A RECONQUISTA DA FORÇA EVOCATIVA DA MÚSICA:

UMA INTRODUÇÃO

Sônia de Almeida do Nascimento

Mestre em Ciência da Arte pela UFF

e Doutoranda em Poética,

Programa de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura, da UFRJ

 

 

Será que está em nós mesmos termos

perdido a força de pensar pensamentos

e a capacidade de aprender

com a experiência criadora?

(LEÃO, 2000, p. 244)

 

O questionamento que se encontra na epígrafe deste texto, por si só, já sugere um caminho que impõe a nós aquela “atitude interrogativa” de que falou Heidegger, ou seja, “a resolução de abrir-se a um poder-suportar a manifestação” de possibilidades futuras. Essa atitude, citando Leão, “nos convoca a sermos mais livremente o que fomos, descortinando o que seremos no horizonte do somos” (LEÃO, 2000, p. 46); e o que nos convoca para junto de si, o que nos interessa, solicita-nos sem cessar na medida em que nos chama para estarmos junto a si e assim persistir. Acreditamos, destarte, que colocando-nos em questão, submetendo-nos ao questionamento, estaremos prontos para aceitar o desafio de conviver com as “possibilidades”. Nesse sentido, podemos afirmar que, nesse texto, introdução não é uma questão de conhecimento cronológico, mas é imersão, salto no profundo que clama em nós. Então , a introdução aqui intencionada nada mais é que a abertura para que a força evocativa da Música aflore como aquela que nos põe em atitude interrogativa. Esse “aflorar” exige, apenas, o poder suave da simplicidade de um saber escutar aquele que surge de sua nascente. Cuidando dessa floração, escutamos o som que emerge; o som que vibra a partir da sonância, da reunião que recolhe e convoca. Acreditamos ser este o som telúrico que está contido na harmonia que afina e sintoniza entre si os campos de articulação de mundo (HEIDEGGER, 2003, p. 164).

Mas, voltemos à epígrafe. Será que está em nós termos perdido a força de pensar e a capacidade de aprender?

No nosso modo de viver apressado, vivemos em meio às afirmações e certezas. Com isso, nada mais resta para ser pensado na medida em que só ouvimos o que já compreendemos. Nesse modo de viver, já se tem visto tudo e já se tem compreendido tudo, e isso nos lança numa pretensão de possuir ou alcançar tudo. No silêncio e na opacidade da superfície, vivemos renunciando às sonoridades que permanecem e que, do fundo do abismo, insistem em balbuciar enviando-nos uma fala obscura. Vivendo na superfície, na banalidade de nosso dia-a-dia, migrando de margem à margem, não ouvimos o balbucio e, assim, nunca alcançamos as riquezas de nós mesmos e dos outros.

Isso significa dizer que, nessa migração, encontramo-nos afogados em águas superficiais e não mais auscultamos o profundo. Fala-se muito, pensa-se pouco. Fala-se tudo, ouve-se pouco . Vivendo nessa indiferença , não nos unimos e não nos forçamos nada, abandonamo-nos a tudo que cada dia nos apresenta, aceitando, assim, de certo modo, tudo. Esse “deixar tudo ser como é”, que é próprio desse ir levando a vida, encontra seu fundamento no abandonar-se à sucessão desenfreada de tarefas próprio da indiferença e na opção pelo sobrevôo que passa por cima do real. O que podemos observar a partir disso é que “a própria incompreensão humana cuida para que suas concepções sempre adiem a visão do surgimento já-sempre em vigor” (HEIDEGGER, 2002a, p. 151). Nesse abandono que adia a visão do vigor, abdicamos daquela “escolha existenciária” que escolhe “um ser-si-mesmo” denominada por Heidegger (2005a, p. 55) “ de-cisão ”. Mas dessa escolha nos ocuparemos em uma outra ocasião.

Por ora, assinalaremos que na indiferença caímos na cegueira para as possibilidades (“ex-tensão originária do destino”), abrindo mão do “retorno do possível”, ou seja, da nossa historicidade (HEIDEGGER, 2005, p. 198). Separados de nossa historicidade, despedaçamo-nos ao ponto deste dilaceramento atingir até a juntura do nosso ser. Na velocidade e na pressa, entulhamos o Mistério e, assim, renunciamos à prontidão para um outro relacionamento com o mundo. No entanto, não devemos esquecer que “o mundo concede às coisas sua essência” (HEIDEGGER, 2003, p. 19). O mundo é doador. Perguntamos, então: Estamos prontos para receber essa doação? Deixemos que o ressoar da pergunta perdure.

