UM ROSTO EM FUGA: O AUTO-RETRATO CARDOSIANO EM DIÁRIO COMPLETO

Odirlei Costa dos Santos – Doutorando em Teoria Literária – UFRJ

 

        Lúcio Cardoso pretende aliar o desvelamento da verdade do mundo a uma profunda busca da compreensão de si. Sua identidade, no entanto, está em constante fuga e o distancia do que poderia inferir como imagem do eu. A escrita íntima de Lúcio Cardoso adensa ainda mais os contornos enigmáticos em torno de sua existência, graças à difícil dissociação do espírito trágico que o autor reconhece em si mesmo daquele que julga perceber no desvelar do mundo. Sua “visão expressionista da tragédia humana” (CARELLI, 1997: 636), nas palavras de Mario Carelli, é representada pelas imagens do eu a projetarem sobre o mundo suas inquietações. A verdade do eu é ainda mais nebulosa pela aproximação da prosa das nuances da transfiguração poética. Como nos diz Carelli, no artigo “A música do sangue”:

Na hipertrofia do eu encontramos chaves do seu universo imaginário em que os sentimentos, as paixões, as interrogações escapam a qualquer dogmatismo pois somente a imagem poética, com seu automatismo visual, pode transmitir ao mesmo tempo o pavor, a angústia, a solidão, a atração intensa pela vida. Lúcio não pode velar os terrores do abismo pela embriaguez da arte. Ele projeta sua vertigem no mundo e transfigura os dados do real (CARELLI, 1997: 630).

 

         Pelas dimensões desta “hipertrofia do eu”, a identidade do narrador dificilmente é definida como unidade. A personalização a que Lúcio almeja é a de ser múltiplo sem deixar de ser um. A construção de seu auto-retrato não abrange os moldes tradicionais, pois ele não é uno, fixo, estável e aparenta difusas contradições. Está mais próximo de um painel fragmentado, composto por peças de um mosaico que nunca esboça uma imagem definitiva. É relevante ressaltar, porém, que em Diário completo [1] não é apresentado um personagem puramente imaginário, tal qual é possível encontrar em uma autobiografia ficcional. A imagem do sujeito empírico, no entanto, é sobrepujada pelo domínio do eu poético em sua prosa diária. As multiformes imagens do eu cardosiano geram distintas indagações ontológicas de seu estar-no-mundo, a partir do moto perpétuo que é o seu pensamento em torno da vida e da morte. Estas imagens não são instintivas ou descritas a esmo, mas advindas de um profundo processo de introspecção, como diz Lúcio a respeito de sua identificação pessoal: “Há uma inércia, uma estabilidade em mim que impede o meu arrolamento na hierarquia dos valores manuseáveis; não sou bom senão como medida do desequilíbrio e desconforto” (DC, 104). Diário completo traduz as perspectivas literárias que permitem ao autor acionar uma gama de reflexões ontológicas que circundam a imagem de si: “Todo o meu ser é uma aventura impossível de sonho e de extermínio” (DC, 177). Vejamos, de antemão, como determinadas estratégias da análise textual do diário de Lúcio Cardoso poderão fomentar a perscrutação dos mecanismos de criação simbólica do auto-retrato cardosiano.

 

2.1  A sugestão do enigma

                 

       Longe de submeter as imagens do eu cardosiano, tal qual aparecem em seu diário, às limitações da figura civil (que poderia ser analisada através de biografias, depoimentos e fontes afins de investigação), é possível elucidar a criação de ambigüidades, distorções, fragmentações, evasões e obliqüidades das imagens cardosianas, graças à possibilidade de leitura da escritura íntima a partir de sua verdade lúdica e do potencial literário do diário como um jogo, particularmente um jogo íntimo. As questões ontológicas e a busca de uma verdade do eu estão sob a influência das ciladas inventadas por este jogo e das estratégias da linguagem que permitem a formação de um auto-retrato, deixando atrás de si o mistério indevassável do eu, como se depreende das palavras do autor: “A finalidade de um retrato não deve ser a de esclarecer, mas de contornar, sugerindo o enigma. De esforço em esforço, atingir a fisionomia plena, mas com o seu segredo, que é o que importa” (DC, 212). O jogo íntimo permite fornecer ao leitor pistas intrincadas e pseudo-centros de orientação que recaem sempre no velamento e na instauração da obscuridade:

O segredo é simples, não se arrisca tudo no jogo. Ou dizendo de outro modo, não podemos romper totalmente com os laços que nos prendem aos pontos de origem. Isto disto assim pode parecer um tanto enigmático, mas confesso que não é fácil exprimir o pensamento que me ocupa. Somos como parcelas de um único todo, lançadas numa pista inclinada – quando menos voltamos o olhar para trás, mais nos distanciamos de nossa verdadeira essência (DC, 77).    

