CONTEMPLAÇÃO DE ÁRTEMIS

 

Diego Braga

Mestrando/UFRJ

Resumo:

A estátua de uma deusa, num museu, é uma obra de arte, mas não é somente um objeto estético. Muito embora surja no vigor do sagrado, não é, também, simplesmente um utensílio de culto. Este ensaio tece reflexões acerca de objetos estéticos e utensílios, tentando uma aproximação com o que seja uma obra de arte.

 

Palavras-chave: arte, estética, culto, utensílio

 

É coisa bem comum vermos estátuas de deuses gregos por aí: praças, floriculturas, edifícios importantes, bancas de jornal. Nos museus, a estátua de uma divindade grega tem descrito o material de que é feita, o autor (nos casos em que se sabe), o tema, a data, etc. Nem por isso, está, necessariamente, num museu, o vigor do divino restituído na presença digna da estátua. Lá, aquela estátua não está mais como no templo. Aquela estátua é, como geralmente considerada, lá, um “objeto”. Esse objeto tem a finalidade estética. Essa finalidade define este objeto em sua essência e legitima sua existência em nossa configuração de mundo corrente. No templo, a estátua não era um objeto, muito menos um objeto com um fim - que seja - estético. No templo, o sentido e a verdade da estátua não se determinavam por um sujeito, porque ali estava a imagem de um deus que vigorava na plenitude de sua força como devir misterioso. “No mundo piedoso da Grécia Antiga (...) a vivência do essencial era ainda tão poderosa que o enganoso egocentrismo da mente humana ainda não podia exprimir-se.” O sujeito fruidor não fruía o “belo” que o objeto estátua lhe proporcionava à visão. Não havia uma relação deste tipo, isto é, de consumo. Antes, acontecia uma consumação. Ela era a efígie de uma divindade. Nela, o eixo de um mundo se punha ao modo do sagrado.

Ligeiramente elevada sobre a terra, a efígie não toca os céus, mas está exatamente entre o perto e o longe, porque ela, não importando a altura do pedestal, marca o encontro de céu e terra. A efígie não é uma divindade, mas acena a sua presença, que é sua vigência. A efígie, fazendo aparecer o divino, só o faz diante dos seres humanos, e isto quer dizer que ela somente se consuma como efígie diante de nossa presença. Essa nossa presença deve ser presente, deve ser uma presença marcada pela postura acolhedora do que diante de nós aparece e, no caso da efígie, deve ser uma postura acolhedora do divino. A efígie é a estátua vigorando entre o céu e a terra, entre os mortais e os imortais. Nela o tempo acontece como finitude e eternidade. Nela o espaço se doa como abertura aos céus e clareira telúrica. Assim, a efígie é sagrada porque habita a liminaridade, não estando nem “lá”, nem “cá”. Então, nunca poderá ser objeto de nenhum sujeito, porque ela não está sujeita a nada. Contudo, ainda assim, nela se dá “O mistério: dia-noite, inverno-verão, guerra-paz, saciedade-fome, cada vez que entre fumaça recebe um nome segundo o gosto de cada um, se apresenta diferente.”

O dizer de Heráclito ajuda a ver o que aí se interpõe: um sujeito fez a estátua e a permanência de seu vigor pressupõe que ainda a estejamos contemplando. Nós, também sujeitos, de certa forma, assim a estejamos fazendo, no seu fazer-se, sempre e a cada vez, estátua. Mas talvez dizer que em parte o sujeito está presente seu aparecimento seja mais cauteloso. O sujeito não fez o mármore. O sujeito não fez as formas antropomórficas do deus. O sujeito não fez a lua na fronte de Ártemis, nem o trigo no colo de Ceres, nem a vinha de Dioniso. O sujeito não gerou a sua condição de possibilidade. Ele é um presente da natureza, isto é, está presente, sempre, como manifestação da natureza. O sujeito não fez o vazio que permite a estátua pôr-se como presença instauradora de um mundo, nem tampouco a firmeza da terra de amplo seio, que sustenta a estátua, e a abertura vasta dos céus ao qual ela se ergue. Tudo o que é vigoroso e traz a força da verdade, na e pela estátua, isso não foi o sujeito que fez. Ainda assim, pensamos, corriqueiramente: o sujeito fez a estátua. E pensamos ainda que lhes damos o sentido. Esse sentido nos vem como um gesto que nos convida ao duplo movimento de instaurar e de sermos instaurados: mundo.

