A DESCOBERTA DOS NOVOS BÁRBAROS

 

Marcos da Silva Coimbra

Mestrando em Literatura Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 

 

 

RESUMO: Este estudo tem o propósito de revelar os diversos mundos significativos criados pelo cineasta Denys Arcand no filme As invasões bárbaras , mostrando ainda que esses mundos se entrecruzam no sentido geral da obra, de modo que a vida de toda uma geração de amigos e também a de uma família podem refletir, quando vistas numa perspectiva histórica, as mudanças ocorridas no Canadá e no mundo ao longo de suas existências, seja nos aspectos político, econômico, ideológico, cultural, sexual e de hábitos dos jovens, entre tantos outros. O filme utiliza a exposição de eventos históricos a partir de um raciocínio teórico para comprovar a tese de que a hegemonia estadunidense no mundo está ruindo aos poucos.

 

 

PALAVRAS-CHAVE: Amigos. Família. Perspectiva. Mudanças. História. Antiamericanismo.

 

 

 

 

 

RESUMEN: La intención de este estudio es revelar los diversos mundos significativos creados por el cineasta Denys Arcand en la película As invasões bárbaras , mostrando aún que estos mundos se entrecruzan en lo sentido general de la obra, de modo que la vida de toda una geración de compañeros y también la de una familia poden reflejar, cuando vistas en una perspectiva histórica, las mudanzas ocurridas en lo Canadá y en el mundo a lo largo de sus existencias, seja en los aspectos político, económico, ideológico, cultural, sexual y de hábitos de los jóvenes, entre tantos otros. La película utiliza la exposición de eventos históricos a iniciar de un raciocinio teorico a fin de comprobar la tesis de que la hegemonía estadunidense en el mundo si encontra ruindo a los pocos.

 

 

PALABRAS-CLAVE: Amigos. Parentela. Perspectiva. Mudanzas. Historia. Antiamericanismo.

 

 

 

 

 

Introdução.

 

As invasões bárbaras é um filme franco-canadense realizado em 2003, tendo a figura de Denys Arcand à frente da direção e do roteiro e a colaboração de Guy Dufaux na fotografia e de Pierre Aviat na trilha sonora, entre tantas outras .

O filme tem uma dimensão política (com a exposição do “declínio do Império”) e uma dimensão existencial (relacionada à finitude da existência), sendo todo ambientado basicamente em dois cenários: um hospital, onde ficamos sabendo que o Canadá possui problemas parecidos com os do Brasil, inclusive de infra-estrutura; e uma casa margeada por um lago, onde o personagem principal passará os seus últimos dias.

Com roteiro sólido, diálogos cortantes, humor sem preconceitos, liberdade de linguagem e uma reflexão intelectual ácida e pessimista sobre os rumos da sociedade e do mundo (sem resvalar no maniqueísmo), são os componentes principais de O declínio do Império Americano que garantem agora o bom desempenho d' As invasões bárbaras .

Ao retratar um drama pessoal para representar a desconstrução de ideologias nas mudanças globais, o filme traz à tona o confronto pessoal de posturas a partir do reencontro entre um pai e seu filho, analisando dessa forma as relações humanas na atualidade e o mundo que resultou dos ataques de onze de setembro de 2001 em Nova Iorque.

O que poderia ser apenas mais um lugar-comum - um pai que no final de sua vida se acerta com a família e com o passado – termina sendo desconstruído pelo diretor do filme. Ele arma o seu roteiro com referências políticas e culturais, faz uma crônica da modernidade totalmente particular e, por fim, discute os problemas e fantasmas de toda uma geração.

 

Crítica interna.

 

Neste filme, Denys Arcand resolve usar o roteiro como instrumento para criticar os males e incongruências da sociedade contemporânea e, em alguns momentos, mais precisamente de problemas do Canadá.

As imagens dos pacientes nos corredores dos hospitais (fruto de uma estatização compulsiva e indiscriminada dos mesmos no Canadá) são uma demonstração de que este país não está tão longe de sofrer de alguns dos males terceiro-mundistas, como fazem sugerir os amigos de Rémy em alguns momentos.

Não nos esqueçamos que, mesmo não sendo um país independente, o Quebéc também faz parte da América Católica. Estatização, sindicatos corruptos, polícia despreparada e religiosidade fazem do Quebec um país distante, mas similar à América Latina em muitos aspectos.

A partir da situação terminal do pai, o filme aborda igualmente temáticas debatidas no âmbito da ética médica e das inúmeras estratégias acionadas pelos cidadãos para contornar as irregularidades do sistema de saúde de modo a proporcionar aos seus familiares e amigos um fim de vida digno, tão presente nos discursos dos responsáveis políticos e administrativos das unidades de saúde. E é no intento de tentar oferecer ao pai o melhor fim de vida possível que Sebastién consegue corromper tanto a mais alta administração do hospital quanto os membros do sindicato.

Este revelou, no caso do roubo do laptop de Sebastién e de seu posterior aparecimento, até que ponto os funcionários do hospital e os seus representantes atuam corruptamente, como ladrões dos próprios doentes inclusive (uma vez que o aparelho estava no colo do sonolento Rémy antes de desaparecer).

A polícia também dá sinais de corrupção e de manipulação de dados. Ela inventa fornecedores de drogas – iranianos, iraquianos, turcos, libaneses, italianos – para não atingir o verdadeiro e principal fornecedor, nem os seus consumidores ilustres, cidadãos de aparência solene e respeitável. Assim, “todo mundo fica contente”, exceto as minorias vitimizadas nesse processo. Todos querem drogas, e o dever da polícia é manter a “paz” e não capturar os fornecedores ou usuários. Aqui, vai uma crítica ferrenha à construção das aparências generalizada na sociedade: desde o fornecedor oficial, a conivência e a leviandade da polícia, até aos usuários respeitosos, todos fingem ser o que não são, ou fazer o que não fazem (a polícia finge que trabalha e investiga, o fornecedor finge ser mais um cidadão comum, o usuário exemplificado pela própria polícia finge ser uma figura bem equilibrada da sociedade, no melhor estilo teatral-cotidiano retratado por Erving Goffman).

Um questionamento da medicina tradicional (ocidental) é feito quando o próprio médico reconhece a súbita melhora do paciente. Sem fazer maiores exames, ele simplesmente suspende o uso de tranqüilizantes e relaxantes a seu paciente, uma vez que está já estaria bem “relaxado” e “lúcido”. Na verdade, Rémy estava sob o efeito completo da heroína, usado aqui para fins de proporcionar não apenas um prazer químico ao paciente, mas também e possivelmente até o seu “tratamento”.

A confusão que as enfermeiras e os médicos fazem com os nomes dos pacientes revela não somente o despreparo da estrutura do hospital, mas também o descaso e a indiferença para com as pessoas que ali estão, pois a mistura indiscriminada das fichas dos pacientes promove uma diluição da particularidade dos mesmos em simples números gerais. Se a medicina mundial já passa por um processo gradativo de desumanização, a estatização ampla e irrestrita desumanizou a medicina canadense de um modo ainda mais peculiar e angustiante.