 

         A referência ao escritor Roland Barthes é providencial para possibilitar a abertura do discurso em Diário completo e estender o alcance do deslinde das imagens cardosianas. Quando o diário é tratado como Texto (seguindo aqui uma estratégia barthesiana), as possibilidades de significação se expandem. Em O rumor da língua, Barthes afirma que o campo do Texto “é do significante; o significante não deve ser imaginado como ‘a primeira parte do sentido', o seu vestíbulo material, mas sim, ao contrário, como seu recuo”. Acrescenta que “o infinito do significante não remete para qualquer idéia de inefável, mas para a de jogo” (BARTHES, 1984: 56). As possibilidades do diário como Texto se ampliam, pois “o texto é plural. Isto não quer apenas dizer que tem vários sentidos, mas que realiza o próprio plural do sentido: um plural irredutível” (BARTHES, 1984: 58).

         Os diários, quando tratados como Obra, serviriam para “esclarecer” informações sobre a pessoa-civil, que possivelmente estaria exposta no painel autobiográfico. Caberia à crítica procurar as chaves do sentido da produção literária do autor em biografias, entrevistas, ensaios e até mesmo no diário já que, ainda segundo Barthes, “a explicação da obra é sempre buscada do lado de quem a produziu, como se, através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o autor, a entregar a ‘confidência'” (BARTHES, 1984: 50). Já o Texto percorre um viés literário diferente, por estar desvinculado das insígnias impostas pelo demiurgo ou “semideus” da Obra, como aponta Barthes: “a sinceridade da enunciação, verdadeira ‘cruz' da moral literária, torna-se um falso problema: o eu que escreve o texto nunca é mais, também ele, do que um eu de papel” (BARTHES, 1984: 59).

         No momento em que cai por terra a necessidade do leitor de decifrar os códigos impostos pela “figura paternal” do Texto, a escritura não mais se fecha; o potencial de sentido se expande e descortina-se o deslinde, como se a estrutura pudesse ser “desfiada” como uma malha de meia que sempre escapa. O Texto não mais possui fechamento e assume ares de um jogo, o qual exige que o leitor jogue o jogo de representá-lo. No caso do diário, os estratagemas do jogo íntimo nascem a partir dos modos do autor desvelar-se e ocultar-se. O jogo se fortalece quando o diário nasce como uma possibilidade de experimentação da escrita, sendo mais fiel aos desígnios de criação do autor em prol desse jogo, sem submeter-se aos sistemas de representatividade oriundos do real, como Lúcio permite entrever: “Sem dúvida, o ideal como ‘diário' não é um processo constante de auto-análise (...) e sim alguma coisa que participe da invenção. Gênero híbrido, a ser tentado” (DC, 86).           

         O gênero híbrido permite que o autor realize estratégias literárias que possam romper os limites entre o discurso de um eu verídico e o constructo literário ficcional. Wander Melo Miranda, em Corpos escritos, lembra que o ato autobiográfico se apresenta “não como um simples enunciado, mas como um ato de discurso ou, mais do que isso, um ato de discurso literariamente intencionado” (MIRANDA, 1992: 25). Como afirma Barthes, “a justificação de um Diário íntimo (como obra) não pode ser senão literária, no sentido absoluto, mesmo que nostálgico, da palavra” (BARTHES, 1984: 34).  Lúcio Cardoso constrói seu diário conhecendo as limitações da “verdade” imposta aos gêneros íntimos, principalmente quando cede mais espaço à ocultação do que à exposição in totum dos fatos: “O que é criminoso é representar tudo o que eu sei – a vida, para ser vivida, é uma abstinência da verdade” (DC, 18). Isso permite que, na análise proposta, enfrentemos o texto cardosiano em busca do que Roland Barthes denominou como verdade lúdica em O rumor da língua. O diário não existe para dizer uma verdade e sim para criar a sua própria através da linguagem. Isso nos torna possível “abrir” o diário cardosiano e “desfiar” a tessitura íntima, não para vicejar o que o autor forja como mentiras ou verdades, mas para abandonarmos o corpo ao jogo sui generis da escrita íntima. Neste sentido, recorremos às orientações de Barthes em seu ensaio “Escrever a leitura”:

Abrir o texto, propor o sistema de sua leitura, não é apenas pedir e mostrar que podemos interpretá-lo livremente; é principalmente, e muito mais radicalmente, levar a reconhecer que não há verdade objetiva ou subjetiva da leitura, mas apenas verdade lúdica; e ainda mais, o jogo não deve ser entendido como uma distração, mas como um trabalho – do qual, entretanto, se houvesse evaporado qualquer padecimento: ler é trabalhar o nosso corpo (...) para o apelo dos signos do texto, de todas as linguagens que o atravessam e que formam como que a profundidade cambiante das frases (BARTHES, 1984: 28-29).

     

         Definidos os modos de abordagem de Diário completo, pensemos nas possibilidades de leitura do auto-retrato cardosiano. A definição de auto-retrato a ser utilizada advém das reflexões de Wander Melo Miranda em Corpos escritos, ao propor a construção do auto-retrato “segundo um sistema de recorrências, retomadas e superposições de elementos homólogos e substituíveis, resultando ser sua principal aparência o descontínuo, a justaposição anacrônica e a montagem” (MIRANDA, 1992: 36).  A linguagem não existe para traduzir a imagem deste auto-retrato tal qual o autor imagina, mas para servir de laboratório para a criação de imagens, já que “o auto-retrato não conta ‘o que fez', mas tenta dizer ‘quem é', embora sua busca não o conduza à certeza do eu, mas ao seu deslocamento através da experimentação da linguagem” (MIRANDA, 1992: 36). Modos de formulação, experimentação e construção acompanham a imagerie do auto-retrato nas páginas do diário cardosiano: “Trabalho na composição de minha identidade com um furor cego e desatinado; que Deus me dê forças para revelar inteira a minha essência de frio e de demência” (DC, 121). A idéia de composição e, de algum modo, de auto-retrato forjado pelos estratagemas da linguagem é reforçado pelo próprio Lúcio:

Alguém, creio que um desses poetas novos que começam com tanto orgulho e tanta ingênua hostilidade, afirmou que eu me repito. Discordo em parte: apenas me componho. Com pedaços do mesmo colorido, é certo, até poder atingir o todo harmonioso que forma o painel. O meu painel. Se conseguirei alcançar o objetivo, não sei, mas não tenho nenhum receio de reforçar as voltas de um desenho que ainda julgo muito longe de estar terminado (DC, 107-108).

 

         Notamos que o eu civil é sobrepujado pela experimentação da linguagem, tal qual nos lembra Wander Melo, e permite pensar que a vida íntima, ao demudar-se em texto (como o termo “bio-grafia” em seu sentido etimológico), possui uma relação sui generis com a escrita, menos por sofrer modificações do que por assumir uma configuração cujos contornos são os que a própria linguagem edifica. Neste momento, o escritor regressa à situação de afastamento do seu texto, segundo Blanchot em O espaço literário: “Ninguém que tenha escrito a obra pode viver, permanecer junto dela. Esta é a própria decisão que o dispensa, que o exonera, que o separa, que faz dele o sobrevivente, o ocioso, o desocupado, o inerte de quem a arte não depende” (BLANCHOT, 1987: 14). Ou como aponta Paul de Man em Alegorias da leitura, “escrever sempre inclui o momento de despossuir, em favor do arbitrário jogo de forças do significante e, do ponto de vista do sujeito, isso só poder ser experimentado como um desmembramento, uma decapitação ou uma castração” (MAN, 1996: 330). Lúcio se sente cada vez mais despojado desta escrita diante do que julga ser sua incapacidade de expressão íntima.

