OS LUSÍADAS: ARTE QUE PENSA A CULTURA

CONSIDERAÇÕES SOBRE O CANTO X

Thiago Carneiro de Almeida

Mestrando em Literatura Comparada UFRJ

 

 

Para Rodrigo, Comovido

... você é o poema que nunca escreverei

 

1_ Mover-se: Camões e Portugal

Camões é um homem do seu tempo. Possui em si as características que o instauram no pensamento renascentista. Portugal, todavia, está em outro tempo. No entrecruzar da relação entre homem e seus conterrâneos, poeta e seus leitores temos uma “viagem desventurosa”. Se entendemos que o texto literário é um entrelaçamento de linhas, um entrecruzar de viagens, concluímos que, em muitos momentos, o tempo da escrita não possibilita a harmonia com o tempo dos outros homens, pois a viagem do texto não é equivalente à viagem dos outros homens.

O poeta encontra-se em outro tempo quando publica sua obra máxima. A ordem, o mundo eram outros, por isso a necessidade de um discurso outro que pudesse ler esse novo mundo, uma nova arte que pudesse dar forma a essa nova ordem, um homem com engenho para fazer do mundo uma leitura possível.

Segundo Antero de Quental, em seu texto que trata da decadência dos povos peninsulares, Camões só podia criar uma epopéia porque Portugal estava em ruínas:

 

a desgraça (de Portugal) é que esse espírito guerreiro (encontrado e desejado em Os Lusíadas ) estava deslocado nos tempos modernos: as nações modernas estão condenadas a não fazerem poesia, mas ciência .

 

Antero entendia que em 1572, a decadência transformava Portugal em cinzas de um passado de conquistas e esperanças. O mar reconhecido e domado pela técnica dos homens de ciência e engenho não mais ministrava sonhos de riquezas, nem a alegria das gloriosas cruzadas em nome da propagação da fé cristã. O tempo estava concebido sobre o signo da crise; e Camões, homem de letras, instaurava-se no centro dessas contrariedades para conciliar os contrários. Louva a nação que não podia se reconstruir, porque o passado era lembrança, saudade, e não mais mecanismo para possibilitar o progresso.

2_ O Engenho

O poeta pensa a arte, é aquele que “em me falta na vida honesto estudo, / com longa experiência misturado, / nem engenho, que aqui vereis presente, / cousas que juntas se acham raramente” (X, 154, 5-8). Para ele, a poesia é entendida como um artifício que mistura em sua criação operações da técnica. É controlada, ciente encontra-se o poeta na proposta de sua arte. O poema, então, é submetido ao controle racional da forma, da matéria a ser trabalhada. Há preceitos que a coordenam, a tornam fruto de um padrão_ os clássicos_ a ser seguido. Usa os artifícios tradicionais para ir além do que está lá, para, no antigo, apresentar “que outro valor mais alto se alevanta” (I,3,8) (Se a Musa lhe der o engenho). Diante disso, podemos entender que a relação entre a arte de Camões está diretamente ligada ao seu receptor, o leitor, porque a arte é criada para conter em si um sentido que está em si ou naquele que a contempla. O leitor, fonte de interesse do artista por ser matéria humana, é colocado em contato com o mundo puro da arte, “figurado como experiência da contemplação de uma medida superior que falta irremediavelmente à História” . Poeta e leitor, então, participam da viagem textual para encontrar nessa navegação a beleza que carece o mundo sensível.

Entretanto, o poeta navega sozinho.

Esta consciência de sua arte, da produção intelectual que exerce não o isolaria do contexto de mundo no qual, como humanista, está instaurado. A crise portuguesa é conhecida do autor, e cantar “as armas e os barões assinalados” e “também as memórias gloriosas/ aqueles Reinos, que foram dilatando/ a Fé, o Império, e as terras viciosas (...)” não seria um discurso de revigoramento de uma nação caída?