Sabemos que é, igualmente, uma constatação muito imediata não encontrarmos estátuas pendendo de árvores, nascendo no quintal, nem caindo como chuva. A estátua nos coloca um problema, mas este problema também um pedaço de tecido nos coloca: não fizemos a fibra, mas tecemos o linho. Esse problema é o de identificar uma causa eficiente, um agente causador, originante. Acreditamos: conhecer a causa originante das coisas é conhecer as coisas. Quando alguém pergunta: o que é a chuva? A resposta corrente é: precipitação de água evaporada pelo calor e condensada pelo resfriamento. É assim que a chuva se origina, e nós confundimos isso com o que a chuva é. A isto comumente chamamos “explicação do fenômeno”. Há uma outra maneira de definirmos o que uma coisa é. As coisas que são utensílios se explicam por sua função, por sua finalidade: o que é uma faca? É um objeto oblongo e achatado que serve para cortar. O que você é? Sou um advogado. Os demais objetos, as coisas inúteis, se explicam por sua causa originante. De modo geral, este último é o caso da estátua. Aquele outro, o do tecido de linho. Hoje, mergulhados em meio a utensílios, no mundo da técnica, dificilmente fazermos qualquer coisa sem antes perguntar: para quê? Parece-nos até mesmo absurdo fazer algo sem finalidade e, assim, cada vez mais nos prendemos ao âmbito restritivo do necessário, em que se operam as finalidades. Em nosso comum entendimento, o tecido de linho é um utensílio, e a estátua, um objeto estético. Na arte indumentária, entretanto, o linho é muito mais do que um utensílio. Vestir-se é somente uma arte quando o tecido, feito roupa, reúne em suas dobras história, linguagem, a terra no linho e o mundo no traje. No caimento de um tecido, na arte indumentária, há muito mais que uma causa final, há uma pendência, um sentido acontecendo. Mundo liberta e envolve, na medida em que sua abertura necessita do abraço premente da natureza. Esta dinâmica ambígua entre mundo e natureza nos mostra que “O contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários, a mais bela harmonia.” Esse dizer de Heráclito e o gesto que se lhe atribui a lenda, de que depositou seu livro no templo de Ártemis, a senhora de muitas feras, nos falam dessa doação que liberta, na medida em que, gestualmente, dá ao convergente de mundo e natureza a divergência dos contrários, na obra de seu pensamento pro-vocada pelo encanto diante do vigor autovelante da phýsis.

[figura 1a]

PRAXÍTELES. Ártemis , ca. 350-400 a.c.

