A Tipologia do Romance Policial

Clelia Simeão Pires

Mestranda UFRJ 

O romance policial tem suas normas; fazer “melhor” do que elas pedem é ao mesmo tempo fazer “pior”: quem quer “embelezar” o romance policial faz “literatura”, não romance policial.

                                                                                                                       Tvetan Todorov. As estruturas narrativas.  

 

            Em linhas gerais, o romance policial é um tipo de narrativa que expõe uma investigação fictícia, ou seja, a superação metódica de um enigma ou a identificação de um fato ou pessoa misteriosos. Toda a narrativa policial apresenta um crime e alguém disposto a desvendá-lo, porém nem toda a narrativa em que esses elementos estão presentes pode ser considerada policial. Isto porque além da necessidade de um crime, é preciso também uma forma de articular a narrativa, de estabelecer a relação do detetive com o crime e com a narração.

            A figura do detetive na narrativa policial deu-se por acaso, numa estória que não tinha esse cunho; trata-se de Zadig, o herói da estória de Voltaire, que, aproveitando-se de seus dons de observação no episódio do desaparecimento da cadela da rainha e do cavalo do rei, é acusado de saber do paradeiro dos animais reais e, escapa do exílio na Sibéria ao apresentar argumentos dotados de raciocínio lógico bastante convincente para provar ao júri que realmente não os vira, mas, apenas seus rastros deixados pela estrada. A lógica perfeita de Zadig foi apontada pelos historiadores do gênero policial, como a avant-première do espírito de deteção, transformando o personagem, no antecessor de uma galeria de detetives de ficção que viria mais tarde resultar na narrativa policial.

            Para tratarmos da classificação dos tipos de narrativa no interior do gênero policial, tomaremos como ponto de partida o romance policial clássico ou romance de enigma. A busca de sua solução será o objetivo do agente responsável pelo esclarecimento do enigma, o detetive. Segundo Tvetan Todorov em “Tipologia do Romance Policial”, a clássica narrativa de enigma oferece sempre duas histórias distintas: a do crime – concluída antes do início da outra – e a do inquérito. Nesta, pouca coisa acontece e os personagens encarregados da descoberta do criminoso, apenas observam e examinam os indícios deixados pelo assassino, não realizando nenhum tipo de ação fora dos limites da racionalização lógica. O relato da investigação geralmente fica a cargo de um companheiro do detetive, como, por exemplo, o Dr.Watson que narra as aventuras do mais famoso detetive de ficção Sherlock Holmes, que só apareceria nos fins do século XIX. Nesse tipo de narrativa, o enredo se arma com base em cenas progressivas de suspense que desencadearão, ao final, na descoberta do criminoso. Durante a investigação, porém, nada que ponha em risco a integridade física do detetive poderá acontecer. Esta é uma das regras do gênero que postula a imunidade do detetive. Uma vez que os personagens nesse momento não agem, mas tiram conclusões sobre uma ação passada, a narrativa é elaborada em forma de memória, diminuindo, em princípio, as possibilidades do detetive ser atacado ou morrer no desenrolar da estória. A estrutura básica de todo romance de enigma clássico serão essas características de cada uma das duas estórias, estrutura esta que enfatizará, não o crime da primeira estória, mas a forma de investigação do detetive sobre a ação passada e a forma de condução do inquérito da segunda estória.  

            A natureza dos romances policiais está igualmente relacionada às funções da literatura de massa e às forças que operam sob a sociedade burguesa. Os problemas humanos e os crimes transformados em “mistérios” que possam ser solucionados representam uma tendência comportamental e ideológica típica do capitalismo.

            O romance policial também demonstra que, não pode haver crime perfeito, logo, ilegalismo sem punição. Na ficção romanesca, não haveria lugar para a impunidade, já que a ordem social concebe o delito como uma anomalia, uma violação da lei. A principal função ideológica na literatura policial é a demonstração da estranheza do crime. Caracterizando o criminoso como um ser estranho à razão natural da ordem social, ela faz parte de uma pedagogia do poder que, através da diferenciação dos ilegalismos, define a delinqüência. O criminoso, geralmente, é alguém que não se enquadra na ordem social, sendo por isto necessário identificá-lo e puni-lo. Com efeito, a narrativa policial segue uma ordem de descoberta, tendo como ponto de partida um fato extraordinário.