Por agora, em uníssono com Heidegger (2002, p. 248), acrescentaremos que a permanência na opinião cotidiana, com suas convicções teimosas e seguras, só nos faz passar ao largo do Mistério. Nessa pressa desenfreada, expulsamos e soterramos o Mistério. Consequentemente, nesse agir que não cuida do Mistério, desviamo-nos de nós-mesmos, ou seja, de nossas possibilidades. No entanto, o Mistério, por nós encalhado e entulhado, continua sempre exigindo ser posto de novo em movimento para tornar-se, outra vez, digno de questão: a arte “é o que sobra, quando se esqueceu tudo o mais” (LEÃO, 2000, p. 247). Diante de tudo isso, afirmamos que o apelo que nos convocou e exigiu de nós a decisão de trilharmos o caminho aqui proposto advém de um Mistério que não cessa de se fazer presente: A Música.

Mas, como acontece essa exigência? No que tange à Música, podemos afirmar que ela incessantemente nos atravessa, percorrendo os píncaros de nosso ser onde residem os “recadistas do morro” (SOUZA, 2005): os únicos capazes de ouvir os recados. Então, podemos afirmar que o mistério da música nos convoca, exigindo nossa participação.

Todavia, se a escolha permanecer na indiferença para essa que nos convoca, insistindo na recusa de se pensar o que deve ser pensado, o sentido da renúncia que se apresenta é o da dupla negação – a coisa não é e não está disponível - e, como é regra, constitui uma afirmação que diz que uma coisa só é e existe onde tudo está dito e nada mais resta para ser dito. Essa renúncia é a escolha que se direciona ao mais imediato, ou seja, às tarefas, regras, fugindo daquela simplicidade que é a nossa relação participativa na coletividade originária e que, portanto, exige de nós “um não poder ser sem o outro embora nenhum origine sozinho o outro” (LEÃO, 2002, p. 224).

Como vimos, a fuga que nos distancia da relação participativa é uma escolha que se dirige ao imediato. Nessa escolha, “fica indeterminado quem ‘propriamente' escolhe” (HEIDEGGER, 2005a, p. 53). Nessa fuga também nos esquivamos de nossa própria liberdade na medida em que, ao nos entregarmos à força lógica da alternativa, que nos transvia para uma resposta negativa ou afirmativa, renunciamos a nós mesmos para deleitar-nos nas facilidades das certezas. Decerto que o exercício da lógica, que nos lança nos julgamentos, por si só já exclui a possibilidade de uma decisão originária. Isso porque renuncia de antemão a trazer o próprio dito para o olhar essencial (HEIDEGGER, 2002a, p. 127). E, haveremos de ficar presos e imobilizados, sem liberdade, enquanto insistirmos em lidar apenas com o que se afirma ou se nega acerca do já pensado. Negação e afirmação, aqui, são equivalentes (HEIDEGGER, 2003, p. 184).

Bachelard nos auxilia a melhor compreender essa equivalência quando afirma que o poético não se decide numa dialética do sim e do não: “a negação opera sobre as idéias, jamais sobre as imagens” (1990, p. 113). Nesse sentido, como afirma Heidegger, o “ruído dialético” é enganador. A dialética, portanto, é uma das facilidades impeditivas que nos alojam em um “empurra para lá e para cá”, dificultando o caminho que nos leva ao encontro de um sentido profundo. A dialética lógica – “dialética fácil” (BACHELARD, 2001, p. 265), com sua análise que permanece conceitual, tende a separar tudo. Mas, as imagens são sempre uma relação direta que não se deixa aprisionar pela dialética do sim e do não: para entrar no reino do poético temos que aceitar todas as possibilidades. Isso porque a poesia fala por “imagens”, ou seja, fala pela medida cheia de Mistérios. Portanto, não devemos nos enrolar nas rodas da dialética. E para tanto, faz-se necessária uma renúncia: aquela que nos faz renunciar a esse que é por Heidegger nomeado o “veículo rápido da dialética” (HEIDEGGER, 2002, p. 48-49).