Num outro caso, a existência de uma Organização não-governamental (Ong) que ajuda aos “universitários canadenses em Roma”, na qual trabalham dois dos amigos de Rémy (tendo sido selecionados provavelmente por critérios homossexuais em vez dos profissionais, como relata a própria fala de um deles), tem a intenção de criticar o oportunismo do terceiro setor, que tem arrecadado dinheiro público a fim de destiná-lo a um grupo necessitado, quando na verdade essa determinada verba acaba servindo aos interesses pessoais dos funcionários da organização (mais um problema que ocorre tanto aqui quanto lá, e que provavelmente constranja o mundo inteiro). Como dizem os próprios beneficiados desse círculo, “é o desperdício dos nossos impostos que interessa”. A alegoria é triste: a geração combativa dos finais dos anos 60 sucumbiu ao capitalismo da hipocrisia e a outros valores “incombatíveis”.

 

 

Críticas à Igreja.

 

A enfermeira que tem a responsabilidade de cuidar de Rémy é escancaradamente católica em seus contatos com os pacientes, oferecendo inclusive a “comunhão” a cada um deles. Este é um caso particular que aponta para o geral, de forma que as manipulações e intervenções políticas promovidas pela Igreja Católica são claramente apontadas nesse filme.

Em conversa com a referida enfermeira, Rémy faz uma análise diacrônica da guerra e do terror que foi o holocausto indígena, chegando à conclusão de que, proporcionalmente, outros povos já sofreram muitos mais em outras épocas do que hoje:

 

Ao contrário do que se diz o século 20 não foi tão sangrento. Admite-se que as guerras fizeram cem milhões de mortos. Acrescente-se 10 milhões nos gulags russos; nos campos chineses, digamos, 20 milhões. Um total de 130, 135 milhões de mortos. Não é tão impressionante. No século 16, espanhóis e portugueses conseguiram, sem câmara de gás nem bombas, fazer desaparecer 150 milhões de índios na América Latina. Deu trabalho, irmã! 150 milhões de pessoas, à machadadas! Mesmo com o apoio de sua Igreja, foi um grande feito. A ponto de holandeses, alemães, ingleses e americanos se sentirem inspirados e massacrarem mais 50 milhões. Um total de 200 milhões de mortos! O maior massacre da humanidade foi aqui, ao nosso redor. E nem um mísero museu do holocausto. A história da humanidade é uma história de horror.

 

Sarcasticamente e lembrando o inferno da Divina Comédia de Dante Alighieri (no qual os personagens mais interessantes e risíveis estavam no inferno, ao passo que o purgatório era mediano e o céu era completamente tedioso e repetitivo), Rémy afirma ainda que prefere “arder na chama do inferno” do que ter o mesmo destino da enfermeira, que está condenada a “tocar harpa eternamente, sentada entre João Paulo II, um polonês sinistro, e Madre Teresa, uma albanesa viscosa”.

Em outro momento, um certo Padre pretende vender as esculturas e imagens da Igreja para colecionadores, querendo que as imagens sacras passem a ter um valor comercial (numa tentativa de mercantilização da fé, de alteração ou ampliação do status das obras do sagrado para o artístico). Mas, segundo a colecionadora de antiguidades (esposa de Sebastién), as obras só têm valor para os do lugar, ou seja, apenas no “plano da memória coletiva” e não no “mercado internacional”, como quer o Padre. Ele próprio confessa que, nos idos de 1966 (época da “liberação sexual”), as Igrejas se esvaziaram de súbito, sem que se entendesse muito bem o porquê. Mas a dúvida do Padre já fora respondida com a experiência da geração d' O Declínio do Império Americano , com seu desejo intenso pela desconstrução do aparato repressor da sexualidade, montado historicamente pela tradição cristã-ocidental.

 

A questão familiar.

Conquistador incansável, típico intelectual idealista dos anos 60, Rémy é o contrário do filho, noivo fiel, pragmático e de futuro financeiro promissor no mercado de ações de Londres. É partindo dessas diferenças esquemáticas que vai se estruturar o “esqueleto” de boa parte da narrativa, em torno do qual girarão desde os temas mais locais (como as relações familiares e os problemas canadenses) aos mais globais (tais como os processos mundiais econômicos, ideológicos e políticos em mudança que são apontados no filme).

As definições que esses personagens recebem durante o filme são um tanto esclarecedoras. Nas palavras do próprio Rémy, vemos que ele enxerga a energia que move o homem capitalista como sendo algo de natureza castradora, ao passo que a força propulsora que o move, caso não fosse libertadora, seria ao menos libidinosa: “meu filho é um capitalista ambicioso e puritano. E eu sempre fui um socialista voluptuoso”.

Em outro momento, Sebastién é descrito por Nathalie (Marie-Josée Croze) como sendo o “rapaz perfeito”, com a “carreira perfeita” e a “noiva perfeita”. Sugere-se aqui que a relação de Sebastién com sua companheira seja muito mais conveniente, formal e padronizada do que amorosa, e que esses próprios valores estruturantes da organização de um modo de vida pragmático sejam frios ou até inerciais.

Mas como bom representante da “euforia econômica” que as mudanças na ordem mundial trouxeram, Sebastién diz ao pai com veemência que “só os idiotas não mudam de opinião”. Com isso ele diz, entre outras coisas, que o mundo mudou e que diante dessa evidência inescapável não há nada a fazer a não ser se ajustar a ele... Amedrontado diante da proximidade da morte, Rémy olha para trás e constata o fracasso de seus ideais socialistas, ao mesmo em que aceita o amparo financeiro de um filho com quem nunca se deu bem e que é a personificação do capitalismo que sempre combateu.

O choque entre o intelectual que acreditou e desacreditou em todos os ismos de sua época com o yuppie é inevitável. Apesar disso, o sentimento de pai e filho vai predominando com o passar do tempo, e Sebastién passa a fazer de tudo para ajudar seu pai e melhorar os últimos dias dele. Remove-o do leito compartilhado e evita ainda que volte para o corredor do hospital.

Louise (Dorothée Berryman), mãe de Sebastién, atua na tentativa de amenizar as diferenças entre ambos. Ela acharia bom que ele tivesse filhos com sua esposa, pois seria uma forma de ele saber de tudo o que o seu pai fizera por ele, mas que ele não pode se lembrar, como ter trocado as suas fraldas e o ter embalado por 48 horas seguidas quando ele fora acometido por meningite, para que a morte não se aproximasse dele. Apesar das infidelidades de Rémy, Louise fica ao seu lado, mesmo não querendo mais ser sua esposa.

Rémy é internado pelo filho num hospital sob os auspícios dos princípios a que sempre se opôs - corrupção para obter regalias e drogas para afastar a realidade. Para consegui-lo, o filho resvala para o sórdido mundo paralelo e, com os seus dólares, alcança tudo para garantir a morte digna ao pai. Rémy, em agonia, contraditoriamente às suas convicções também elas já débeis, acolhe essas condições, preferindo ignorar a sua proveniência. Nessa fase final da sua vida, de físico apoucado, restava a ele fazer uma auto-análise com todos aqueles com quem de perto viveu.

