ECOLOGIA E LETRAS

 

 

Dario de Js. Gómez Sánchez

Doutorando em Literatura Comparada

Bolsista CAPES - Faculdade de Letras U.F.R.J.

 

 

Os maiores professores (os melhores ecologistas

da sala de aula) são os que podem gerar e liberar

a maior quantidade de energia criativa coletada;

são os que compreendem que a sala de aula é uma

comunidade, um campo verdadeiramente interativo.

A pesar de poucos de nós – talvez nenhum de nós-

compreenda precisamente como esta idéia pode

ser utilizada para os fins da saúde da biosfera,

sua exploração seria um dos problemas centrais

que uma poética ecológica teria que discutir.

 

William Rueckert .

 

 

Resumo

 

Para estabelecer uma relação entre ecologia e letras três pressupostos são indispensáveis: uma concepção da ecologia além do ambiental, um questionamento da concepção formal do literário e um reconhecimento da função sócio-cultural da linguagem. Essa relação e seus pressupostos se apresentam como espaço privilegiado para questionar o excessivo intelectualismo dos estudos lingüísticos e literários e como uma alternativa para propiciar, desde a universidade, uma potenciação do humano que comprometa a dimensão ética e estética da linguagem.

 

Palavras chave

 

Ecologia – ecosofia – ecocrítica - (ensino da) literatura - (ensino da) linguagem

 

 

 

 

Contextualização

 

Temos quem pergunta, desde o universo do pragmático, o que é isso de estudar letras, justificando sua inquietude com a idéia de que a leitura e a escrita não são uma prática profissional. Temos quem afirma, desde os estudos lingüísticos e literários, que o texto escrito é em si mesmo um objeto de estudo possível de ser analisado desde ópticas diversas. Mas ambos extremos são radicais: o primeiro porque desconhece a importância para a existência do homem do conhecimento da linguagem no seu aspecto criador, e o segundo porque faz da linguagem um objeto fixo, condenando-a a um intelectualismo analítico mais próprio das ciências puras e distanciado-a do homem e suas necessidades.

Como doutorando em Ciência da Literatura acredito na importância dos estudos em letras, ainda não esteja tão seguro de que a linguagem e a literatura sejam um “objeto científico” para analisar; pelo menos não desde o intelectualismo acadêmico que os caracteriza na atualidade. E antes de entrar no assunto de este escrito, quero justificar essa afirmação desde minha experiência particular.

Quando ingresse à Universidade para estudar minha licenciatura em Literatura, desde o inicio percebi que a instancia analítica acadêmica era muito diferente da instancia de leitura pessoal e que na maioria dos casos, os estudos literários consistiam, não em potenciar o gozo da leitura, mas em obter ou desenvolver, a partir de uma terminologia particular, uma competência analítica em cada um dos gêneros literários, mas sem nenhuma relação evidente com o homem e a vida, o qual era - e é para mim - o tema central da literatura. Ao acabar a graduação, decepcionado pela impessoal formalização dos estudos literários e impressionado com os aparelhos teóricos interdisciplinares, meus interesses se inclinaram pelo estudo da lingüística.

A linguagem é a instância humanizante, o lugar de transmissão e produção da cultura. Um mestrado em lingüística, então, teria que dar conta de como e porque o homem constitui-se a si mesmo e a cultura pela linguagem, mas não o fiz. Os estudos lingüísticos – inclusive os interdisciplinares como a sócio-lingüística e a lingüística aplicada – só se preocupavam por achar estruturas comuns, normas dentro da diferença, línguas padrão. E a idéia da linguagem como transcendência e vitalidade, como espaço da realização do homem e materialização da cultura também não existia.

Querendo desenvolver minha inquietude e sabendo que a literatura é o espaço onde a linguagem alcança as suas máximas possibilidades formais e conceptuais, estéticas, comecei meu doutorado, achando que a reflexão sobre a dimensão transcendente, vital, humana da linguagem, poderia se encontrar nos estudos literários avançados; entendendo esses não só como uma competência analítica em gêneros, mas também como um questionamento sobre o homem e as suas realidades, as suas possibilidades, a partir da criação verbal de autores vários.

Mais parece que a universidade não é o lugar para tais inquietudes e reflexões, pois ao igual que na graduação – só que agora em instâncias mais elaboradas e “profundas” - as disciplinas sobre literatura parecem só se ocupar e preocupar por consolidar uma metalinguagem cada vez mais complexa (e mais distante do homem), só para especialistas, tornando o fato literário uma coisa, um objeto alheio à vida, e não o estudo – a leitura - de uma realidade mutável, uma outra realidade possível.

Ao igual que a lingüística, os estudos literários se tornam elaborações teóricas distantes da realidade – incluso da literatura -, desconhecendo a linguagem como espaço de transcendência e reflexão sobre o humano. Isso é o que gera o intelectualismo dos estudos em Letras, o qual representa um extremo dentro do radicalismo que ao inicio mencionávamos e que parece a única perspectiva possível dentro dos atuais estudos universitários.

Mas, afortunadamente, entre tanto racionalismo onde a literatura é só pretexto de conhecimento intelectual, podem aparecer propostas nas quais as estéreis metalinguagens cedem seu lugar para uma reflexão concreta sobre o homem, espaços que na sua indefinição fazem possível sentir e pensar a vida e a linguagem. A proposta de uma relação entre ecologia e letras oferece a possibilidade de questionar a referida esterilidade dos estudos em Letras e pensar eles na dimensão do vital e do social: do humano.