            O romance de enigma tende assim para a arquitetura de uma dedução perfeita: o Cavalheiro August Dupin, criado por Edgar Allan Poe, o precursor da narrativa policial, em Os crimes da Rua Morgue, após visitar o local onde duas mulheres são assassinadas com requintes de brutalidade num quarto pavimento daquela rua, através de um raciocínio lógico, termina por chegar ao assassino. Dupin não era exatamente um detetive, uma vez que não era um policial e também, a denominação de “detetive” só surgiria mais tarde, mas, era antes de tudo, um herói analista. Contudo, disposto a desvendar aquele enigma que parecia indecifrável, faz justamente o contrário do que as autoridades parisienses fariam. Para ele, a polícia era “apenas astuta e nada mais”. Dupin conclui sobre a solução do crime sem recorrer àquela astúcia, mas sim a um método de trabalho.

            Edgar Allan Poe aplicou tal técnica de raciocínio à ficção, estabelecendo várias combinações de elementos que desde então passaram a ser as peças determinantes na cartilha de elaboração dos romances policiais que surgiram em seqüência: além da figura do detetive cerebral, o escritor deve pensar no desfecho de cada estória a priori, para que a lógica seja perfeita, para que cada incidente caminhe em direção ao final previsto. Além desta técnica de, antes de iniciar a narrativa elaborar sua conclusão, também é fundamental que o escritor faça uma consideração prévia acerca do efeito que ele deseja extrair do romance em questão: o medo. Este é o propósito primeiro do romance policial e, para tal, lança-se mão do mistério e das cenas de horror.

            O universo do romance policial é permeado por esses vários elementos: medo, mistério, investigação, curiosidade, assombro, inquietação, que são dosados de acordo com os autores e as épocas. Através da palavra, o medo se torna uma tortura da imaginação e estabelece uma relação poética entre narrador e leitor; o mundo é, dessa forma, uma fonte de inspiração literária, visto que, mistérios sempre existiram desde os primórdios da história da humanidade. A raiz metafísica deste gênero está na necessidade humana de eliminar a angústia e o sofrimento que nos domina enquanto não atingimos a compreensão de uma determinada situação de mistério. O temor diante do desconhecido e o espanto como resultado da resolução de um enigma são traços pertinentes à própria psicologia humana. Em toda investigação racionalmente conduzida, há , em germe, traços do romance policial. Haja vista a tragédia de “Édipo Rei”.

            O romance policial clássico busca a mais completa verossimilhança trabalhando com índices materiais. Muitos detetives, como por exemplo, Sherlock Holmes, adotam métodos científicos para irem em busca da verdade. Em geral, o narrador lança mão de um mistério tão bem elaborado que o leitor não será capaz de desvendar sozinho. É nesse momento que o detetive entra em ação com o objetivo de resgatar a verdade. O leitor, a essa altura, está preso a narrativa na expectativa de um desfecho que o satisfaça.  Como o objetivo da investigação sempre será alcançado, o detetive torna-se uma espécie de herói e o público passa a desejar que ele apareça em outras estórias, garantindo assim, a consagração do personagem.

            Com estratégias cada vez mais sofisticadas, o romance policial começa a apresentar charadas com o intuito de aumentar o interesse do leitor a partir do momento em que ele sente-se incapaz de desvendar o mistério sozinho. A partir daí, o romance policial começa a ser tratado como uma espécie de jogo.