É a própria Louise quem pede a Sebastién que dê a Rémy a presença dos seus amigos e um fim de vida confortável. Ele vai além, e ainda compra a visita de seus ex-alunos, os mesmos que na faculdade foram indiferentes à sua saída (Rémy fora substituído de sua cadeira na faculdade sem maiores considerações, lembranças ou demonstrações de afeto e de importância). A visita é rápida para Rémy, teatral para Sebastién, seca e dura para o espectador . O artifício usado por Sebastién é reprovável, mas o doente não sabe do embuste e acaba comovido.

Num outro momento, a filha de Rémy lhe envia uma mensagem através da tela de um computador direto de um veleiro, no Oceano Pacífico. A Internet passa a ser o único elo que o liga ao barco da filha. É quando a fria tecnologia ajuda a amenizar a saudade, a rever os entes queridos. Nessa e em outras cenas, o questionamento da moral financeira e tecnológica (que diz que é preciso capitalizar-se para viver uma vida razoável e prazerosa) é contrabalançado por benefícios e sentimentos auxiliados diretamente pela mesma. Muito embora o avanço tecnológico só seja símbolo de adiantamento numa perspectiva etnocêntrica (ou melhor, “imperial”), neste caso ele certamente foi empregado a favor do homem e de sua elevação.

Essa mesma filha diz ter herdado do pai o apetite pela vida. Os maus presságios que lhe ocorrem em alto-mar (incêndio causado por um vazamento de gás e batida da embarcação com um iceberg à noite) são antecedentes quase imediatos à morte de Rémy, numa espécie de recado da natureza (mesmo num cenário de doença ou de avanço tecnológico, a natureza continua de fazendo presente).

A imagem do capitalismo e do próprio império no filho é bem trabalhada. Em um interessante paradoxo, ao mesmo tempo em que Rémy critica ferozmente os sistemas capitalistas e suas representatividades, seu conforto e comodidade só são adquiridos porque seu filho é um homem de negócios bem-sucedido, e que por isso consegue privilégios satisfatórios a qualquer enfermo (Sebastién consegue até uma vaga no “melhor hospital do mundo” para Rémy, embora este não queira se afastar de seu país e de seus amigos nos seus últimos momentos).

Com isso, Denys Arcand sublinha determinadas formas de atuação no mundo, acenando com a possibilidade de aceitação do outro mesmo quando as discordâncias são grandes. Desenhados como reflexos diretos das suas respectivas épocas, Remy e Sebastién sofrem com um esquemático jogo de oposição – o crítico e irredutível professor de história versus o milionário capitalista que expressa a sua dedicação fazendo uso da linguagem que melhor domina, o dinheiro.

O choque entre os estilos de vida do pai (que gostaria que o filho lesse “pelo menos um livro na vida”) e do filho (que ganha absurdamente mais que o pai) não está aí para colocar a idéia de que o pai possa ter mais conhecimento, muito embora ganhe bem menos. O fato é que o conhecimento deste é voltado para desmascarar as engrenagens econômicas, políticas e sociais mundiais, enquanto o daquele é um dos sustentáculos do sistema em si. Em comum, ambos lidam em seus trabalhos com a permanência das incertezas e do risco – ora porque o mundo acadêmico-intelectual está sempre sendo revisado em suas bases, ora porque é o risco é o motor que move o mercado financeiro e de especulações. Diante do fenômeno da fragilização das relações entre pais e filhos, o filme aponta uma luz no fim do túnel. Se as ideologias mudam, e isso é incontrolável, pode ser que ao menos alguns valores possam permanecer acima delas e, com um pouco de sorte, pode ser também que a amizade e o contato entre pais e filhos (que por enquanto o dinheiro não compra) seja uma delas.

Vida em perspectiva.

 

As invasões bárbaras traz no elenco as mesmas personagens d' O Declínio do Império Americano (filme do mesmo diretor, do qual este é seqüência), mas agora menos eufóricas e menos obcecadas com a vida amorosa, talvez até devido à diferença de idade e de momentos na vida de cada um. E os amigos continuam não-alinhados, próximos dos Estados Unidos geograficamente, mas ideologicamente afastados deles. Os seus valores, claro, estão a morrer... (assim como Rémy), mas a agonia é vivida com farpas, à Igreja, ao dinheiro e à ideologia, embora os atos finais de todos indiquem uma aceitação melancólica do mundo que aí está.

O grupo de amigos e parentes que passa os últimos dias com Rémy é formado por professores, antigas amantes, a ex-mulher e um casal gay. Nestes encontros são memoráveis os diálogos da geração que acreditou nas mudanças e que agora convive com o etnocentrismo e com guerras promovidas em busca de “paz” (promovidas quase sempre pelo “coração do Império”).

A morte, a memória e o desejo se misturam no coração de Rémy. Ele gostaria de escrever um livro importante, ou o melhor que ele pudesse, enfim, de “deixar uma marca”. Mas se os homens passam são as suas obras que ficam e, curiosamente, a grande maca que ele deixa é ainda o diverso Sebastién, seu próprio filho. Este consegue reunir, como uma forma de presentear que só ele poderia alcançar, o coeso e integrado grupo de amigos – como é cada vez mais raro se fazer formar e, depois disso, se co-memorar.

E se o reencontro dos grandes amigos que teve ao longo da vida faz com que Rémy veja a rememoração como prazer e necessidade, fazendo disto uma festa interior, o evento traz à tona o fato de que ele está muito mais apegado ao que um dia foi em sua juventude e maturidade do que ao que era no fim de sua vida, agora já idoso e incapacitado. Para lhe mostrar isso, Nathalie não faz qualquer espécie de cerimônia, dando-lhe o seu sombrio veredito:

 

Rémy – Quando envelhecemos é que nos apegamos à vida. É quando começamos a subtrair, quando sabemos que é a última vez que vamos fazer alguma coisa (...) Não quero deixar a vida. Não pode imaginar como a amei.

Nathalie – Não é a sua vida atual que não quer deixar. É a sua vida passada. E essa já está morta.

Em alguns momentos, Rémy se mostra à busca de um sentido para a sua existência ou passagem pela terra (“Eu me sinto tão despreparado quanto no dia em que nasci. Não consegui encontrar um sentido. Às vezes acho que é isso que temos de buscar”). Mas o sentido duma vida só é plenamente atingido com a idéia do todo, que mostra enfim que a vida se saboreia a cada segundo, por cada beleza possível de ser contemplada ou vivida (como Rémy procurou fazer ao longo de sua vida). Como afirma Herman Hesse na Felicidade ,

 

(...) enquanto isso existir [a alegria do homem pelo belo], o homem poderá sempre voltar a dominar suas fragilidades e atribuir um sentido à sua existência, pois ‘sentido' é aquela unidade do múltiplo, ou aquela capacidade do espírito de pressentir unidade e harmonia na confusão do mundo.