 

3_ Entrecruzamentos

Por ser homem que pensa seu tempo, seu discurso será pautado num entrecruzar de vozes, de narradores que conduzem o “leitor” por viagens distintas. Assim, temos um que, tendo sua base de construção na epopéia antiga, Homero e Virgilio, ausenta-se de uma função emotiva em sua fala, este é o narrador épico. Outro é o que não narra, mas tráz para si a lírica, a reflexão que aproxima o discurso da crise do mundo, do poeta. Este é conhecido como o aedo .

Entendemos que por todo o poema outras vozes se apresentam, vozes estas que o poeta “transveste” para melhor expor sua maneira de entender o mundo, seja pela voz de Inês de Castro, pelo gigante Adamastor, por Vasco da Gama. Nos pautamos na apresentação do narrador da epopéia e no aedo, pois sua diferenciação se torna forte no canto a ser analisado.

O canto I nos apresenta a voz do poeta que se entusiasma, comove o outro para cantar “o peito ilustre Lusitano”. Segundo Teresa Cerdeira,

 

Aqui o eu lírico se confunde ainda com o épico, na medida e que dizem ambos a mesma verdade ufana. Porque o estimulo é grande para a pátria exausta (...). Mas no caminhar do texto constatamos logo que as verdades do narrador e do aedo vão aos poucos se distanciando ate que o poeta tome, enfim, a postura e a linguagem do outro.

 

O Poeta assume o objetivo de imortalizar os feitos da gente ilustre “mediante um canto alentado por musas que condenarão as antigas Musas ao silêncio, na mesma medida em que a matéria cantada significa um “valor alto””.

A separação entre o aedo e o narrador épico se concretiza, e duas viagens são propostas no texto. A cisão se torna visivelmente reconhecida. O discurso da continuidade (da conjunção e ), do vencedor que deseja levar a fé aos infiéis, unir o Ocidente ao Oriente está presente numa enunciação que propaga a ideologia vigente através do narrador épico, enquanto o enunciado que pensa o mundo, a cobiça , a nação está no outro.

 

4_ A Ilha: corpo

O canto X inicia-se com os marujos recebendo o prêmio pela conclusão da empreitada marítima: desembarcados na Ilha dos Amores, ilha esta que não possui uma localização geográfica no plano da determinação Histórica, e nem no plano Mítico, pois sua aparição apenas é verbalizada no mapa do discurso da epopéia, conforme afirma Julio Carvalho. Lugar que propicia o contato com o prazer, sendo este recebido no corpo. Para tal, a ilha teve que adquirir existência, um corpo verbal, para que o projeto apenas idealizado pudesse ser aproveitada pelos merecedores desse prêmio. A glorificação de seus atos será desfrutado num lugar que concentra em si o maravilhoso e o prazer, o contato do divino com o prazer do corpo. Nesta confluência entre alma e corpo, idéia e matéria é possível o amor Ideal. A comunhão entre os homens, matéria; e o mito, a idéia; dá-se neste lugar de cruzamento, onde “os heróis, personagens do espaço físico comungam com os do espaço meta-fisico” . Por causa dos feitos, a verticalidade que estabelece a relação entre o homem e o divino é rompida, agora, homens e Ninfas estão horizontalmente colocadas (“Se assentam dous e dous, amante e dama”). Gama, aquele que é adjetivado com o vocábulo claro , está “à cabeceira, d”ouro finas,/ está co a bela deusa o claro Gama” (X,3,3-4). O corpo físico dos marinheiros é alimentado com manjares (“Que entre um e outro manjar se alevantavam/ despertando os alegres apetites” X,5,3-4) e a alma, nos deleites do prazer.

Pelo estado de sublimação em que a ilha se localiza, não é possível estabelecer qualquer comparação com algum povo historicamente situado (“De iguarias suaves e divinas,/ a quem não chega a Egípcia antiga fama” X,3,5-6), apenas Atlântida, terra também invencionada, é de onde provêm “os pratos de fubo ouro” (X,3,7).