Ademais, devemos ter em conta que a renúncia a esse veículo é justamente o que possibilita o verdadeiro habitar. Apenas como provocação, lembramos que o nosso habitar é poético “... poeticamente o homem habita...” (HÖLDERLIN apud HEIDEGGER, 2002, p. 167). Esse habitar poético é a liberdade que nos retira da prisão do simplesmente dado. Prisão essa em que permanecemos cegos para as possibilidades e nos encontramos no vazio negativo de um mundo que deixou de ser mundo para ser mundo das idéias, mundo das tagarelices, dos “achismos” (HEIDEGGER, 2002a, p. 123). Ao esquecermos que o nosso habitar é poético, cortamos as asas da liberdade e, assim, dilaceramos o único que pode ver os matizes. Ensina Bachelard que somente aquele que se permite a viagem com as asas da liberdade consegue apreender os matizes (as possibilidades) na passagem de uma cor a outra: “há neste velho mundo, portanto, flores que tínhamos visto mal! Tínhamo-las visto mal porque não as tínhamos visto mudar de matizes. Florescer é mudar de matizes, é sempre movimento matizado” (BACHELARD, 2001, p. 4-5). À guisa de convite a pensar, recordamos as palavras de Heidegger: “A linguagem é a flor da boca” (2003, p. 163). Seu florescer é puro brilho e vigor. Seu desabrochar é sem porquê. Para auscultar seu desabrochar devemos silenciar.

Nesse sentido, lembremos que, para Nietzsche, só o “bem-aventurado silêncio” escuta (NIETZSCHE, 2006, p. 222). Estamos prontos para esse silêncio? Esse silêncio nos envia à majestade do Nada. Essa é a majestade de abertura do ser purificado: “Mas ser purificado não é uma garantia de renascer?” (BACHELARD, 1990, p. 114). Renascidos, aceitamos todas as possibilidades. Só que para ouvi-las, faz-se necessário o silêncio que nos doa a felicidade da completude. Por conseguinte, devemos considerar que a liberdade se dá sempre na escolha de possibilidades. Mas, estamos prontos para a liberdade?: “Liberdade! Quem compreende essa palavra... É uma palavra profunda” (Hölderlin, 2003, p. 124). Também profunda é a Música. Estamos prontos para ela?

Música, o que é isto? Ao longo dos tempos, essa questão vem ocupando páginas e páginas de livros e artigos. Fala-se muito sobre a Música. No entanto, o fato de ocupar tantos espaços nem sempre significa que ela esteja recebendo o merecido cuidado. O problema reside expressamente nisso: fala-se muito sobre a Música, passando-se ao largo da própria Música. Ora, falar sobre é sobrevoar num distanciamento que aloca a Música numa objetividade dada. Mas, argumentamos que, assim como a pergunta pelo nada, empreendida por Heidegger, a pergunta pela Música não está decidida e muito menos dada. Diante disso, a repetição da pergunta sem o devido cuidado tem servido apenas para nos enredar na trama de conceitos cristalizados que usamos para descrever essa que se coloca na questão. Transformada em cotidianidade, esquecemos aquela que se oferece como questão. Nesse esquecimento, permanecemos nas descrições. Isso porque, de tanto se falar a seu respeito, ouve-se apenas o que se fala, o discurso, e não ela mesma. No entanto, a despeito dessa tagarelice, a Música é sempre e a toda vez um envio essencial do Ser ao homem. Ela é um dizer que misteriosamente silencia a razão tagarela. Então, podemos dizer que ela é o estar em silêncio que abafa a falação.

E nisso reside o grande Mistério: a Música sempre e a toda vez se apresenta como questão, desafiando o próprio esquecimento. Então, repetimos: a arte “é o que sobra, quando se esqueceu tudo o mais” (LEÃO, 2000, p. 247). Assim é que, malgrado as voltas e mais voltas que insistimos em dar, ainda a encontramos como o limite que se apresenta e que nos desconcerta. Seu Mistério impenetrável, que não se deixa solucionar e, muito menos cristalizar em conceitos, é o que permanece e nos convoca questionando. É na sua mudez, ou seja, no seu Mistério, que se encontra o murmúrio que nos convoca sempre e nos envia em sua direção. A sua própria existência, não enquanto um episódio, mas enquanto a sua própria presença é o que se configura como Mistério e, como tal, revela-se a nós, instigando-nos.