            Em 1928, S.S.Van Dine, o romancista criador do genial detetive Philo Vance, estabelece as regras de uma boa narrativa policial. Estamos nos referindo ao famoso “As vinte regras do Romance Policial”, artigo do The American Magazine, no qual Van Dine conclui que o escritor deve “jogar limpo” com o leitor. Em outras palavras, a luta de intelectualidade deve acontecer em dois níveis: entre o detetive e o criminoso e entre o autor e o leitor. Nessas duas lutas, a identidade do culpado é o mistério para o qual tanto o detetive quanto o leitor devem ser conduzidos através de um sistemático exame de pistas. Seguem algumas das regras: o leitor e o detetive devem ter as mesmas oportunidades de desvendar o mistério, no entanto, o leitor nunca deverá suplantar o autor; o herói do romance, o detetive, sempre sairá vencedor, pois se o contrário acontecer, o fato será atribuído à baixa qualidade da estória e, portanto, não haverá suspense, uma solução surpreendente ou uma catarse. No romance policial não pode haver intriga amorosa para não atrapalhar o processo intelectual do detetive. O romance deve ter um cadáver para causar horror e desejo de vingança. O culpado deve ser um dos personagens comuns, mas gozar de certa importância e não um assassino profissional. O culpado nunca poderá ser o detetive e o crime deve ser cometido por razões pessoais. A solução do mistério deve estar evidente desde o início para que uma releitura possa mostrar ao leitor o quanto ele foi desatento. As pistas devem estar todas presentes e o leitor deve se surpreender ao saber a identidade secreta do assassino. O romance deve ser verossímil, mas não cheio de descrições já que se trata de um jogo.

            De acordo com Van Dine, a arte do romance policial de boa qualidade é atingir estas metas sem recorrer a truques baratos. É claro que sua validade é bastante questionável visto que vários romances policiais clássicos e contemporâneos têm transgredido algumas delas.

            Outro gênero no interior do romance policial e, que se opõe ao romance de enigma apresentado anteriormente é o chamado romance negro, que se criou nos Estados Unidos. Nele, as duas estórias se fundem; a narrativa coincide com a ação do crime. Não há narração em forma de memórias, não há mistério a ser desvendado e também não sabemos se o detetive chegará vivo ao final da estória. A arquitetura da narrativa tem dois principais interesses: o de aguçar a curiosidade do leitor garantindo que a estória não seja abandonada no meio do caminho, e o de criar situações de suspense. O crime, o cadáver e certos indícios estarão presentes, mas os motivos pelos quais o assassinato foi praticado será o fio condutor da narrativa que, a partir daí, fará com que o interesse do leitor seja sustentado pela espera do que vai acontecer. Aquela imunidade que garantia a segurança do detetive no romance de enigma não será mais possível; aqui, o detetive se arrisca e tudo pode lhe acontecer.

            Já no romance negro moderno, ou “Série Noir”, surgido na década de 20, a narrativa constitui-se em torno dos personagens e de seus temas. Recebem este nome devido ao meio que descrevem. Nele, encontramos a violência no sentido mais brutal, a paixão desenfreada, a imoralidade e o ódio. A segunda estória ocupa lugar central, mas, a omissão da primeira não é um traço obrigatório. Alguns de seus representantes como Dashiell Hammett e Raymond Chandler conservaram o mistério em torno de um crime, embora este não tenha destaque na estória, assumindo uma função secundária. Os detetives dessa época não usavam apenas a cabeça, mas também os punhos. Pela influência da época em que foram criados, durante a tremenda crise financeira gerada pelo crack da Bolsa, e ainda, pela Lei Seca, um novo tipo de detetive surgia num momento propício à exploração da violência. Através da leitura diária dos jornais, o americano tomava conhecimento das “façanhas” dos diversos gangsters, em especial Al Capone e seus asseclas. Com isso, violência conhecida através da leitura dos periódicos, ia se tornado um hábito. Perseguidos sem sucesso pela polícia, essas figuras acabavam sendo transformadas de bandidos em vítimas, ao passo que, as autoridades, ficavam cada vez mais desacreditadas por sua ineficiência. O mesmo público que lia tais notícias nos jornais ansiava por um herói. Este sentimento, talvez, captado pelos criadores da revista Black Mask,  conta com a publicação dos primeiros trabalhos de um dos maiores escritores de romances policiais de todos os tempos: Dashiell Hammett. Depois, em 1930, o escritor lança o livro que seria considerado sua obra prima, O Falcão Maltês, um clássico do romance policial. Seu personagem principal é o detetive San Spade, que aparece em várias estórias seguintes. Com ele dois novos elementos são introduzidos na narrativa policial: o sexo e a violência. Antes dele, o que existia essencialmente nas narrativas policiais era o raciocínio puro. Não havia lugar para o amor e muito menos o sexo.