Para o verdadeiro ser humano, íntegro, inteiro e intacto, o mundo se justifica e Deus se justifica incessantemente através de milagres como este: que além do frio da noite e do fim do período de trabalho exista algo como a atmosfera vermelha no crepúsculo e as fascinantes transições do rosa ao violeta, ou algo como as mutações do rosto de uma pessoa quando, em mil transições, é recoberta, como o céu noturno, pelo milagre do sorriso.

 

Rémy apega-se à vida e tem saudade desta antes mesmo de deixá-la. Saudade das conquistas, mulheres e ideologias. Seu personagem nos remete diretamente à efemeridade da vida, em como as pessoas queridas nos escapam ao longo de nossas vidas na contemporaneidade “líquida”.

E por falar em “liquidez”, a casa onde Rémy se despede foi emprestada por um de seus amigos professores, embora a esposa deste dissesse que “foi por isso que Nikole se separou do Tom Cruise” (alegando que o ator emprestava a casa do casal indiscriminadamente) e que Rémy fosse um estranho. Essa é mais uma demonstração de apego material, de indiferença com relação a pessoas próximas (tornando-as distantes) e de vácuo comportamental, a partir do qual as mídias em geral e o star system em particular atuam dirigindo a vida de milhões de pessoas mundo afora.

Nos momentos finais vividos nessa casa, o enquadramento – que privilegia a abraço e a despedida de Rémy com seus amigos, um a um – sintetiza poderosamente a energia contida na vivência comum em questão, pondo em perspectiva as expectativas de cada um (“É o sorriso de vocês que levo comigo”). Por tudo isso e por tantas outras coisas sentidas e percebidas em vida, Rémy parte “felizmente”, na presença de seu filho, de seus maiores amigos (sobre isso, vale a pena conferir a feliz escolha da canção-tema do filme através de sua letra, que se encontra em anexo) e “cavalgando o dragão”, ou seja, a heroína, que lhe traz imagens veneradas por ele durante sua vida (as pernas duma atriz de cinema, que lhe eram muito sensuais). Nesse momento, quando a eutanásia é posta em discussão de maneira solene, a câmera é porta-voz direto das sensações e imagens que permeiam a passagem de Rémy para o mistério que encerra a finitude terrena.

 

Mundo em perspectiva.

 

As questões abordadas no filme vão despontando à medida que o balanço de Rémy avança, indo da sua vida pessoal para o mundo como um todo: até onde deve um homem, em seu leito de morte, julgar os outros, inclusive o próprio filho que, por ele, regressou de longe? As nossas ideologias, as nossas lutas, os nossos amores, vingaram enfim? Valeram a pena? As ideologias, até onde conduziram as nações? Na prática, a globalização aproxima ou distancia as pessoas?

Mais do que retratar a morte de um pai de família, Arcand pinta em cores lúgubres a morte de toda uma geração. Rémy e seus amigos representam uma irreverente boemia em processo de extinção, pessoas eruditas e politizadas que em algum momento de suas vidas lutaram arduamente por seus ideais. Por outro lado, os jovens são retratados no filme como decadentes. São viciados – em drogas ou em trabalho – perdidos em meias-convicções, materialistas, corruptos, tristes, desinteressados. Rémy e seus amigos riem muito mais do que seus respectivos filhos e alunos neste filme.

Denys Arcand parece querer compor uma análise das mudanças que ocorreram com seus sonhos, com os sonhos de sua geração e com as ideologias do mundo e, sendo os seus personagens uma espécie de produto daquilo que ele próprio foi e é , o diretor faz lembrar as considerações de Michel de Montaigne, acerca de seus Essais e de seu objeto de estudo - a sua própria pessoa, considerando-se que “cada homem leva em si a forma inteira da humana condição”:

 

O mundo não é senão uma perene vacilação. Todas as coisas vacilam nele sem cessar: a terra, os rochedos do Cáucaso, as pirâmides do Egito, tanto pela vacilação geral quanto pela sua própria vacilação. A mesma constância não é outra coisa senão uma vacilação mais lenta. Não posso fixar o meu objeto; ele vai, confuso e titubeante, com uma ebriedade natural. Pego-o em qualquer lugar, como está, no instante em que com ele me divirto; não descrevo o ser, descrevo a passagem; não a passagem de uma idade a outra, ou, como diz o povo, de sete em sete anos, mas dia a dia, minuto a minuto. Devo acomodar a minha história à hora.

 

Na segunda metade da década de 80, o diretor causou impacto ao colocar homens e mulheres – de início separados em locações diversas e depois reunidos numa casa de campo – falando sobre a desvinculação parcial entre o exercício da sexualidade e a manifestação da afetividade. Boa parte das características da obra anterior pode ser revista na tela grande, como a contracena entre explanações teóricas e o relato de vivências corriqueiras. Mas o assunto aqui é o próprio tempo ou, mais exatamente, a saudade do passado que, claro, não volta.

Ver O Declínio do Império Americano depois de sua continuação permite perceber que o discurso do filme (bastante provocador em 1986) se esvaiu quase que por completo nos dias de hoje. Os diálogos, quase que completamente voltados para a revolução sexual do anos 80, com mulheres mais altivas e homens mais descaradamente despudorados, ficaram muito velhos, perderam o impacto e, muitas vezes, o sentido.

 

Teorias.

Denys Arcand não apenas acredita que a civilização e o Império estão em franco declínio. Ele teoriza sobre isso, bem como sobre diversos outros temas, como ele próprio atesta ( ibidem ): “Eu me distraio construindo teorias. Por exemplo: a inteligência é coletiva, nacional ou intermitente? Isto explicaria por que o mundo conheceu períodos brilhantes e outros – como hoje em dia – de uma burrice terrível!”.

É partir destes e de outros construtos teóricos que o cineasta irá construir seqüências de diálogos como esta, entre Rémy e seus amigos, na casa que margeia o lindo lago: “A inteligência não é uma qualidade individual (...) É um fenômeno coletivo, nacional, intermitente”. Aqui, a constituição americana e a declaração de Independência dos Estados Unidos são citados positivamente, como forma de inteligência coletiva.

Depois disso, chega-se à conclusão de que “A inteligência desapareceu”, ou que está adormecida em nossa época, uma vez que afrouxamos a inteligência à ideologia dominante.

Nomes como George Bush e Silvio Berlusconi não podem conviver no mesmo Panteão com figuras como Madison e Hamilton, Leonardo Da Vinci e Michelângelo. Mas, apesar de toda a burrice disseminada pelos instrumentos imperiais, o filme dá o tom geral de que a sensibilidade e o bom gosto sempre resistirão (nem que seja na memória).

Em outro momento desses diálogos, os amigos deixam transparecer o festival de “ismos” e de teorias que se sucederam no cânone das humanidades acadêmicas, ambiente em que eles participam e do qual se alimentam. Nesse momento, todos participam com ao menos uma fala, o que comprova que este sentimento é generalizado entre a intelectualidade contemporânea:

 

- Fomos tudo. É incrível. Separatistas, independentistas, monarquistas, monarquistas-associacionistas.