Uma passagem se torna interessante a ser destacada, pois evidencia a arte de Camões. Ao se referir aos vinhos que são servidos aos vencedores, temos a palavra “acima” que permite uma dupla leitura. Ela estaria afirmando a superioridade do vinho e mostra tal fato estando acima, isto é, num verso acima, do restante da estrofe:

 

Os vinhos odoríficos, que acima

Estão...

(X,4,1-2)

 

O conteúdo aqui se transforma em forma, como a ilha, idéia que se torna verbo.

Logo a seguir, levanta-se uma Ninfa, que canta como uma sereia. Ao contrário destas, que utilizam suas belas vozes para seduzir os marinheiros e levá-los para a morte no mar, a Ninfa tem um canto que proporciona mais prazer, este presente no discurso que prevê o futuro. Tempo que já pertence ao passado histórico da nação (“Cua voz dua Angélica sirena” X,5,8). A natureza acompanha o canto e se cala, o locus amoenus compõe os versos: “um súbito silêncio enfreia os ventos”.

A Ninfa, na estrofe 10, canta o futuro português, uma sucessão de guerras, destruição; um progresso que se artimanha pela anulação do outro (“Mas queimar-lhe-á lugares, templos, casas” X,16,2), sempre respaldado pelo amor divino (“Ou que os celestes coros, invocados/ descerão a ajudá-lo e lhe darão/ esforço, força, ardil e coração.” X,20,6-8). Porém, esse futuro é visto sobre um olhar crítico.

A conjunção e ; aquela que representa como forma a continuidade do discurso do vencedor, presente nas estâncias da Proposição; aparece em diversas partes para mostrar o contínuo das vitórias (12, 15, 35, 60, entre outras estrofes.). A História é apresentada como uma sucessão contínua onde apenas o vencedor tem espaço.

 

5_ O advérbio Aqui

A presença do advérbio de lugar aqui se destaca. Entendemos que a repetição em Camões é uma forma de ratificar a persuasão do discurso. Por este motivo, acreditamos ser relevante analisar esse termo.

O aqui , o lugar onde se encontra o sujeito lírico por toda a literatura ocidental sempre se configura como o lugar do desprazer, principalmente, na estética romântica. “As aves que aqui gorjeiam/ não gorjeiam como lá”. O se torna o lugar do ideal, inacessível, desejado. É claro que compará-lo ao poema de Camões é um anacronismo, pois a forma de entender esses termos na obra camoniana possui outra motivação. Mas tomamos a ousadia de pensar que o aqui estabelecido nos versos do poeta simboliza o lugar ideal (Se a Musa lhe der o engenho), pois afirma que é aqui , nessa epopéia, nesse “outro valor mais alto (que) se alevanta” que o fato ocorre. Os aqui assumem uma dupla interpretação, referem-se à localização no verso e sempre nos remetem a uma outra possibilidade de enunciação.

Na estrofe 30, a presença do aqui ratifica nossa posição, nos versos: “ aqui ressurgem todos os Antigos,/ a ver o nobre ardor que aqui se aprofunda”. O primeiro se direciona ao verso, como um indicador textual, que se forma e/ou ao momento histórico da morte de Dom Lorenço de Almeida? Enquanto o segundo somente nos remete à epopéia, pois é uma forma de confirmar “novo engenho ardente” (I,4,2). Na estrofe 22, temos no discurso do vencedor, a denúncia de uma injustiça em relação a Duarte Pacheco: “Se em ti viste abatido o braço de Marte/ aqui tens com quem podes consolar-te”. Neste verso, o advérbio está se referindo ao verso da epopéia, espaço onde a memória de Duarte pode ser lembrada e/ou ao poeta como aquele que proclamará essa injustiça? Na 77, Vasco da Gama, é convidado pela Deusa a subir um monte_ alegoria da vida que o capitão deixou para trás, representada pelo “árduo, difícil, duro a humano trato” (X,76,7-8) (não seriam estas as marcas, os desafios que os heróis tiveram que enfrentar até aqui nesta estrofe?). Sobem, indicio da ascensão do homem em semi-deus, para que Gama possa “ver o que não pode a vã ciência/ dos errados e míseros mortais” (X,76,3-4) contemplar. No verso 5 desta estância, o advérbio aparece insinuando que o aqui é pertencente a está estrofe, a este momento da narrativa e/ou ao monte: “ aqui , um globo vem no ar, que o lume (...)”