Nesse ponto, podemos vislumbrar o nosso desafio: caminharmos em direção a essa presença misteriosa e murmurante. Ao aceitarmos esse desafio, então, estaremos assumindo a tarefa de manter iluminada a questão da música, ou seja, buscamos o perguntar histórico que mantém em liberdade e em movimento o que repousa na Música. Talvez estejamos sob o convocar da tésis da Música, aquele vigor rítmico em que os pés batem no chão e assim nos lança num movimento libertador: “um leve bater do calcanhar contra a terra nos dá a impressão de um movimento libertador” (BACHELARD, 2001, p. 29). Então, podemos perguntar: o que há com a Música? Nessa pergunta, estamos caminhando em direção ao que na Música se recolhe e, nesse recolhimento, reúne. Desocupando-nos deste ou daquele ente, podemos sentir sua presença reveladora que como totalidade é um acontecimento originário. Diante de tais constatações também poderíamos perguntar: O que há com essa questão que não cessa de ser formulada e exige de nós uma decisão originária? Será ela uma grande questão?

De antemão, sabemos que toda grande questão nunca se esgota, permanecendo sempre como provocação. Bachelard disse que o mundo é provocação, mas será que para nós, hodiernos, o mundo é realmente provocação? Então, o que é o mundo? Nessa pergunta, abre-se espaço para pesarmos com mais vagar acerca das palavras de Heidegger (2002, p. 243): “dizemos mundo e o pensamos de maneira inadequada ao representá-lo, exclusiva ou predominantemente, segundo a cosmologia ou a filosofia da natureza”. Porém, será realmente que ainda conseguiremos abrir o espaço para pensarmos o que é mundo? E o que é Música? Será ela uma grande questão que, como tal, sempre nos provoca?

Todas essas perguntas se configuram como uma necessidade de salto nas profundezas dessa questão – o que é música? -, que pelo simples fato de ser sempre a coisa posta, ou seja, res-posta, convoca-nos, convidando-nos a participar da sua revelação.

Acreditamos, outrossim, que o Mistério da Música não nos convoca para dela retirarmos conhecimentos úteis. Ela exige de nós não a atitude de um pesquisador que procura conhecimentos e fatos novos, mas uma atitude em que nos associamos à vida da forma como ela se apresenta. Essa atitude não é a de expectação de um fim. Essa atitude exige uma decisão originária. Nessa decisão aprendemos a abdicar da opinião que antes tínhamos sobre a nossa relação com o mundo. Nessa decisão também aprendemos a permitir que nenhuma coisa seja onde acontecer o Mistério.

Ora, essa é uma decisão poética. A decisão poética é a escolha que fazemos ao não recusarmos o apelo das coisas. Ela é aquela que nos faz habitar o mundo, transformando-o em nossa provocação. Logo, aceitando habitar as proximidades da intimidade vibrante do mundo, transformamo-nos e, assim, encontramos o vigor movente do mundo. Despindo-nos de todo vestuário (camisa de força), mergulhamos com liberdade nas profundezas das coisas. Nesse mergulho, expandimos, germinamos, florescemos. Isso significa dizer que esse mergulho é, na realidade, o salto que nos leva às profundezas para então renascermos, purificados e transformados, em novas possibilidades. O habitar no abismo é morar no perpétuo movimento do vigor poético que tanto mais se eleva quanto mais se aprofunda. Ali, onde o pé não mais encontra apoio e onde se precisa saltar para não cair, devemos fazer morada: no salto.

Assim sendo, o que realmente necessitamos é de uma outra renúncia, ou seja, daquela que nos ensina a abdicar da opinião que antes tínhamos sobre a nossa relação com o mundo e permitir que nenhuma coisa seja onde acontecer o Mistério. A isso Heidegger chama de “ recuperação de uma escolha ” (2005a, p. 53), ou seja, a recuperação do poder escolher essa escolha, que é o decidir-se por um poder-ser a partir de nosso próprio “si-mesmo”. Depreende-se disso, que para sair do abandono, devemos primeiro nos encontrar, mostrando-nos a nós mesmos em nossa possível propriedade: como “possibilidade existenciária” (HEIDEGGER, 2005a, p. 52).

Na recuperação dessa escolha, portanto, precisamos apenas recuperar o nosso sentido de primeira vez, aquele que nos retira do familiar e impessoal e nos reconduz ao lugar da admiração e do espanto: “todo o mundo se transforma e fazemos a experiência do verbo da existência e nascemos cada vez com a novidade do espanto e a jovialidade da primeira vez: ‘todo anjo é espantoso!'” (LEÃO, 2000, p. 247). Vale lembrar as palavras de Bachelard quando ele afirma que “a imaginação torna estranho o familiar” (2000, p. 143). A jovialidade da primeira vez é plena; nela o intelecto escrutinador e esquadrinhador ainda não se fez presente.