            Na mesma linha de San Spade há dois detetives muito diferentes entre si, mas dignos de menção: Phillip Marlowe, de Raymond Chandler, e Mike Hammer, de Mickey Spillane. As estórias de Marlowe têm características bem parecidas com as de Spade. Hammer é a representação do exagero. Em suas estórias a inteligência entra em bem menor proporção se comparada às demonstrações de força bruta e sexual que são levadas ao extremo.

            O romance negro tem na coleção “Série Noir”, publicada na revista Black Mask seu ápice e reconhecimento de público. As estórias transgridem algumas regras daquelas postuladas por S.S.Van Dine, como, por exemplo: há freqüentemente mais de um detetive e mais de um criminoso; o criminoso é um profissional e não mata por razões pessoais e é com freqüência um policial. Neste tipo de narrativa, há lugar para o amor, de preferência bestial, e o autor não reserva suas surpresas para o final do último capítulo. Exploram-se situações angustiantes em que o detetive pode se envolver. Não há otimismo, a imoralidade ou amoralidade é admitida. Usa-se a linguagem coloquial admitindo ainda palavras de baixo calão e gírias. O detetive também é falível e nem sempre há mistério. Pode ocorrer até que não haja detetive.

            Vale ainda ressaltar que o narrador desse tipo de romance, quer seja o próprio detetive ou não, nunca aborda aspectos psicológicos dos personagens de suas narrativas.

            Além das duas formas de romance policial já apresentadas, surge ainda uma terceira que combina as propriedades das anteriores: o romance de suspense. Essa forma de romance policial serviu de transição entre o romance de enigma e o romance negro e se desenvolveu ao mesmo tempo em que este. Desses dois períodos correspondem ainda dois subtipos de romance de suspense: o primeiro, chamado de ‘estória de detetive’, é onde as estórias de Hammett e Chandler também podem se encaixar. Assim como no romance de enigma, este, conserva em seu enredo o mistério e as duas estórias. Como no romance negro, a segunda estória (a do inquérito) assume o lugar central na narrativa. O leitor se interessa por interrogar como se explicam os acontecimentos do passado e o que acontecerá no futuro da narrativa. Aqui, as personagens também arriscam constantemente a vida. O mistério, diferente do romance de enigma, é o ponto de partida. O interesse principal está na narrativa do inquérito, que se desenrola no presente.

            Há ainda um segundo tipo de romance de suspense, o chamado “estória do suspeito detetive”, que tenta resgatar o crime pessoal do romance de enigma. Nesse caso, um crime é cometido no início do livro e as suspeitas da polícia recaem sobre o personagem principal. Para se inocentar, a pessoa parte para a investigação pessoal a fim de encontrar o verdadeiro culpado, arriscando a própria vida. Nela, o personagem é ao mesmo tempo o detetive, o culpado (para a polícia) e vítima dos verdadeiros assassinos. Representantes desse gênero são Patrik Quentin, Irish e Charles Williams.

            Tratamos da classificação de algumas narrativas policiais e como pudemos perceber, o romance policial tem suas normas e, uma obra, para ser considerada como tal, precisa se adaptar a um mínimo das regras do gênero.

   

Referências:

ALBUQUERQUE, Paulo Medeiros e. Os maiores detetives de todos os tempos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1973.

REIMÃO, Sandra Lúcia. O que é romance policial. São Paulo: Brasiliense, 1983.

TODOROV, Tvetan. “Tipologia do romance policial”. In: As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1970.                                                                                          

 

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