 

6_ A outra Viagem

Vasco da Gama, então, recebe o direito de entender a mecânica do Universo, a epifania que lhe deixa “comovido/ de espanto e de desejo ali ficou” (X,79,3-4). Homem que se maravilha diante do extraordinário, diante do mecanismo que sustenta e organiza o mundo. E, aqui, uma nova viagem se projeta, viagem para dentro da estrutura do universo, permitida apenas ao herói como prêmio máximo de tornar verbo o discurso da Proposição. Viagem que não aponta a busca por novos horizontes, mas a um retorno a uma verdade já consagrada pelos séculos. Assim, a Máquina do Mundo, invenção produzida com arte pela Inteligência Astuciosa, a Suprema Providencia, guarda em si as contrariedades do que é divino (“...e um mesmo rosto/ por toda a parte tem; e em toda a parte/ começa e acaba, enfim, por divina arte.” (X,78,6-8)). Não há uma palavra, um “engenho humano”, que possa dar uma compreensão exata da natureza divina, como o conceito de amor, que, proveniente do divino, não se permite resumir num termo, mas só no jogo de suas contrariedades (“Amor é um fogo que arde sem se ver...”), da mesma forma Deus (É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,/ que tanto o engenho humano não se estende” X, 80, 7-8).

Gama aceita o conhecimento proposto pela Deusa, pois a realidade do individuo torna-se um equilíbrio, e o saber pode, agora, ser adquirido por este homem em harmonia com um universo divino. Segundo Clésio Quesado,

A Máquina de Camões é ofertada como o reconhecimento de um mérito, é premiação parar “Aqueles que por obras valerosas/ se vão da lei da morte libertando”. E o sujeito destinatário dessa oferta não pode recusá-la porque ela é fruto de uma busca_ mesmo indireta no plano do enunciado_ e, mais ainda, ela não lhe pertence a ele sozinho, mas a todo um povo que ele representa.(...) Na epopéia não há individualidade, a existencialidade do sujeito não lhe pertence e, como conseqüência, o direito à opção não lhe é dado, sendo impossível a recusa.

 

A Máquina é a representação da realidade, da estrutura que “maquina” o mundo dos homens, a resolução do enigma que não é permitido aos homens saberem. Gama adquiri as esferas do saber. Homem centrado em seu tempo. Na verdade, o herói está em harmonia com o discurso do vencedor, porque agora ele personifica a Proposição em sua atitude, em sua ação discursiva que atua para se desvencilhar das artimanhas de Fado, e por isso, é condenado por Saraiva .

A Gama é apresentado o universo de Ptolomeu e este fato deve ser um pouco pensado. Camões, homem de seu tempo, letrado, provavelmente conhecia, apesar de ser recente, o sistema de Copérnico. Todavia, no texto a Terra continua a se manter como centro do universo. A resposta definitiva para esta escolha ainda não encontrou unanimidade entre os críticos mais apurados da obra do autor. Podemos pensar, pois, que Camões preferia manter o desejo por um mundo antigo, governado por outra ordem, aquela em que Inês de Castro, inserida num discurso que não pertence à ordem mercantil deseja permanecer (“põe-me onde se une toda a feridade/ entre leões e tigres, e verei/ se neles achar posso a piedade/ que entre peitos humanos não achei”)? No mundo que Camões apresenta, Deus é o centro, sua autoridade não é retirada pela presença do gênio humano. O mundo ainda é medieval, Deus ainda dá sentido, sustento ao discurso. Ou porque não é possível ao português ser contemporâneo do seu próprio tempo?

