no mais real que pode existir dentro de nós. É nesse exato momento que criamos nossa própria história. Essa é a magia da literatura, poder criar realidade. Ela deforma as formas antigas para instaurar um mundo novo, um homem novo que terá de aprender a caminhar descondicionado de tudo que lhe foi ensinado. Para renovar o mundo é preciso viajar para o além do conhecido, despertar a percepção dentro de cada um de nós.

  A raiz de toda leitura é o amor, a admiração. É preciso saber ouvir o poema e deixar que ele sugira a própria teoria. Autores como Borges e Barthes sempre defenderam a idéia de que a escrita se faz na leitura. Ela é o processo final da escrita, caso contrário o poema seria uma máquina parada. Todo poema só funciona quando é acionado pela leitura. Segundo Roland Barthes no livro O prazer do texto existem duas formas de leitura. A primeira é uma leitura rápida em que não se considera os jogos de linguagem, apenas o texto como um todo. Muitos leitores fazem somente esse tipo de leitura. O leitor mais experiente não, faz uma leitura detalhada, atenta, como o próprio Barthes diz em seu livro: 

“... a outra leitura não deixa passar nada; ela pesa, cola-se ao texto, lê, se se pode assim dizer, com aplicação e arrebatamento, apreende em cada ponto do texto o assíndeto que corta as linguagens - e não a anedota: não é a extensão( lógica) que a cativa, o desfolhamento das verdades, mas o folheado da significância...”

 

“... não devorar, não engolir, mas pastar, aparar com minúcia, redescobrir, para ler esses autores de hoje, o lazer das antigas leituras: sermos leitores aristocráticos.”

 

 Somente um leitor aristocrático entende a  magia da literatura. É muito comum ao  jovem querer ler mais rápido porque sente que tem muitos livros ainda para ler e que o tempo é pouco para tantas leituras. Porém com o tempo muitas pessoas dizem que ficam mais seletivas, começam a ficar mais lentas na leitura. Acredito que isso acontece quando a pessoa percebe que a leitura é um ato de amor e como todo ser amado requer atenção, carinho, cuidado. A criação é um caminho para se chegar até o outro, para compartilhar sentimentos, experiências, sonhos, enfim:  para compartilhar vida. Por esse motivo a linguagem já foi por muitos comparada à experiência amorosa. Roland Barthes em seu livro Fragmentos de um discurso amoroso diz: 

“ A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo. A emoção de um duplo contacto: de um lado, toda uma atividade do discurso vem, discretamente, indiretamente, colocar em evidência um significado único que ‘é eu te desejo’, e liberá-lo, alimentá-lo, ramificá-lo, fazê-lo explodir ( a linguagem goza de se tocar a si mesma); por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, eu o acaricio, o roço, prolongo esse roçar, me esforço em fazer durar o comentário ao qual submeto a relação.” 

  Saber encontrar um poema é como descobrir os encantos de uma pessoa que nunca se revelam logo no primeiro encontro. Conforme as máscaras vão caindo, as palavras revelam suas faces ocultas e o poeta se apaixona cada vez mais por elas.

  A escritora Rosa Montero em seu recente livro publicado chamado A louca da casa, também faz um paralelo entre a paixão amorosa e o ofício literário. Ela aponta três  semelhanças básicas: a primeira diz respeito ao estado de alheamento que a paixão e a criação provocam, já que tanto o apaixonado quanto o criador ficam com pensamentos obstinados, fixos ou na pessoa amada ou no objeto de criação. A segunda é, como diz Rosa, a expectativa formidável   que essas duas situações partilham, a de nos fazer sentir às vésperas do prodígio, isto é, tanto o autor quanto o apaixonado têm a sensação de que logo alcançarão o êxtase, seja da união total ou da obra perfeita. A terceira e para mim a mais importante de todas, é a busca pela sensação de eternidade. Amamos e criamos para fingir sermos eternos, como diz Rosa: “ A gente sempre escreve contra a morte.”  Gostaria aqui de enfatizar o lado oposto dessa frase: A gente sempre escreve a favor da vida. Criar é amar,  é se jogar por inteiro na vida, sem lembrar do pára-quedas. Na imaginação tudo é perfeito, inclusive o amor. Quando estamos apaixonados idealizamos uma pessoa que muitas vezes existe apenas dentro de nós mesmos, tamanha é a necessidade que temos de amor e a capacidade ilimitada de imaginar. O real é duro e não nos basta, precisamos ir além, mas não sabemos para onde. Transcender o real não é só uma necessidade do artista, é uma necessidade humana, por isso fantasiamos amores, viagens, prêmios milionários, trabalhos perfeitos e acima de tudo projetamos no mundo e nas pessoas uma mistura do que somos e do que nos falta.  Destaco a seguir alguns trechos do ensaio O real mais que real do livro Fragatas para Terras Distantes da escritora Marina Colasanti, onde ela faz  algumas reflexões sobre esse assunto: 

“Ao sair do real, saímos também do cotidiano, do tempo mensurável. Saímos do medo da morte que o tempo inexoravelmente nos traz. Ingressamos no espaço sem fim e sem tempo, onde não viemos do pó e ao pó regressaremos, porque sempre fomos e sempre seremos.” 

“Por trás de todas as histórias de casas assombradas com ventos que uivam e portas que rangem, há uma única e grandiosa história, a do pequeno ser humano enfrentando corajosamente sua finitude. E porque essa história se passa no espaço sem fronteiras do imaginário, a luta representa a própria razão de existência do ser.

Essa é a realidade  mais profunda, o real  mais que real.” 

 Como pode-se perceber todos temos a capacidade de imaginar. Somente assim podemos ter o que não temos, podemos ser o que não somos. A criança desde cedo espontaneamente visita a madrinha da criação, mas conforme vai crescendo esquece o caminho que leva à sua casa. Para isso servem os poetas, para guiar nossa escuridão e nos fazer reencontrar a madrinha. Se a criança descobrir o verdadeiro prazer da poesia, das palavras, nunca mais esquecerá o caminho de volta. Tal qual na história de João e Maria, a criança marcará dentro de nós o caminho de volta para casa, não com migalhas de pão que podem facilmente se perder, mas com palavras e silêncios - poderosas migalhas do ser  que nunca se deixam levar. Seguindo a lógica do invisível, deixaremos a bruxa realidade perdida do lado oposto da floresta e reencontraremos a casa da fada, da fada madrinha que mora dentro de todos  nós.

 

BIBLIOGRAFIA    

1.      BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Hortênsia  dos Santos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.

2.      _____. O prazer do texto. São Paulo: Editora Pensamento Cultrix LTDA, 2001.

3. COLASANTI, Marina. Fragatas para terras Distantes. Rio de Janeiro: Record, 2004.

     4. HELD, Jacqueline. O imaginário no poder.  Tradução  de Carlos Rizzi. São Paulo:

Summus Editorial,1980.

     5. KANT, I. “Analítica do Belo”. In Crítica da Razão Pura e Outros Escritos

         Filosóficos. Tradução de Rubens Torres Rodrigues Filho. São Paulo: Editora Abril,

         1974 ( Col Pensadores).

    6.  MONTERO, Rosa. A louca da casa. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

    7.  PESSOA, Fernando. Poesias. Porto Alegre: LP&M, 2001.

    8.  VICO, Giambattista. A ciência nova. Tradução de Marco Lucchesi. Rio de

Janeiro: Record, 1999.

    9.  WINNICOTT, D.W. O Brincar & a Realidade.Rio de Janeiro: Ed  Imago, 1975. 

 



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