Ártemis, deusa de úberes, manifesta de modo muito claro esta liminaridade de natureza e mundo. Ela é a divindade da caça. A caça, segundo sua finalidade, se realiza com fins de se conseguir alimento. Neste sentido, a caça é necessária ao homem que não possa prover uma plena alimentação sem caçar. Necessária, mas não suficiente. Definitivamente, o ser humano não caça como o lobo. A caça tem um sentido no mundo do caçador, que em torno dela tece estórias, realiza ritos, danças, cantos e estátuas. A estátua de Ártemis não serve para representar a divindade da caça. A estátua de Ártemis é uma das possibilidade de que a caça se faça presente no âmbito do sagrado. Caçar era necessário ao homem daquela época, como forma de sobrevivência, mas não era suficiente. A estátua de Ártemis diferencia a caça do homem da caça do lobo – e ela não “serve” para isso: 1) porque, como serventia, poderia “deixar de servir”, mas o homem que deixa de caçar no âmbito do sagrado é apenas (sem conotação pejorativa) um animal predador, e não mais humano; 2) porque a serventia só se cogita num contexto em que o homem já é humano, isto é, já aparece, no que aqui nos concerne, como caçador humano, e não somente como animal predador. E esse homem humano aparece, na caça do mundo grego antigo, com a estátua de Ártemis. No drapeado da estátua, o linho torna-se sagrado, e deixa de ser algo de que os homens possam dispor conforme a necessidade, ou que possam depor conforme o desuso. Sua finalidade não é determinante de seu ser. O sentido da caça é maior, para o caçador, do que sua finalidade. Para os gregos antigos, a caça era sagrada. Caçar era, muito mais que conseguir alimento, dedicar-se aos dons de uma deusa, fazer com que a verdade de Ártemis acontecesse no mundo. Havia um sentido, um culto, uma reunião acolhedora na caça que, qual a deusa virgem, lançava caçador e caça num palco onde tudo estava como numa composição: os bosques, a lua, a flecha, o galgo, os paços, o sangue e o sacrifício, tudo tinha sentido .

[figura 1b]

PRAXÍTELES. Ártemis , ca. 350-400 a.c.

O vigor da estátua de Ártemis não depende do sujeito escultor, a essência do tecido de linho não reside na sua utilidade. Mas, quem criou Ártemis? As interpretações metafísicas dos mitos em geral tendem a dizer que os deuses são ficções, criações da cultura humana. Nossa reflexão, que não se pauta pelos pressupostos da metafísica, inadequados para o que se quer aqui pensar, se alinha com o que propõe Walter Otto:

“Por causa da sedutora beleza das formas divinas, acreditou-se poder falar de uma “religião artística”, ou seja, de uma religião que no fundo não o era. E causava estranheza o fato de épocas tão grandiosas como a homérica e as subseqüentes se poderem conformar com uma fé que desconsiderava tão completamente a alma humana, suas penas e nostalgias mais profundas. Pois que podiam ser para ela esses deuses, dos quais nenhum era Deus no verdadeiro sentido da palavra?

Nós, porém, vamos opor a este generalizado pressuposto um outro menos superficial, ou seja, a de que os deuses não podem ser inventados, nem concebidos, mas tão somente vivenciados.”

A pergunta pela causa eficiente, uma vez colocada, já retira o divino e a natureza de sua vigência, transformando-os em funções de um sistema racional logicamente estruturado. Em última instância, querer determinar o que seja a causa primeira, mesmo que se chegue à conclusão de que esta seja deus, é subsumir deus e natureza às representações de um sistema racional elaborado pelo homem. Antes de o pensamento se enredar na elaboração sistemática da razão, como filosofia, nos disse Heráclito: “O mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez mas sempre foi, é e será, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando.” Essa pergunta não se coloca, se o que queremos é nos aproximar do que seja o vigor do divino, no pensamento. Quando nos lançamos numa ex-periência, saltamos de onde estamos para nos confrontarmos com o mistério do desconhecido. “Na morte advém aos homens o que não esperam nem imaginam" . Partamos então do homem, não metafisicamente determinado como sujeito, e sim mais propriamente, como ser-para-a-morte que é.