 

2.2  Estranho familiar

          

       Em certos fragmentos, Lúcio se refere à existência de um outro de si mesmo (como uma espécie de duplo), enquanto que em outros trechos a duplicidade é substituída por desdobramentos múltiplos do eu. Tal perspectiva permite várias possibilidades de leitura da obra. No primeiro caso, constata-se a presença de uma persona interior desconhecida pelo autor, como podemos observar neste fragmento: “Eu me analiso, espio, condenso meus sentimentos. No silêncio do quarto em que escuto meu coração bater, quase não me reconheço. Mas é forçoso convir, ESTE também sou eu. Mas eu, quem sou? Quem?” (DC, 101). O processo de auto-investigação sempre desnuda o desconforto quando o eu se depara com o outro de si.  “Quem é este eu que, aos latidos de um cachorro na distância, recorda sempre uma casa, grades, (...) que insiste sempre em reaparecer ao mesmo sinal, e que me é tão familiar, sem que eu consiga fixar o que seja, do que se trata, onde, quando, como?” (DC, 221). No ensaio “(Auto)biografia: os territórios da memória e da história”, Bella Josef lembra que “toda escrita do eu pressupõe a estranheza do sujeito que se vê como outro de si próprio: Je est un autre (Rimbaud)” (JOSEF, 1996: 300).  Este outro a assaltar a escrita estabelece constantemente pontos de confluência com forças monstruosas: “Acho apenas que é a explosão de um ser recôndito e monstruoso, uma pura vitória do outro que irracionalmente nos habita” (DC, 22).

         A anamnese constante do outro de si mesmo e a perplexidade diante da força com que ele incorpora impulsos de natureza destrutiva possibilitam o despertar do Unheimlich, segundo Sigmundo Freud no ensaio homônimo, de 1919. Por ele, Freud infere que o estranho (Das Unheimlich) é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar e deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz (FREUD, 1976: 243). O sentimento Unheimlich, de natureza familiar, mas relegado à obscuridade, ao emergir à superfície, traz consigo sensações de incômodo, inquietude e desconforto e, de acordo com seu grau inusitado de efeitos, um possível transtorno, uma perturbação, uma ameaça ao esteio emocional individual. O “estranho” não é o novo ou o alheio e sim o familiar que passou por um crivo de interditos, sufocando o desejo e transformando-o em conteúdo recalcado. Para Lúcio Cardoso, a sensação de Unheimlich é uma constante e o acompanha por várias passagens de seu diário:

De novo, sono perturbado de pressentimentos e visões angustiosas. Uma a uma desfilam faces conhecidas, e parecem exprimir um aviso que não compreendo e que há muitos e muitos anos se repete. Acordo com o coração pesado, cheio de uma nostalgia, de um remorso que não consigo explicar. Sei apenas que é um sentimento – ou seria melhor dizer uma sensação? – que me vem das regiões mais distantes, mais intransitáveis do ser, e que só aparece quando estou dormindo, livre portanto das camadas impostas pela força do cotidiano (DC, 78).

        

       Como observamos no fragmento transcrito acima, o sentimento familiar e obscuro pode vir à tona – e não se sabe até que ponto impossível de ser submetido novamente ao controle. À literatura, diante do despertar do Unheimlich, compete menos se debruçar sobre as causas do eterno retorno do instinto reprimido do que explorar a força com que ele retorna ao eu da escrita. Clarice Lispector, em Perto do coração selvagem (1944), cujo título nasceu por indicação do próprio Lúcio Cardoso, daria expressão ao medo diante do estado de retorno do desejo: “Quem se recusa o prazer, quem se faz de monge, em qualquer sentido, é porque tem uma capacidade enorme para o prazer, uma capacidade perigosa – daí um temor maior ainda. Só quem guarda as armas a chave é quem receia atirar sobre todos” (LISPECTOR, 1994: 78). A carga de estranhamento que o retorno do desejo impõe tem relação proporcional à força da transgressão. Georges Bataille, em O erotismo, lembra que “o limite não é dado senão para ser excedido. O medo (o horror) não indica a decisão verdadeira. Ele incita, ao contrário, num contragolpe, a ultrapassar os limites” (BATAILLE, 1987: 135). A condição do desejo que Lúcio consegue vislumbrar está relacionado ao potencial para viver o Mal, como observa:

A maior maldade, a única incomensurável, é a maldade imaginada. Durante muito tempo, sem conhecer meus próprios limites (quem poderá jamais se vangloriar de ter viajado impunemente até os bordos extremos que nos circundam?) julguei que de dentro da minha casa, das minhas afeições e dos meus compromissos poderia sondar todos os horizontes da culpa e do pecado. Ora, não há angústia e nem sentimento do mal que não pressuponha uma capacidade inata para o mesmo. Se não fui muito longe, se tudo o que me rodeia me deteve na estranha jornada, pelo menos entrevi em raros instantes o que é o fruto luminoso e solitário do desastre. Não acredito no homem senão através da convulsão. (DC, 169)

 

         A formação do outro possui em sua gênese, segundo Freud, a “identificação de uma pessoa com outra, de sorte que perde o domínio sobre seu próprio eu e coloca o eu alheio em lugar dele próprio”, e que conduzindo ao que considerava como o “desdobramento do eu, divisão do eu, substituição do eu; finalmente com o constante retorno do semelhante, com a repetição dos mesmos gestos faciais, características, destinos, atos criminais” (FREUD, 1976: 245). O retorno possui plena relação com o impulso vital reprimido que retorna, pois reúne em si, ainda de acordo com Freud,

todas as possibilidades de nossa existência que não encontraram realização e que a imaginação não se resigna a abandonar, todas as aspirações do eu que não puderam cumprir-se por causa de circunstâncias adversas exteriores, assim como todas as vontades suprimidas que produziram a ilusão do livre anseio (FREUD, 1976: 245).

 

         Diante da força e do ímpeto deste outro, que assume o signo do pecado e da fatalidade, Lúcio sente um misto de admiração, medo e culpa. Pela linguagem, este outro se fortalece e adquire tamanho potencial para viver o desejo que o autor não consegue desligar-se do sentimento Unheimlich que tal aparição suscita: “Como suportar certas contradições, certos erros, certas deficiências e obscuridades? Como suportar essa horrível atração do caos? Como juntar os dois eus diferentes que me formam?” (DC, 36). Novamente lembramos Bataille quando este expõe a perturbação do ser diante dos excessos da transgressão: “Se experimentamos esse medo, nós os sabemos, é para responder à vontade inscrita em nós para exceder os limites. Queremos excedê-los e o horror sentido significa o excesso a que devemos chegar, a que, se não fosse o horror prévio, não poderíamos ter chegado” (BATAILLE, 1987: 135). Os elementos de transgressão que o outro de si mesmo descortina lançam o autor de Diário completo à sensação fatal de um processo iminente de auto-destruição, consoante suas próprias palavras:

Há momentos, como este, em que me sinto todo animado de instinto e chama, de coragem e... ousemos a palavra: duplicidade. É extraordinário o número de recursos que encontro no meu íntimo – e digo a mim mesmo que é isto também o que me torna tão perigoso, que me leva tão continuamente a remotas distâncias e me faz caminhar com orgulho e obstinação junto às estreitas veredas da autodestruição. (DC, 55)

      

         Em outros fragmentos, é possível perceber que este outro a que Lúcio Cardoso se refere é fragmentário, múltiplo, disperso: “Custo a reconhecer esses numerosos outros que me habitam e que ultimamente conduzem os meus gestos” (DC, 45). As imagens tornam-se prismáticas: “Somos outros, somos muito diferentes do que o que fica dito num caderno como este. Somos ainda muito mais o que não cabe aqui, os impulsos incertos e sem categoria definida” (DC, 152). Tal multiplicidade nasce da atitude do escritor que, ao falar de si, fragmenta sua composição imagética e estabelece possíveis contradições e distorções nas figurações do eu. Em Roland Barthes por Roland Barthes (1975), o autor francês prefere apontar tais distorções como dispersões naturais à formação da imagem do homem.