Ora, a música é sempre um lançar-se de jovialidade da primeira vez. Ela nos faz habitar o sentido da primeira vez. E para esse sentido, lugar do espanto, o intelecto lógico não tem parâmetros, diz Otto (2005, p. 148). Isso porque o intelecto lógico sempre esquece que a essência das coisas não pode ser calculada e deduzida daquilo que está simplesmente à mão, mas é livremente criada, ofertada. Até porque, “a essência da realidade não se dá na face nem na superfície das coisas” (LEÃO, 2000, p.172). A essência da realidade só se dá onde vem a si o Mistério, a liberdade, o encontro como doação. Essa doação exige de nós um olhar translúcido, tão livre, que, mesmo através da correlação sujeito e objeto, possamos ver sempre no real um espetáculo de originalidade. Isso implica dizer que não é o conhecimento do real advindo do intelecto lógico que nos faz amar apaixonadamente o real: amamos sem saber por quê. E mais, como falaremos mais adiante, mesmo na cotidianidade nada perde as possibilidades poéticas.

Então, renunciando à opacidade do mundo, tornamo-nos disponíveis para adentrar a transparência que permite o encontro com a essência das coisas, ou seja, com a “experiência da simplicidade do vigor” (HEIDEGGER, 2003, p. 8) das coisas. Nessa experiência, auscultamos a Linguagem. Acreditamos que essa experiência é um abrir-se, ou seja, é a própria participação essencial do homem no Mistério do mundo. Em outras palavras, consentindo a nós mesmos a decisão originária, abandonamos a opinião de que alguma coisa também seja e já seja mesmo onde aparecer o Mistério e, assim, responsabilizamo-nos pelo Mistério. A renúncia, aqui, não é um dizer não, mas um dizer sim, ou seja, aquele sim que é um não recusar-se para o Mistério. Esse é o sim que não exclui nada, muito menos o não. Portanto, a escolha de que estamos falando nos impele a estarmos diante do Mistério e buscarmos voltar o olhar – aquele olhar translúcido de que fala Leão (2000, p. 172) - para ele.

Aceitando o Mistério, renunciamos às tagarelices. Essa renúncia não é nem renegação e nem perda, pois é antes “um dever graças a...”, agradecimento (HEIDEGGER, 2003, p. 185). Agradecimento que é gesto favorecedor. Ora, para Heidegger (2003, p. 187), a renúncia em seu peso mais próprio é o não recusar-se ao Mistério. Mistério que é a condição das coisas, assim como é o suporte que sustenta distância e proximidade. E a distância é próxima sendo experiência do Mistério. Decidindo-nos pela experiência do Mistério da Música, ou seja, daquilo que se dá a pensar sem exigir nenhum processo de transformação, estamos renunciando aos modelos historicamente estabelecidos. Em outras palavras, não precisamos saber errar nosso idioma para permitir que a Música fale, já que ela tem seu próprio idioma. Com ela fazemos a experiência do indescritível, ou seja, experimentamos puramente a essência do pensar a relação e deixamos reinar o simples de suas múltiplas dimensões. Renunciando, fazemos a experiência: “o que nos move a fazer experiências é o impulso daquilo que não se submete às opiniões prévias” (GADAMER, 2005, p. 478). Etimologicamente, experiência é “por em perigo”. Desse modo, evidencia-se que, ao fazermos a experiência da proximidade do Mistério da Música, estamos nas proximidades do lugar onde cresce o que salva.

Ora, onde mora o perigo

É lá que também cresce

O que salva. (HÖLDERLIN apud HEIDEGGER, 2002, p. 31).

 

Assim é que, neste texto, colocando-nos no lugar de um questionamento – a Música: aquilo que não se submete às opiniões prévias -, estamos nos propondo dar o salto. Dar o salto significa abdicar de nossa relação anterior com o mundo. Mais do que isso, também significa permitir a nós mesmos sair da prisão para nos aventurarmos na experiência da liberdade que essa renúncia propicia. Neste salto, o que fica para trás é a suposta segurança do familiar. Podemos, nesse sentido, evocar as palavras de Bachelard (2001, p. 64-70), “o salto é uma alegria primeira”. Será a Música o próprio salto?