Não há uma resposta categórica a essa questão. Podemos ousar e admitir como uma possível resposta um “Não é possível”. Camões era homem de seu tempo; enquanto os portugueses estavam em outra ordem. O poeta, então, possibilita instaurar em si a imagem do Gênio, daquele que está para além do seu momento histórico, daquele que propõe um discurso maior que a enunciação dos seus contemporâneos. Por estar acima de toda uma nação, sua postura de apresentar ao leitor um mundo antigo não vai de encontro ao que acreditava. Assim, podemos aceitar que foi uma escolha, consciente. Como humanista, o seu projeto de vida é elevar o leitor até um conhecimento novo, conhecimento este que colocava o sol no centro do universo. Porém, tal feito não encontraria receptores. Dessa maneira, Camões, aquele que elevou o estilo, não permitiu que seu texto ascendesse a um conhecimento maior, atual. A terra, então, se mantem como centro. Camões não quer se manter acima de todos, quer trazer a todos para cima, para o conhecimento. Todavia, não foi possível admitir um conhecimento novo. A relação entre leitor e mundo que Camões apresenta se harmoniza, pois o leitor encontra no discurso de Os Lusíadas aquilo que compreendia, o mundo ptolomaico entendido como verdade. Reconhecer o mundo é harmonizar o elo entre obra e homem, mas é também reconhecer que esse leitor está limitado a uma única possibilidade de mundo.

 

7_ Conhecer os artifícios do Engenho.

Discutimos brevemente sobre a lucidez da arte de Camões, e nas estrofes 82 a 84 temos no ato de criação do poeta o fornecimento para que o leitor possa desvendar os preceitos evidenciadores da construção do artifício, “por isso lhes fornece também os meios de dissolver a ilusão do efeito que congela a experiência poética na forma rígida de um fantasma.” . Sua arte se projeta não como um reflexo do mundo, mas um meio simbólico de conduzir o leitor pelas artimanhas do engenho. Na estrofe 82 (Iniciado com um aqui, indicação da localização do texto no sentido mais amplo da epopéia e do menos amplo, o dessa estrofe.), apresenta o falseamento dos deuses, utilizados apenas para serem lidos como matéria de retórica. Denuncia o fingimento da arte, que corrige a natureza, por isso “não se contenta com as coisas empíricas, mesmo quando belas, pois sabe que são tempo, imperfeitas, e passam, efêmera” . Logo, temos um “metapoema”, poema que fala de si mesmo, pela boca da Deusa, recurso retórico, que revela o próprio recurso retórico que a construiu (“Só para fazer versos deleitosos/ servimos(...)” X,82, 5-6). Todavia, alguns autores acreditam que a estrofe 84 foi inserida por imposição do Censor. Este fato não deve ser descartado. Sendo Camões um homem de poucos recursos financeiros, dependente da “bondade” dos superiores, é passível de aceitação sua sujeitação ao Poder para ter sua obra e vida preservadas. Silvio Elia transcreve as palavras de aprovação do censor da Inquisição:

As palavras de Frei Bertolomeu Ferreira, Censor do Santo Oficio para a primeira edição do poema: “Todavia como isto é poesia e fingimento, e o Autor como poeta não pretende mais que ornar o estilo poético, não tivemos por incoveniente ir esta fábula dos deuses na obra, conhecendo-a por tal e ficando sempre salva a verdade de nossa santa fé, que todos os deuses dos gentios são demônios.”

 

 

 

 

 

8_ O calar das Musas

A presença do narrador da epopéia continua. Nas estrofes 143 a 144, os vencedores partem da ilha levando consigo as Ninfas. O retorno é tranqüilo, em Locus Amoenus, pois a natureza encontra-se domada, desbravada: “com o vento sempre manso e nunca irado”