Para a metafísica clássica, não havia nenhum inconveniente em “dividir” a pessoa (Racine: ‘Trago dois homens em mim”); muito pelo contrário, provida de dois termos opostos, a pessoa funcionava como um bom paradigma (alto/baixo, carne/espírito, céu/terra); as partes em luta se reconciliavam na fundação de um sentido: o sentido do Homem. Eis por que, quando falamos de um sujeito dividido, não é de modo algum para reconhecer suas contradições simples, suas duplas postulações etc; é uma difração que se visa, uma fragmentação em cujo jogo não resta mais nem núcleo principal, nem estrutura de sentido: não sou contraditório, sou disperso (BARTHES, 2003: 160).

     

         Difração é o fenômeno da física que ocorre quando ondas mecânicas ou eletromagnéticas contornam fendas ou obstáculos que lhes impedem a propagação retilínea. A construção do auto-retrato, similar à propagação de ondas que enfrentam tais obstáculos (no diário, constituídos pelas manobras simbólicas que compõem ambigüidades, evasões e obliqüidades do jogo íntimo), não alcança uma imagem livre de possíveis distorções. O autor, ao falar de si, acaba realizando a difração de seu auto-retrato, que conduz à fragmentação da imagem do eu e a “dispersões” de suas características pessoais, distante de uma unidade imagética, na qual mesmo Lúcio parece não acreditar: “Não posso resignar-me a ser apenas o que sou neste instante – este de agora é apenas uma das possibilidades escolhidas a esmo, e que se demora, sem forças para abandonar a forma atônita que habita. Este é possivelmente o erro, pois devemos ser tudo ao mesmo tempo, sem sermos definitivamente coisa alguma” (DC, 80). A difração das imagens do eu abre as possibilidades do jogo íntimo e aciona o pensamento em torno do auto-retrato prismático, impedindo o fechamento em torno da identidade única e imparcial.

         As variações na formação das imbricações do auto-retrato abrem as estratégias de leitura do jogo íntimo diante do campo de significantes representado pelo caleidoscópio de possibilidades imagéticas. As dispersões das imagens pertencem às inversões do “jogo especular”, tal qual aponta Fernando Fiorese em seu livro Murilo na cidade: os horizontes portáteis do mito, ao afirmar que o auto-retrato de Murilo Mendes de A idade do serrote

não apenas reitera o processo de hibridação dos modos de “escrita do eu” que funda a sua prosa memorialística. Também acresce aos paradoxos das prosas não-ficcionais os verbos relacionados ao jogo especular: mostrar, duplicar, mimetizar, inverter. Pois a pose fluida e metamórfica do “personagem de enigma”, a fotografia permanentemente retocada pelo acúmulo de detalhes “inúteis”, a dispersão e contaminação da imagem pessoal por figurações alheias e mesmo a eleição do livro – lugar de verbos antagônicos aos do espelho: esconder, desdobrar, narrar, verter – para a exposição deste auto-retrato revelam antes dobras, máscaras, artifícios, ornamentos, cenas onde a confissão é logro e o velamento, um modo oblíquo de ostentar o disfarce (FURTADO, 2003: 131).

    

         As imagens do eu estão em constante fuga diante das tentativas de Lúcio para capturá-las e delas retirar traços que consigam defini-las. Antes que possam ser compreendidos, os outros que proliferam são construídos, rompidos ou destruídos pelo demudar do pensamento em sua percepção diária do real, como diz Lúcio: “Perdemos tudo, transfiguramo-nos, e bons ou maus somos sempre outros, a fim de podermos atingir em verdade a morte que nos vive” (DC, 51). Mas para o repertório cardosiano, tal multiplicidade é almejada como fruto de um trabalho incessante em busca de possibilidades contínuas do devir da criação:

                                 Ó meu Deus, dá-me a diversidade, dá-me não acreditar em nada, dá-me poder ser muitos, e vários, e todos tão desconhecidos entre si como se fossem países diferentes. Dá-me a multiplicidade como um prêmio. E que, a cada obra, em vez de reforçar a anterior, eu seja um novo autor – pois é esta mutabilidade a única coisa que compreendo como estar vivo. (DC, 242)

 

         Mesmo as rotas que traçou para o exercício de várias atividades como artista puderam oferecer novas possibilidades de formação prismática das figurações do eu. No artigo “A construção narrativa: uma gigantesca espiral colorida”, Sonia Brayner lembra as diferentes personas artísticas de Lúcio Cardoso, o que nos faz pensar na relação destes diferentes “olhares” com a expansão da multiplicidade das imagens cardosianas. 