Lembramos que, etimologicamente, o salto também é dança. No salto vivemos um vôo que nos rejuvenesce; nele a idade já não pesa; as horas não soam; sua viagem não segue a linearidade da superfície. Pelo questionamento que é a Música, tornamo-nos “penhores do amor”, ou seja, “crianças infantes” e empenhamo-nos no salto que vai dos conceitos para a abertura que possibilita tudo, incluindo os próprios conceitos. O salto é, consoante Heidegger (1999, p. 43) o “fundo misterioso da liberdade”. Ao darmos o salto, libertamo-nos ao ponto de não mais estarmos presos ao modo de falar dos conceitos. Aquele que age na experiência do salto, assim, origina para si o próprio fundo em que se funda. Esse salto que origina para si seu próprio fundo é o “salto originário” (HEIDEGGER, 1999, p. 37).

Por outro lado, esse movimento de elevação é apresentado por Bachelard como aquela viagem para cima em que o “impulso vital” é o “impulso hominizante”. É no salto que se constituem os caminhos da grandeza: “todo caminho aconselha uma ascensão”. Com esses ensinamentos, Bachelard chega a enunciar um aforismo: “quem não sobe, cai”, concluindo que “o homem, enquanto homem, não pode viver horizontalmente” (2001, p. 11). No salto, a volta a terra não é uma queda (BACHELARD, 2001, p. 29), pois voltando ao chão, uma nova impulsão nos devolve imediatamente a liberdade do vôo: a liberdade do salto.

Mas não é só isso. No salto deixamos para trás toda e qualquer segurança fácil do familiar. Assim, na experiência do salto, os hábitos familiares - aqueles que nos colocam no simplesmente dado - tornam-se a inércia. No salto, tudo que estava perdido na preguiçosa e inerte familiaridade revela-se em sua mobilidade e se transforma em mundo novo. Na dimensão de mobilidade, nesse âmbito do questionamento, movemo-nos num lugar que nada tem a ver com uma busca de decifração de algo. Isso porque, para decifrar, torna-se sempre obrigatório adentrar no mundo da tagarelice. Nesse sentido, nossa renúncia nos conduz ao momento em que saltaremos por cima de todas as tagarelices de um processo de desfiguração e decadência que se prende ao que é objetivamente dado, para tratarmos de reconquistar a força evocativa da Música.

A mobilidade do tom (matiz, tensão, vigor) poético da Música permanece sempre em questão. E a reconquista aqui proposta caminha em direção ao que sai/brota da própria Música; aquele desabrochar que se abre, e o que nesse despregar-se se manifesta e nele se retém e permanece. Certamente estamos falando de uma reconquista do Ser da Poesia que impera na Música, uma “superioridade de espírito vigorosa” (HEIDEGGER, 1999, p. 55), em razão da qual podemos receber sempre sua fala como se ela, a Música, sempre e toda vez se exprimisse e fosse interpelada pela vez primeira. Em síntese, pressentimos que estamos caminhando no vagar que nos conduzirá ao vigor dominante daquilo que brota e permanece na e da Música.

Acrescentamos, igualmente, que tal tarefa exige de nós o verdadeiro saber, ou seja, aquele que é o poder manter-nos na verdade da Música; poder estar na sua manifestação, suportando-a. Assim, qualquer conhecimento, por mais amplo que seja, mas que seja modelado pela imperiosa necessidade – aquela que manda e governa - não é o verdadeiro saber e não dá conta do saber que nos conduz à Música. Como já mencionamos, o verdadeiro saber supõe uma resolução de abertura. Só essa resolução poderá nos propiciar um poder suportar a manifestação da Música.

Quanto a isso, estamos conscientes dos riscos que corremos. Até porque podemos cair na armadilha da tagarelice acerca da Música e, nessa armadilha, esquecermos a questão. Mas também sabemos que esse risco é só nosso; nunca da Música. Não importa o caminho que venhamos a percorrer. Isso porque, a Música não se modifica. Ela continuará sendo o que é e tal como é. O caminho sim é nosso. O amplo é a Música. Nosso caminho nunca afetará a Música em si mesma. Ela permanecerá assim como se nos faz manifesta: com o seu permanente caráter questionável. Com seu Mistério.