A lira que canta o triunfo se destempera, e uma outra voz, agora daquela pertencente à “navegação desventurosa ” se ergue para refletir. Uma nova viagem toma direção no discurso. O aedo toma o discurso “No mais, Musa, no mais...” (X,145,1). O poeta se silencia, ocorre uma “desinvocação” , pois em vez de chamar a Musa para seu auxilio, ele a nega. A matéria épica se desfalece pela degradação dos costumes, com a queda dos ideais. Há um sentido forte de miséria pelo canto que não encontrará leitores. Enquanto no canto I, estrofes 1 e 2, o poeta canta com entusiasmo; aqui não mais, cala-se, porque falta o engenho, não há leitores, só “gente surda e endurecida”, voltados para o “gosto da cobiça” e na “rudeza/ dhua austera, apagada e vil tristeza”. “Cantando espalharei por toda a parte/ se tanto me ajudar o engenho e arte”, mas o engenho falha, a Musa está silenciada. O entusiasmo do inicio é perdido e causa a cisão entre o narrador da Proposição e o poeta, que não mais se misturarão (tal fato ocorre antes, mas chega ao extremo no canto X) no discurso. São dois discursos, aventuroso e desventuroso, o que louva e objeta a Proposição e o que está em conflito por pertencer a um humanista que não sabe como louvar à guerra.

 

9_ A Finalidade

O homem que salva a sua obra do desastre de navio (“No seu regaço os Cantos que molhava/ vem do naufrágio triste e miserando (...)) (X, 128, 2-3), apresenta em forma de gesto o que lhe comove, o amor à arte. Sua amada se perde nessas águas e sua memória é resgatada em versos, porque é na arte que o mundo se torna discurso e pode ser lido, entendido. Essa escolha pela obra que será “mais afamada que ditosa” (X, 128,80) corporifica o amor. A esperança de criar uma epopéia destinava-se em comover leitores, formar homens de cultura que pudessem conquistar o mundo _ das letras e o novo mundo. Entretanto, seu engenho e arte não possibilitaram a formação desse desejo. Sua obra parece se calar, porque não haverá quem a leia. A consciência de seu tempo, de estar entre um povo de “não ser por versos excelentes/ e não se ver prezado o verso e rima,/ porque não sabe arte, não na estima” (V, 97, 6-8), que não presava a poesia, por causa dos costumes pertencentes à nação:

Por isso, e não por falta de Natura,

Não há também Virgilio nem Homeros,

Nem haverá, se este costume dura,

Pios Enéas nem Achiles feros, (V,98)

 

“Camões é a consciência dilacerada de quem não vive num país de cultura, de quem sabe que demora muito sair de Ptolomeu e chegar a Copérnico” . O gesto da vida do passado vira estrofes de morte no final dos cantos. É a nova viagem, desventurosa, que não encontrará portos seguros para retornar à pátria. Para essa viagem, o poeta não regressará. Salvou o texto para se matar no texto. O novo engenho se alevantou, a epopéia moderna se fez discurso, mas o poeta, em seus sonhos, não se alevantou.

Na estrofe 8, Camões reinvoca as Musas clássicas, a voz do narrador épico é interrompida no quinto verso. “Aqui, minha Calíope, te invoco”. Neste ponto, referido pelo advérbio de lugar, nesta parte da epopéia, o poeta, o aedo, se confessa impotente (“este trabalho extremo, (...)”). Invoca a Musa, que é dele (“minha Calíope”), a musa da poesia épica, para ajudá-lo, para que “o gosto de escrever, que vou perdendo”, não se perca e a epopéia de celebração à nação se cumpra, e, assim, os heróis possam voltar para a terra mãe. O poeta que, na Proposição, quer calar as musas antigas, necessita delas para que seu engenho não se perca, pois ele sabe que “tu me dá que cumpra, ó grão rainha/ das Musas, co que quero à nação minha!”(X,9,7-8).

O canto X prossegue dando conselhos ao rei, oferecendo-se para uma nova empreitada épica que findará em tornar o desejado em mito.

 

10_ Considerações

O que move Camões é o amor à arte, e como humanista deseja que o outro aprenda do conhecimento que possui do passado através de uma arte de grande engenho. Entende o mundo porque este pode ser lido, pode ser transformado em matéria poética. Ele sabe que “não há beleza na história, que é tempo e destruição, mas na poesia, um meio de domínio intelectual das contingências pelo qual o instante se eterniza na forma proporcionada para alem da morte que o determina” . logo, o mundo necessita da arte.