- Começamos sendo existencialistas.

- Tínhamos lido Camus e Sartre.

- Depois lemos Franz Fanon e viramos anticolonialistas.

- Depois lemos Marcuse e nos tornamos marxistas.

- Marxistas-leninistas.

- Trotskistas.

- Maoístas.

- Lemos Soljenitsyn e mudamos de idéia. Passamos a estruturalistas.

- Situacionistas.

- Feministas.

- Desconstrucionistas.

- Houve algum ‘ismo' que não adoramos?

- Cretinistas.

- Oh, Deus, não! Lembrem-se de Guo Jing.

 

 

É disso que o crítico literário Terry Eagleton trata quando nos expõe a sucessão de correntes teóricas que se deu no espaço acadêmico das humanidades como um todo, o que revela que o uso de teorias como se fossem roupas, ou seja, ao gosto da última moda (o que não permite que os avanços de uma geração de pesquisadores, ou mesmo de uma década de pesquisa, sejam aproveitados com a chegada de um novo “ismo” a-histórico), não é privilégio dos países como o Brasil, que têm o peso de mais de três séculos de política colonialista, mas alcança o mundo todo, mesmo que diversamente. Assim ele escreve:

 

A teoria pós-moderna é parte do mercado pós-moderno, e não apenas uma reflexão sobre o mesmo. Entre outras coisas, representa uma maneira de acumular um “capital cultural” valioso sob condições intelectuais cada vez mais competitivas. (...) Em nossa época, a teoria tem sido um sintoma da mercantilização da própria vida intelectual, à medida que, com a mesma velocidade com que mudam os estilos dos penteados, uma moda conceitual toma à força o lugar da outra. Assim como o corpo humano – e muitas outras coisas – tornou-se estetizado em nossos dias, a teoria também se tornou uma espécie de forma de arte de minorias, bem-humorada, auto-ironizante e hedonista – um espaço para o qual se transferiram os impulsos por trás da grande arte modernista. (p. 325-326).

A partir desse momento Rémy faz uma análise sutil da Revolução Cultural chinesa, de como o que era vivido pelo povo chinês destoava da imagem que a intelectualidade ocidental fazia das mudanças em curso por lá. Assim, ele exemplifica com a vida da mulher com quem esteve e que lhe prestou seus serviços (cena essa que é uma lembrança do que ocorrera ainda n' O Declínio do Império Americano ): “- Havia limpado pocilgas por 2 anos como reeducação pelo trabalho. Seu pai tinha sido assassinado e sua mãe se suicidado. E um imbecil franco-canadense que tinha assistido aos filmes de Godard e lido Phillip Sollers achava a revolução cultural chinesa formidável”. Tal momento mostra o quanto pode ser turva a visão que um intelectual de uma parte do mundo tem sobre como se vive em outra região, sendo ele mesmo mais uma vítima dos filtros bibliográficos e das correntes ideológicas parciais, amplamente atuantes nos meios de comunicação urbanos. Mas, se um pesquisador de uma universidade renomada pode ser acometido por desvios de olhar e etnocentrismo (se sua abordagem do “outro” é exótica), do que não poderiam sofrer os governantes de nossa época, mais precisamente os governantes do referido império?

 

Os povos bárbaros, as torres e o orientalismo.

 

“... ninguém tem a última palavra, onde nenhuma das vozes reduz a outra a objeto e onde se tira vantagem de sua exterioridade ao outro”

(Tzedan Todorov)

No longa de 1986 o diretor Denys Arcand defendia a idéia de que o domínio norte-americano dava sinais de decadência, e que em breve estaria chegando ao fim. Em “As Invasões Bárbaras” Arcand mantém este pensamento e faz uma relação com a queda do Império Romano. Este ruiu fundamentalmente devido às invasões dos povos bárbaros, decorrentes da expansão excessiva do Império e de sua conseqüente fragilização militar, tanto nas fronteiras como nas áreas mais distantes de Roma.

Os “povos bárbaros” da Antiguidade eram assim chamados porque tinham costumes sociais, políticos e econômicos diferentes dos de Roma. Sobretudo porque usavam  idiomas diferentes do grego e do romano. Inicialmente, eles entravam no território incentivados pelos próprios romanos, que visavam os jovens para o reforço do exército no controle das fronteiras. Mas, com o passar do tempo, a negligência da política romana para com esses grupos e a conscientização deles próprios de que tinham condições de atingir a Roma fez com que começassem as invasões, estas sim, feitas de maneira violenta, com intenção de expulsar os romanos e tomar suas terras.

Vejamos, por exemplo, o caso dos godos. Estes eram povos vindos da Ásia que obtiveram de Valente, imperador de Roma do Oriente, permissão para atravessar a fronteira e se estabelecer ao longo do Danúbio, onde serviriam de "muralha de defesa" contra incursões militares de outras tribos. No entanto, seja por serem naturalmente indômitos, seja pela opressão dos romanos, em menos de uma década já se insurgiam contra os novos senhores a quem tinha jurado obediência.

É aí que o paralelo entre o declínio dos impérios romano e americano se faz mais mordaz: Osama Bin Laden, principal figura a ser responsabilizada pelo primeiro ataque bárbaro a atingir o império americano, tendo idealizado os ataques sofridos em Nova Iorque no “onze de setembro”, não parece ser nada mais do que alguém que, em determinado momento histórico, serviu aos interesses imperiais contra a expansão política e militar do Iraque de Saddam Hussein no Oriente Médio na década de 1990, sendo devidamente treinado e municiado para esse fim. Mas a opressão americana sobre o seu povo, através da política militar de Israel (que não é senão um braço americano no Oriente, ou ainda um eco das vontades do Império sobre aquela região e suas riquezas petrolíferas), não permitiu que o fundamentalismo fosse apenas religioso. No caso da queda das torres gêmeas ele foi mais fortemente político e as más intenções repousaram no seu ponto de origem.

As próprias torres que ruíram, em sua grandiosidade e pujança, simbolizavam a potência do Império, revelando também o seu ego enquanto tal. Como já descrevera Carl E. Schorske, a percepção do isolamento entre os grandes edifícios e os seres humanos já fora descrita pelo arquiteto Camillo Sitte (por ocasião da crítica à Ringstrasse , um complexo de edifícios vienense), acarretando numa sensação de diminuição das pessoas frente à arquitetura urbana e, nesse caso, ao desejo do Império de tocar os céus.

A arquitetura grandiosa geralmente é desumana, ultrapassando as proporções humanas do belo, impossibilitando a integração do homem e ofuscando-o . É nesse sentido que o poeta Francis Ponge nos revela como virtuosos e belos os espaços proporcionais e necessários. Segundo Ítalo Calvino, Ponge faz

 

(...) o elogio da proporção entre a casca e o seu habitante molusco, contraposta à desmesura dos monumentos e palácios do homem. É esse o exemplo que a lesma nos dá produzindo a sua casa: “Aquilo de que é feita a sua obra não comporta nada de externo a eles, às suas necessidades e precisões. Nada de desproporcional ao seu ser físico. Nada que não seja necessário para eles, obrigatório.