Portanto, o caminhar que estamos nos propondo abre apenas o espaço – em nós – para que a Música possa revelar-se nessa caminhada. Nessa caminhada nos pomos a descoberto, posto que a Música se transforma a si mesma questionando e projeta por sobre e através de nós uma nova dimensão. Trata-se, apenas, de experimentarmos a Música, tal como ela é, sem nos deixarmos seduzir por teorias apressadas. O que emana sempre e toda vez da Música nos dá o seu Ser de modo muito mais imediato e verdadeiro do que poderia transmiti-lo qualquer descrição ou inspeção. A descrição de nada serve; ela não domina os movimentos do vigor poético da Música.

Ora, o movimento do vigor poético da Música nos coloca diante de uma convocação que implica um suportar o silêncio para que verdadeiramente ocorra a escuta. A escuta da Música Inaudita do Ser. Nessa renúncia, que com um tom de quietude nos permite estar próximos ao que se retrai e assim se reserva para um anúncio inaugural, cuidamos do Mistério. Cuidamos do Mistério da Música. Além disso, aprendemos com Heidegger que o primeiro passo em direção a esse cuidado, verdadeira vigília, é “o passo atrás, o passo que passa de um pensamento, apenas, representativo, isto é, explicativo, para o pensamento meditativo, que pensa o sentido” (2002, p. 159). Resta-nos, então, a tarefa de darmos o passo atrás para pensarmos o sentido da Música. Esse “passo atrás instala-se numa correspondência que, interpelada pelo ser mundo dentro do mundo, responde-lhe em seu próprio âmbito” (HEIDEGGER, 2002, p. 159). Não se trata de uma simples mudança/troca de posição, mas sim de uma correspondência que nos aquieta, entreabrindo-nos para dar lugar ao apelo da verdade do ser, na qual se coloca e acontece o corresponder. Essa quietude só se alcança no corresponder que silencia.

O silêncio, então, é o corresponder àquela “consonância do quieto”, apresentada por Heidegger, ela mesma sem som (aquele emitido tanto na língua falada como na língua escrita), inerente à reunião articuladora de tudo que aparece no mostrar múltiplo que deixa o que se mostra repousar em si mesmo, aquietando-se. Porém vale lembrar que, diferente de tudo que aqui estamos falando, para a ciência, o silêncio e a obscuridade reduzem-se à ausência de excitações, auditivas no primeiro caso, visuais no segundo. No entanto, nosso caminho nos permite afirmar que, antes de tudo, a quietude da consonância em nada se assemelha àquela descrita pela ciência. A quietude aqui referenciada nos retira do falatório onde escutamos e compreendemos apenas a algazarra para que possamos verdadeiramente auscultar. A consonância do quieto acontece, somente, na imensidão dos espaços do silêncio. Silêncio esse que nos devolve a possibilidade de auscultação. Então a quietude do vasto, do profundo e do ilimitado só principia, ou seja, instaura o seu reino, no silêncio. Na quietude é impossível acontecer a inversão da relação de soberania em que o homem se comporta como se fosse criador e soberano da linguagem. A linguagem é a soberana do homem e não o contrário. A linguagem é que fala e o homem corresponde, ou seja, escuta e pertence ao apelo da linguagem.

Afinados pela quietude – o poder ser para possibilidades originárias ao qual pertence o nosso “nada inconfundível” (HEIDEGGER, 2005a, p. 75), ou ainda o “nada existencial” (HEIDEGGER, 2005a, p. 73) que não é privação ou falta, preparamo-nos para o anúncio inaugural. Aqui podemos receber o sentido da quietude como aquela “falta, que nem é privação e muito menos algo negativo” (HEIDEGGER, 2003, p. 214). Portanto, para percorrermos o caminho de uma correspondência é mister que percorramo-lo no recolhimento do pensamento que cuida e que sempre se renova, que presta atenção ao aceno em que o ser se acena. O aceno é aquele da linguagem, isto é, aquele que acena a essência de uma coisa.