Cabe ao poeta, pelo ato intelectual, dar uma nova beleza à matéria do mundo. Consciente de sua arte e engenho, firmou numa epopéia elementos para conduzir o “peito ilustre lusitano” para mostrar “amor da pátria, não movido/ de premio, vil” (I,10,1-2). Camões é um humanista, porque prescruta a matéria humana. O homem é objeto de interesse. Como letrado, transmuta a arte em signo máximo para que se possa compreender o mundo e o homem. Retornar aos clássicos e remodelá-los é uma forma de expandir para além de seu corpo o conhecimento que ele adquiriu. É entregar ao mundo uma versão modelada do antigo. Assim, Os Lusíadas são uma forma de comover um outro ao conhecimento. É uma maneira de ensinar, com beleza e engenho, conceitos fundamentais para o novo homem que “renasce” nesse novo mundo. Logo, a Viagem de Vasco da Gama é um pretexto para conduzir o leitor ao amor à arte. É confessar que entende o mundo, porque este pode ser lido em versos. Todavia, não conseguiu “construir” um leitor que tanto almejou. A separação dos narradores, aquele que mantém até o final o louvor à Proposição e aquele que reflete seu engenho e sua nação, mostra o homem que se formou na tentativa de conciliar as contrariedades do amor, da vida e do mundo.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1 AREAS, Vilma. Os Lusíadas ou a Navegação desventurosa . 1972

2 BOTELHO, Maria Antonia dos Santos. “O discurso amoroso em Os Lusíadas”. In

Convergência Lusíada , 1985.

3 BERARDINELE, Cleonice. “Os Excursos do Poeta n” Os Lusíadas ” In.: Estudos

Camonianos . Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 1968.

4 CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas . Porto: Ed. Porto, 1974.

5 CARVALHO, Julio. “A utopia da narrativa: uma interpretação da Ilha dos Amores.”

In Convergência Lusíada , 1985.

6 QUESADO, Clécio. Camões e Drumonnd_ Homens, máquinas e vastos mundos .

Faculdade de Letras: Rio de janeiro, 2002.

7 HANSEN, João Adolfo. “A máquina do mundo”. In. Poetas que pensaram o mundo .

Org. Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

8 SARAIVA, Antonio José. Luis de Camões . 2 ed. Ver. Lisboa: Europa-América, 1972.

9 SILVA, Teresa Cristina Cerdeira. “A escrita d” Os Lusíadas ou a aprendizagem da

dor”. In Convergência Lusíada . 1985.

10 SILVEIRA, Jorge Fernandes. “Discurso/Desconcerto Alguns Nós na Literatura

Portuguesa” In. Verso com verso. Coimbra: Ângelus Novus Editora, 2002.

11 SENA, Jorge de. A estrutura de “Os Lusíadas” e outros estudos camonianos e de

poesia peninsular do século XVI . 2 ed. São Paulo:Edições 70, 1980.

12 QUENTAL, Antero. “Causa da Decadência dos Povos Peninsulares nos Três

Últimos Séculos”. In. Prosas Escolhidas . Rio de Janeiro: Livros de Portugal LTDA,

1942.

 

NOTAS:

QUENTAL: 1942, 130

HANSEN:2005, 171

SILVA: 1985,116

SILVA: 1989,116

AREAS: 1974,170

CARVALHO:1989,181

CARVALHO:1989,182

QUESADO: 2002,4

Cf. SARAIVA, Antônio José. Luí s de Camões . 2 ed. Ver. Lisboa: Europa-América, 1972

SILVEIRA: 2002, 42

HANSEN:2005, 162

HANSEN:2005, 172

ELIA:1985, 27

AREAS: 1972

BERARDINELLI: 1968,40

SILVEIRA: 2002,50

HANSEN:2005, 171

 

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