O homem, humano, é mortal. Só o homem morre, o animal acaba. Isso não quer dizer que o homem seja melhor que os demais viventes, porque o homem é um vivente entre os demais. Um belo mito nos conta que nosso nome “humano”, vem de húmus, terra negra e fértil para plantio, para nos lembrarmos sempre de nossas origens. O modo de ser vivente do homem é, contudo, o modo da mortalidade. A necessária finitude é transformada num ato de liberdade no morrer do homem: ele não precisa de ritos funerários, mas necessariamente sua vida tem um fim. Ainda assim, realiza o desnecessário dos ritos e rompe, desta feita, os grilhões da necessidade, realizando-se plenamente, tornando-se homem humano. Ter um “fim” nos é necessário, muito embora não nos seja suficiente. Os ritos conduzem esse fim para o âmbito do sagrado e, assim, esse fim já não é somente um fim, um corte, uma interrupção: ele vige, pelo rito, como um princípio. A morte, manifestação da finitude como sentido e verdade, faz do fim um princípio. “Princípio e fim se reúnem na circunferência do círculo.” , é o dizer que reluz no pensamento de Heráclito. A morte é o princípio da vida e isto quer dizer: a todo momento o princípio que rege a vida é a morte, é a ela que se destina todo o empenho, todo o vigor de viver. O homem é humano na medida de sua mortalidade. A mortalidade aparece na presença dos imortais. Evoca-se novamente as palavras do sábio de Éfeso: “Imortais mortais, Mortais imortais, vivendo a morte dos outros, morrendo a vida dos outros.” A vida para a morte se instaura como horizonte de existência humana, e todo horizonte é um limite ou, melhor dizendo, um entre que reúne o limitado e o além do limite, ilimitado. Há sempre um para além do horizonte. A vida ilimitada é própria dos seres que chamamos imortais. Diante da imortalidade dos deuses, a mortalidade dos homens. Diante da mortalidade dos homens, a imortalidade dos deuses. Homem ou deus? Michelangelo já nos mostra, na magistral capela Cistina, que não há um “ou”, apenas um tênue “entre” de dois dedos e, dali, daquele ponto vazio entre deus e homem, entre temporalidade e eternidade, mortalidade e imortalidade, natureza e mundo, dali, surgem, a um só tempo, homens e deuses e céu e terra.

[figura 2]

MICHELANGELO. Criação de Adão , ca. 1510.

Esse entre, essa fenda, é a entrada e saída do mundo, é o caminho do feto e a tumba do corpo. Na escultura de uma estátua reúnem-se o homem e o deus, o mortal e o imortal, o céu e a terra, nem lá, nem cá: entre todos, entre os mundos. Por um sutil momento quase estático, num movimento quase móvel, a estátua de Ártemis quase deixa ver o que está entre os dedos de um homem e um deus – e é esse quase que nos mantém olhando para ela há mais de dois mil anos. “Pensar reúne tudo.”


BIBLIOGRAFIA:

HEIDEGGER, Martin. “Die Ursprung des Kunstwerkes”, in: Gesamtausgabe I. Abteilung: Veröffentlichte Schriften 1914-1950, Band 5: Holzwege. Frankfurt : Vittorio Klostermann, 1977.

HERÁCLITO. “Fragmentos”, in: LEÃO, Emmanuel Carneiro (trad.). Os Pensadores Originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Petrópolis: Vozes, 1999, 3ª edição.

OTTO, Walter. Teofania: o espírito da religião dos Gregos antigos . São Paulo: Odysseus, 2006.

 

ICONOGRA FIA:

PRAXÍTELES. Ártemis (escultura em mármore, 151 cm.). Dresden , Staatliche Kunstsammlungen, Skulpturensammlung, ca. 350-400 a.c.

MICHELANGELO. Criação de Adão. (afresco, 280x570 cm.). Roma, Detalhe da Capela Sistina, ca. 1510.

OTTO, 2006: 71.

HERÁCLITO, fragmento 67 (DK).

HERÁCLITO, fragmento 10. (DK)

cf. HEIDEGGER, 1977, pp. 5-25 (toda a seção “ Das Ding und das Werk”. )

OTTO, 2006: 19.

HERÁCLITO, fragmento 30 (DK).

idem, fragmento 27 (DK).

idem, fragmento 103. (DK)

HERÁCLITO, fragmento 62.

Idem, fragmento 113.

 

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