 

Talvez seja essa proporcionalidade respeitosa que esteja faltando ao império americano, tanto em seus prédios quanto em sua ambição política, tanto em suas empresas de âmbito e exploração globais quanto no seu belicismo expansionista e soberbo.

Ainda acerca da analogia feita por Denys Arcand, que chama de “bárbaros” também aos grupos que se insurgiram contra os americanos nesse início de século por meio de atos de violência extremada e inesperada, é de fato como bárbaros que o Império americano já os tratava desde muito tempo, e não apenas este Império, mas todo o imaginário ocidental.

Assim, num brilhante livro chamado Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente , Edward Said afirma que o Oriente não existe como tal, e sim foi uma invenção do Ocidente para juntar tudo o que esteja além de suas fronteiras, tudo o que não seja ocidental, todos os seus outros, desqualificados genericamente como "orientais".

O orientalismo pode, portanto, ser analisado como uma instituição corporativa que se relaciona com o Oriente emitindo juízos sobre ele, autorizando visões dele, descrevendo-o, ensinando-o, colonizando-o, governando-o. Em suma: será um estilo ocidental para dominar, reestruturar e exercer autoridade sobre o Oriente. Said demonstra como a concepção eurocêntrica amalgama tudo o que não é ela em um mundo que chama de “oriente” – que funciona como sinônimo de bárbaro. A inculcação duma cultura comum apaga as diferenças minoritárias existentes entre os diversos povos não-ocidentais.

Foi em nome dessa suposta superioridade do ocidente que o governo Bush desatou, mesmo sem consentimento do Conselho de Segurança da ONU, a guerra e a invasão do Iraque, no suposto de que conseguiriam impor um regime e os valores ocidentais – isto é, capitalistas –, assim como ocorreu com o Japão após a segunda guerra. Neste caso porém, foi necessário o uso de uma bomba atômica para garantir que o ego do império fosse massageado e para que, mais uma vez, o outro estivesse subordinado às suas diretrizes.

A lógica do Império.

Voltando à comparação com os eventos do império romano, o então imperador Augusto fazia o povo da Roma antiga crer, pela pintura, que o seu governo coincidia com a vontade dos céus e que o seu comportamento era incorrigível, fazendo as massas virem o que não existia, ou seja, fazendo com que vissem-no como ele queria ser visto e não como era. Na prática, Augusto foi um ditador corrupto e agarrado ao poder, em nada consoando com a pax romana que propagava. Assim se originou o uso da estética como veículo para a propaganda política e a manipulação da opinião geral.

Tudo indica que ainda hoje, no atual império, não constituímos um sistema sinceramente racional de vida, pois sua prática é baseada na mentira, na astúcia e no trapaceio (lembremos que a retórica é originalmente a arte de argumentar para mentir). A invasão americana no Iraque, por exemplo, foi baseada na mentira, pois não foram encontradas tecnologias nucleares no território iraquiano. Este foi um argumento revestido de racionalidade, mas com intenções claramente levianas.

Tal exemplo deixa claro que a idéia de liberdade promovida pelo império se desfigura quando seus interesses são postos em questão, como tem ocorrido na Inglaterra e nos EUA após os atentados do 11 de setembro, países que assumiram posturas fascistas e grosseiras no tratamento aos estrangeiros. Aceitar a apropriação de termos como ''democracia'' e ''civilização'' por parte do liberal imperialismo norte-americano fica assim cada vez mais impossível, pois o império propõe liberdade em seu discurso, mas quer adesão maciça em tudo o que propõe, não aceitando nem a dissonância nem a alteridade em sua plenitude.

O império busca se sustentar na lógica da razão instrumental, ancorada desde sempre nos pressupostos iluministas. Mas há aqui a geração de uma incongruência ou o nascimento de um mal estar a ser vivido pelo império. Isto porque o iluminismo queria conhecer o mundo para dominá-lo segundo a vontade humana – tanto no natural quanto no social, julgando que assim alcançaria a felicidade humana e o progresso da civilização como um todo. Puro embuste da intelectualidade oficial. Segundo análises de Giddens (1991), o conhecimento reflexivo (quer dizer, instável, que acabou gerando uma “insegurança ontológica” no homem contemporâneo) da modernidade solapa a segurança iluminista, mesmo nas ciências naturais. A própria ciência, ponto de apoio e de orgulho dos entusiastas da tecnologia ad hoc , é sempre revisada em suas bases e novas descobertas ultrapassam velhos paradigmas descartáveis.

 

O declínio do Império e o antiamericanismo.

As invasões bárbaras é um filme tão teórico que dialoga com um livro escrito por dois renomados professores e pesquisadores universitários, a saber, Antonio Negri (cientista social e filósofo italiano) e Michael Hardt (professor de literatura e filosofia na Universidade Duke, nos EUA, sendo este o seu país de origem). O livro chama-se justamente Empire (“Império”), tendo sido lançado em 2000 nos Estados Unidos pela editora da Universidade Harvard. No livro, os autores assinam pensamentos que poderiam tranqüilamente ter saído da mente de Denys Arcand, tamanha é a confluência da percepção do que ocorre no mundo atual entre eles. Trechos duma entrevista concedida por Hardt podem melhor elucidar este fato. Quando perguntado sobre o que é o Império, ele diz:

 

Império é o nosso nome para a forma política da globalização capitalista. (...) [Ele] é ilimitado no sentido espacial, não há fronteiras para o seu domínio; não há nada externo a seu poder. O Império domina a totalidade. O Império também é ilimitado no sentido temporal, já que seu domínio é posto como necessário e eterno, em vez de temporário e transicional. Finalmente, o Império é ilimitado em um sentido social, pois busca controlar toda a experiência social; o objeto do Império é a própria forma de vida.

 

Neste trecho, Hardt deixa bem claro que a visão de Império que possui compreende um capitalismo global triunfante que penetra em todos os poros da vida social, até mesmo nas esferas mais íntimas, buscando instaurar uma dinâmica que não se baseia em estruturas de dominação hierárquica (tais como as erigidas pelo enfraquecido Estado-nação, do antigo imperialismo europeu), mas produz identidades flutuantes e híbridas, fazendo-se presente na vida dos mais diferentes grupos por onde espalha o seu amplo domínio.

No entanto tamanha expansão e integração do Império entre os povos, tamanho triunfo mundial gerou a maior vulnerabilidade de que o sistema está acometido, que é a reunião subjetiva de dos trabalhadores e principalmente dos intelectuais de atuação cooperante na busca por um ponto final em sua luta pela desatrelação humana do capital. Ainda Hardt:

 

(...) apesar de a criação do Império trazer devastadoras e violentas estruturas de opressão e exploração, ela também cria as condições para a liberação. (...) a globalização capitalista atual apresenta as condições para uma globalização não-capitalista alternativa.