          A palavra dialógica de Lúcio trabalha em um horizonte amplo de possibilidades de relação interna. Aí encontraremos o escritor, o cineasta, o teatrólogo, o pintor. São atividades e “olhares' que se conjugam, cada qual com sua peculiaridade, para captar um espaço intersemiótico, movente, pleno de visões, lacunas, angulações. O leitor, seduzido pela composição dissonante dos padrões usuais, torna-se o eixo de dinamização textual e, recompondo os fragmentos, atualiza as alusões, cruza as referências a fim de desvendar o mistério maior da criação (BRAYNER, 1997: 718).

 

        Os desdobramentos do eu personificam diversos estados de consciência e interferem no caleidoscópio que compõe a imagerie cardosiana. Tais desdobramentos acompanham a deambulação do imaginário que influencia o pensar sobre si. Em sua tragédia pessoal, Lúcio não encarna o mesmo personagem, dando vazão a uma multiplicidade que se destina às diversas possibilidades imagéticas do auto-retrato. Faces se dissolvem antes que o escritor possa habituar-se a uma configuração definitiva. Neste sentido, a ferocidade de seu imaginário compulsivo fomenta a propulsão de sua fábrica de imagens:

O grande trabalho da minha vida é coordenar todos os elementos, bons e maus, de que me sinto composto. Percebo que tenho um sangue de aventureiro, de cigano ou saltimbanco, aliado a não sei que instinto feroz e perfeitamente homicida. Reúne-se a isto uma diabólica fantasia, que me faz julgar todas as coisas extremamente fáceis às minhas intenções. (...) Mas aos poucos vou compreendendo que o meu mundo é outro – a imaginação que me foi dada é para criar um universo que não me fira com suas arestas, uma cidade prisioneira do papel branco, feita de palavras. (DC, 43)

 

       O rosto é o desconhecido. Uma imagem que pode ser interferida, violada e modificada exsurge de um outro fragmentário e múltiplo, face às reverberações do eu que emergem do imaginário da escrita. Um rosto em fuga obedece às dispersões que fazem do diarista um homem que encara continuamente a mesma perspectiva: Je est un autre.

 

Referências bibliográficas

 

 

BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução: Leyla Perrone-Moisés. São Paulo, Estação Liberdade, 2003b.

 

______. O rumor da língua. Tradução: António Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1984.

 

BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução: Antônio Carlos Viana. Porto Alegre: L & PM, 1987.

 

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução: Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

 

BRAYNER, Sonia. A construção narrativa: uma gigantesca espiral colorida. In: CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Edição crítica coordenada por Mario Carelli. São Paulo: Scipione Cultural, 1997.

 

CARDOSO, Lúcio.  Diário completo.  Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.

 

CARELLI, Mario. A música do sangue. In: CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Edição crítica coordenada por Mario Carelli. São Paulo: Scipione Cultural, 1997.

 

______. Crônica da casa assassinada: a consumação romanesca. In: CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Edição crítica coordenada por Mario Carelli. São Paulo: Scipione Cultural, 1997.

 

FREUD, Sigmund. O estranho. In: ______. História de uma neurose infantil e outros trabalhos. Tradução: Eudoro Augusto Macieira de Souza. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Freud. Vol. XVII.

 

FURTADO, Fernando Fábio Fiorese. Murilo na cidade: os horizontes portáteis do mito. Blumenau: Edifurb, 2003.

 

JOSEF, Bella. (Auto)biografia: os territórios da memória e da história. In: LEENHARDT, Jacques; PESAVENTO, Sandra Jatahy (Org.). Discurso histórico e narrativa literária. São Paulo: Unicamp, 1998.

 

LISPECTOR, Clarice.  Perto do coração selvagem.  Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

 

MAN, Paul de. Alegorias da leitura: linguagem figurativa em Rousseau, Nietzsche, Rilke e Proust. Tradução: Lenita R. Esteves. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

 

MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos. São Paulo: Edusp, 1992.

 

 

 

 

 


[1] A referência ao Diário completo de Lúcio Cardoso será dada entre parênteses, com a abreviatura DC, seguida do número da página.

 

 

 

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