O corresponder, então, é escuta e questionamento. Mas, só escuta verdadeiramente quem se aquieta. Aquietar diz, aqui, adentrar o lugar do repouso onde cessa o burburinho dos conceitos. Mas, não é só isso. Aquietar é, também e principalmente, colocar-se em uníssono. Assim é que, afinados pela quietude, questionamos. “Questionar é a piedade do pensamento”, afirma Heidegger (2003, p. 135). Em outras palavras, é o amor daquele que recorda, e recordando abre sulcos no espaço de sua memória, espaço cultivável, campo de legados. Agindo no âmbito da piedade, entramos na harmonia e sintonia articuladoras com o Mistério e escutamos o seu consentimento. Ressaltamos que, consoante Heidegger, na Grécia, arte era piedade (2002, p. 36). No desvelo piedoso percorremos o caminho que leva a verdade ao esplendor superlativo.

Por fim, quanto mais nos avizinharmos daquele salto por nós acima mencionado, com maior clareza começarão a brilhar os caminhos. Gostaríamos de lembrar que Nietzsche associa o salto àquele que é leve e ágil, que agita as asas prontas a voar. Nietzsche chama-o de “amigo dos pulos” (2006, p.344), afeiçoado aos saltos. Será que ainda resta em nós essa afeição aos saltos? Só aquele que é pura mobilidade vivaz, mobilidade de abertura pode agitar as asas e, por essa mobilidade alada de abertura abandonar o curso ordinário (o simplesmente dado) das coisas. Depreende-se disso que só nos lançamos no salto porque nos tornamos leves pela força poética, força ligante bem-aventurada (BACHELARD, 2002, p. 137). Ao cabo dessas palavras, devemos relembrar que, para Heidegger (2003, p. 131), a experiência do salto, pensada como experiência é o mesmo que percorrer um caminho: “o questionamento trabalha na construção de um caminho” (HEIDEGGER, 2002, p. 11). Somente no aberto é possível construir caminhos: “perguntar quer dizer colocar no aberto” (GADAMER, 2005,I, p. 474). Adentremos o aberto da Música para que ela se diga!


REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. Fragmentos de uma poética do fogo . 1ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1990.

___________________. A água e os sonhos . Ensaios sobre a imaginação da matéria. 3ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

 

___________________. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

 

___________________. O ar e os sonhos . Ensaio sobre a imaginação do movimento. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

 

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Como a criança que ainda não fala. Para ouvi-la devemos seguir algumas indicações de Bachelard (2001, p. 247): por o nosso ouvido que ausculta (todo o nosso corpo) de acordo com essa voz íntima informulada, com essa voz unicamente aérea, com essa voz que se abafaria se abalasse as cordas vocais e que não tem necessidade senão do sopro para falar: é o sopro que fala, é o sopro que constitui o primeiro fenômeno do silêncio do ser. Ao escutarmos esse sopro silencioso, começamos a ouvir o silêncio que respira e aprendemos que esse movimento habita em nós. Começa , então, o reino infinito do silêncio aberto (BACHELARD, 2001, p. 248). Na audição real, essas vozes se perdem, abafam-se, ensurdecem-se.

Pensar é a serenidade e o cuidado em face ao que é digno de ser pensado. É expor-se ao mistério.

Ver Nietzsche ( 2006, p. 222).

Consoante Gadamer (2004a, p. 444), a indiferença surge quando não compreendemos mais, ou seja, a total indiferença advém da interpretação conceitual imposta à coisa. Por outro lado, acrescentamos que, consoante Heidegger (2000, p. 20), todo conceito geral, válido por igual para todo o especial, é o indiferente; aquela essência que nunca pode chegar a ser essencial. No entanto, é o essencial que nos força à decisão de habitar poeticamente o mundo.

A quadratura.: céu e terra, mortais e imortais.

Esse “apenas” tem o sentido da escolha que não se dá no “simplesmente dado”.

Ver Nietzsche (2006, p. 180): “são as palavras mais silenciosas as que trazem a tempestade”.

Ver Heidegger 2003, p. 25.

Ver Heidegger, em Ser e Tempo, 2005, p. 229 acerca do “falatório” e p. 224 acerca do “silenciar”. Heidegger (2002, p. 167) apresenta o falatório também como um escrever e uma transmissão de coisas ditas.

Para Bachelard (2001b, p. 2-3) é a imaginação que tem asas. E a imaginação é antes de tudo mobilidade espiritual, maior, mais viva, vivaz. O papel da imaginação é o da sedução. Sedução que nos faz abandonar o curso ordinário e familiar das coisas. Assim a imaginação é o que nos lança a uma nova vida onde o intelecto lógico ainda não legislou. As asas da liberdade sempre nos deixam ao sabor dos ventos. Nela estamos sempre em viagem.

 

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