 

Ao comentar o livro de Hardt e Negri, André Singer destaca a falsa polidez com a qual se revestem os argumentos utilizados pelos americanos para promoverem sua busca incessante pelo controle absoluto e irrestrito de todos os espaços e esferas mundiais: “As intervenções norte-americanas, com exceção da colonização das Filipinas, foram sempre feitas sob a justificativa de preservar aspectos da ordem mundial: o equilíbrio, a liberdade, a democracia”.

O próprio André Singer afirma:

 

Embebidos da tradição republicana renascentista, os fundadores dos Estados Unidos conceberam um sistema político em que a soberania é continuamente gerada por redes de poder e contrapoder existentes na sociedade. Em lugar de erigir um Leviatã, fruto de um primeiro e único contrato de renúncia individual ao poder, como na Europa, o modelo americano pressupõe que o conflito social permanente irá reconstituindo a soberania a cada passo.

Embora republicano, tal regime favorece a expansão imperial. À medida que permite e até estimula o conflito por ser a garantia da liberdade, a República precisa sempre de mais riqueza, de modo a satisfazer os apetites sociais gerados na luta de classes. Só que, diferentemente do jogo imperialista (que precisa destruir para dominar), o Império, ao crescer, integra, incorpora o diferente à sua rede de poderes e contrapoderes.

 

O problema é que há muito já se percebeu que essa “integração” dos diferentes povos no seio do Império atua no sentido de anular cada vez mais as diferenças minoritárias e especificidades existentes entre os mesmos. Sobre esse fato já se pronunciou com precisão o crítico literário Terry Eagleton, para quem

 

A cultura, na vida das nações que lutam pela sua independência do imperialismo, tem um significado muito distante das páginas de resenhas de livros dos jornais dominicais. O imperialismo não é só a exploração da força de trabalho barata, das matérias-primas e dos mercados fáceis, mas o deslocamento de línguas e costumes – não apenas a imposição de exércitos estrangeiros, mas também de modos de sentir que lhes são estranhos. (p. 295).

 

Daí o antiamericanismo de Arcand. Segundo o próprio diretor já afirmou ( op. cit . ), a realidade é que os "Estados Unidos dominam o mundo, que somos todos súditos do império. Os iraquianos sabem algo a respeito. (...) E o império vai decidir nossa cultura. Eu sou pessimista, porque a cultura continua sendo a das armas. (...) Nós podemos falar de Sartre e de Primo Levi, mas isso não vai influenciar (Donald) Rumsfeld (secretário de Defesa estadunidense)". Portanto, é com filmes poéticos, frases violentas e convicções claras e bem expostas que este diretor vai se revelando como mais um nome imprescindível no front cinematográfico anti-Império (juntamente com nomes como o de Michael Moore).

A sátira ao American way of life é realizada desde o momento em que pai e filho chegam a solo estadunidense, quando ironizam o protestantismo superficial que é naturalizado naquelas terras, convivendo sem maiores dores de consciência com práticas que em nada lembram os ensinamentos de Cristo (a forma como os Estados Unidos se relacionam com as minorias étnicas e com o resto do mundo são bons exemplos disso):

 

Policial – Bom dia. Bem-vindos à América!

Rémy – Louvado seja Deus.

Sebastién – Aleluia!

 

Neste momento, com uma ironia leve, quase imperceptível, Arcand usa de uma trilha leve e bem-humorada, como as que pretendem sinalizar uma ambiência de paz e equilíbrio nos seriados americanos, para satirizar a auto-imagem do americano comum, motivada pela mídia, pela televisão e pelo cinema comercial açucarado de lá.

No instante em que Sebastién vai à recepção do hospital para tentar reaver seu laptop , a televisão expõe a cena de um pesquisador, chamado “Alain Lussier”, uma espécie de porta-voz direto ou alter-ego do diretor, decreta o destino inevitável do império americano com o seguinte discurso:

 

- Como? Mais ou menos três mil mortos? Historicamente é insignificante. Para citar um exemplo americano, morreram cinqüenta mil pessoas na batalha de Gettysburg. Mas o que é significativo, como diriam meus antigos professores, é que dessa vez, o coração do império foi atingido. Nos conflitos anteriores, Coréia, Vietnã, a Guerra do Golfo, o império havia conseguido manter os bárbaros além de seus limites, de suas fronteiras. Nesse sentido talvez nos lembremos, e insisto no “talvez”, de setembro de 2001 como o começo das grandes invasões bárbaras.

 

A busca da opinião do intelectual crítico (que vai além do mero especialista superficial, tão adotado e adulado na insegura sociedade contemporânea), bem caracterizado pela estante repleta de livros atrás de si e pela consideração ao mundo do pensamento (que o diretor já demonstrou ter desde O Declínio do Império Americano ), reforça o campo de atuação teórica do filme, fazendo dele um verdadeiro filme-tese.

Através de As invasões bárbaras e da desconstrução do establishment imperial que ele promove, Arcand deixa bem clara sua opinião de que os EUA são as maiores vítimas de sua própria força dominadora. E deixa na película a pergunta que não quer calar: quem são de fato os verdadeiros bárbaros do século XXI?

 

 

 

 

 

Conclusão: conformismo, açúcar ou afeto?

A nota dissonante pode advir da idéia de que, embora tenha um roteiro muito bem articulado, o filme de Arcand trace um assustador perfil de resignação com o individualismo de nossos dias: enquanto o socialista sonhador espera (quase sempre embriagado) a morte, o capitalista vitorioso observa benevolente as manias do próprio pai, à medida que resolve outras possíveis complicações que surgem com seu dinheiro onipotente. O uso do dinheiro como única forma de relação restante no mundo é de tal forma repetido por ele que acaba por perder qualquer força ou valor.

A discussão sobre o tempo e as prioridades de cada época e de cada geração perpassa as variadas crises sofridas e as ideologias, que se sucedem aceleradamente num mundo em constante mudança de valores. Não há rancor para com as grandes utopias, e sim um gradativo processo de desamor. A ironia do texto reforça a certeza de que o mundo mudou, o passado morreu e a gente tem mais é que aceitar e conviver com esse fato. O quadro final é amargo: presume-se a morte das utopias, a derrota de um modo de pensar e a diluição da importância e da intensidade de certas coisas e valores com o passar do tempo, além da sua incômoda, mas inevitável substituição.

Mesmo decadente, Rémy não deixa de ser um personagem interessante, totalmente humano, amoral, com defeitos e qualidades: um esquerdista mulherengo e teimoso. E até o prepotente Sebastién, que a princípio se revela levemente desagradável, aos poucos vai se transformando e conquistando o seu espaço em cena, mesmo que com instrumentos discutíveis.

Sobre este retrato final que é desenhado pelo filme sobre duas gerações, vale a pena saber o que pensa o próprio diretor. Quando perguntado sobre o por quê de colocar em cena novamente os mesmos personagens do filme O Declínio do Império Americano , o diretor do filme se explica ( op. cit. ):

 

(...) eu girava há tempos em torno da idéia de um filme sobre a morte ou, mais exatamente, sobre o fato de decidir a hora de sua própria morte. Acrescente a isso o fato de que oito amigos meus se suicidaram. Tudo o que escrevia era lúgubre. Depois comecei a pensar nos heróis de O declínio do Império americano . Sabia que, mesmo Rémy estando doente, ele teria a energia, o cinismo de fazer uma festa com seus amigos, de enrolar um último baseado, de fazer observações de mau gosto. O meu cenário deprimente encontrou enfim sua leveza.

Através deste depoimento de Arcand se percebe o quanto lhe era importante “adocicar” suas reflexões, ocultando ou diluindo boa parte dos sentimentos e sofrimentos que são comuns quando se vive a experiência do processo de morte, de despedida da vida, de perda de pessoas próximas e queridas e de conflitos familiares, usando para isso a irreverência refinada e sarcástica de Rémy.

Ainda quanto ao roteiro (premiado em Cannes, juntamente à interpretação da atriz Marie-Josée Croze), sua verossimilhança também pode ser questionada na total ausência de discussão em relação à opção de viciar Rémy em heroína como forma de minimizar a dor do câncer, na facilidade com que a droga é utilizada dentro do hospital e no envolvimento de uma junkie com as drogas estimulado pela própria mãe.

No mais, a trilha sonora de Pierre Aviat com músicas de Fraçoise Hardy é doce e contagiante e a fotografia de Guy Dufaux é conduzida com a sensibilidade e a delicadeza que tanto agradaria à intelectualidade cult que permeia os personagens do próprio filme, numa espécie de isomorfismo fílmico (usar uma linguagem elegante e refinada para retratar as vidas de pessoas que assim se consideram, ou que ao menos buscaram isso).

Três viagens co-existem no fim do filme: a de Rémy para este mistério; a de Sebastién com sua esposa de volta para a Inglaterra, com a sensação do dever da gratidão de um filho cumprido (esta é profundamente enriquecida com as imagens da partida do avião, com o sol refletindo nele externamente e um céu de nuvens iluminadas ao fundo. Tal cena é densa em significado e em poesia, é antológica); e a das aves migradoras, também presentes na canção de Françoise Hardy, bem posicionada nessas cenas finais. Esta última viagem é acompanhada de paisagens naturais belíssimas, como a que enquadra o mar e as árvores com o banco vazio, carente de quem lhe sente, e a da casa vazia, também entre as árvores. Natureza e cultura se revezam entre as imagens do avião e do lago em frente à casa, gerando uma superposição de imagens finais emocionantes – as árvores altas que parecem querer alcançar os céus e as nuvens em frente ao sol, deixando passar feixes de raios, evidenciando toda uma “energia natural” daqueles lugares que são finais, mas que também iniciam novos caminhos.

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ALIGHIERI, Dante. Apud AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2001, 4ª edição.

 

ARCAND, Denys. [ Opinião sobre o filme As invasões bárbaras ]. São Paulo: Consórcio Europa, 2004. Entrevista concedida a Denise Robert e Daniel Louis.

 

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade das relações humanas . Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

 

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos? Tradução Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

 

CANCLÍNI, Nestor García. Consumidores e cidadãos : conflitos multiculturais da globalização . Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2000.

 

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução . Tradução Waltensir Dutra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 5ª edição.

 

HARDT, Michael. [ Opinião sobre o livro Empire ]. São Paulo, 2000. Entrevista concedida a Victor Aiello Tsu no jornal Folha de São Paulo em 24 de setembro de 2000.

 

GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade . São Paulo: Unesp, 1991.

 

GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Ed. Vozes, 1985.

 

MONTAIGNE, Michel de. Apud AUERBACH, Erich. Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 2001, 4ª edição.

 

SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente . São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

 

SCHORSKE, Carl E. “A Ringstrasse”. In Viena fin-de-siècle: política e cultura . São Paulo, Companhia das Letras/ Ed. Unicamp, 1988.

 

SINGER, André. “O contra-Império ataca”. Folha de São Paulo , São Paulo, 24 de setembro de 2000. Folhamais!

 

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América – a questão do outro . Tradução Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003, 3a. edição.

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS

 

AS INVASÕES bárbaras O declínio continua . Direção: Denys Arcand. Produção: Denise Robert e Daniel Louis. Elenco: Rémy Girard, Stéphane Rousseau, Dorothée Berryman, Louise Portal et alli . Roteiro: Denys Arcand. Música: Pierre Aviat. Fotografia: Guy Dufaux. Canadá/ França: Pyramide Producions/ Cinémaginaire, 2003. DVD (99 min).

O DECLÍNIO do Império Americano . Direção: Denys Arcand. Elenco: Dominique Michel, Dorothée Berryman, Louise Portal, Pierre Curzi. Canadá, 1986. DVD (101 min).

Nathalie, viciada em heroína, é uma das “filhas” da liberação sexual dos anos 60. Após a morte de Rémy por overdose de heroína, ela fica comovida, decidindo tentar se tratar para abandonar o vício – como sugerem as últimas imagens da personagem, nas quais ela chora abraçada com a mãe após beber o remédio que a curaria. A atmosfera criada pela fatal despedida de Rémy e pelo amor que então foi revelado entre ele e seu filho acabou reaproximando também Nathalie de sua mãe, com quem antes praticamente não se encontrava nem se comunicava.

 

Numa dada entrevista, quando perguntado se o filme em questão é autobiográfico, Arcand disse o seguinte: “Há um pouco de mim em todos os personagens. Eu mesmo vivi precisamente uma cena do filme (...). Sei bem que esta é minha história e que a morte do meu herói é a minha morte (...). Faço filmes sobre as pessoas que amo”.

 

Lembremos que é justamente a sensação contrária que temos ao conhecermos a Catedral de Brasília, planejada pelo brilhante arquiteto Oscar Niemeyer. Nesse caso, sentimo-nos integrados ao espaço religioso, plenos de nossos sentidos e emoções e não sufocados como é comum ocorrer.

 

Outra importante opinião sobre o assunto vem do pesquisador mexicano Nestor García Canclíni, que afirma que aos povos da contemporaneidade será preciso escolher entre viver em estado de “hibridação” ou em estado de guerra, uma vez que as trocas culturais e os contatos interétnicos são cada vez mais inevitáveis num mundo globalizado, tornando as identidades móveis, inconclusas e em permanente tensão entre as suas diversas fontes.

 

Acerca da controversa figura do especialista vale a pena conferir as observações de Anthony Giddens. Segundo ele, os “sistemas peritos”, nos quais encontra-se integrado o conhecimento dos especialistas, influenciam continuamente muitos dos aspectos do nosso ser e agir cotidianos. Eles “criam grandes áreas de segurança relativa para a continuidade da vida cotidiana” (GIDDENS, 2002: 126).

 

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