A primeira vista poderia se pensar que o encontro entre literatura e ecologia se reduz ao estudo de um conjunto de romances ou poemas que falam da contemplação da natureza, da crise ambiental ou do melhoramento de nosso meio ambiente. Embora, ao momento de pensar a relação entre ecologia e letras (como ampliação da relação entre literatura e ecologia), o assunto vai muito além do temático até comprometer a redefinição do ecológico, a funcionalidade da linguagem e a intencionalidade do literário. Assim, três pressupostos são indispensáveis neste campo de reflexão que estamos começando: uma concepção da ecologia que supere o mero registro ambiental até comprometer outras dimensões do humano, uma anotação sobre o estético ou poético desde uma concepção moral do literário, e um reconhecimento da função sócio-cultural da linguagem.

Concretamente, acho que o delineamento da relação ecologia - letras pode se converter num espaço privilegiado para superar a visão intelectual dos estudos lingüísticos e literários e assumir eles como possibilidade de construção da individualidade e desenvolvimento da sociedade.

 

Ecologia além da ecologia.

 

No sentido tradicional, a ecologia “estuda as relações entre os seres vivos e o meio ambiente em que vivem, bem como as suas recíprocas influências” . Entendendo o meio ambiente como um espaço físico e os seres vivos como uma unidade biológica, pouco seria o espaço para a inclusão do componente cultural nessa relação chamada ecologia. Mas, desde sua etimologia, a ecologia vai muito além do natural ou ambiental até comprometer a cultura:

 

Ecologia se constitui de dois termos gregos. 1º Oikos , que significa: habitação, família, raça; este, em grego, se forma do verbo oikizen , que significa: instalar, construir, fundar. 2º Logia , que se formou do verbo loguein : dizer, anunciar, ler, ordenar. A este verbo se prende também a palavra logos (daí logia ), que significa: palavra, razão, discurso. Percorrendo e confrontando diferentes significados possíveis dos dois termos gregos, notamos que em nenhum momento aparece a palavra natureza. Muito pelo contrário, se há um significado central no termo ecologia, este é Habitação.

 

O habitar do homem é cultural, nada nele é natural. Todo o humano está mediado pela cultura porque se constitui a partir das relações do homem com o espaço, consigo mesmo e com os demais; relações nas quais a linguagem ocupa um lugar fundamental.

Então, mais que uma rama da biologia, a ecologia teria de ser uma ciência humana; mais ainda, uma proposta de transformação social, e assim parece o entender Félix Guattari sob a denominação de Ecosofia:

 

É concebível que a nova referência ecosófica indique linhas de recomposição das práxis humanas nos mais variados domínios. Em todas as escalas individuais e coletivas, naquilo que concerne tanto á vida cotidiana quanto á reinvenção da democracia – no registro do urbanismo, da criação artística, do esporte, etc. – trata-se, a cada vez, de se debruçar sobre o que poderiam ser os dispositivos de produção da subjetividade, indo no sentido de uma ressingularização individual e/ou coletiva, ao invés de ir no sentido de uma usinagem pela mídia, sinônimo de desolação e desespero.

 

A ecosofia se apresenta como uma proposta ético - política que articula três registros: ambiental, subjetivo e coletivo. Assim, não temos só uma ecologia ambiental – baseada numa concepção romântica da natureza – mas também uma ecologia mental e uma ecologia social. Partindo do reconhecimento da deterioração dos modos de vida humanos, Guattari diz:

 

A época contemporânea, exacerbando a produção de bens materiais e imateriais em detrimento da consistência de Territórios existenciais individuais e de grupo, engendrou um imenso vazio na subjetividade que tende a se tornar cada vez mais absurda e sem recursos.

 

Por isso, com respeito à ecologia individual e a despeito das práticas psicológicas até agora implementadas, propõe um resgate da subjetividade:

 

Em cada foco existencial parcial as práxis ecológicas se esforçarão por detectar os vetores potenciais de subjetivação e de singularização. Em geral trata-se de algo que se coloca atravessado à ordem ‘normal' das coisas, uma repetição contrariante, um dado intensivo que apela outras intensidades a fim de compor outras configurações existenciais (...) É aí que se encontra o coração de todas as práxis ecológicas: as rupturas a-significantes, os catalisadores existenciais estão ao alcance das mãos, mas na ausência de um suporte expressivo, eles permanecem passivos e correm o risco de perder sua consistência (é mais por esse lado que convirá procurar as raízes da angústia, da culpabilidade e, de maneira geral, de todas as reiterações psicopatológicas).

Em termos gerais, a proposta ecosófica consiste em oferecer um status de reconhecimento à conotação, à ambigüidade; um resgate do sujeito em a sua diferença. É isso o que ele denomina “ritornelos existenciais”, os quais conseguem se expressar de modo privilegiado nas artes e que, no campo da relação ecologia (mental)-literatura, tem de ter uma importância fundamental como promotores da individualidade. Agora bem, com respeito à coletividade, Guattary afirma:

 

O principio particular à ecologia social diz respeito à promoção de um investimento afetivo e pragmático em grupos de diversos tamanhos. Esse “Eros de grupo” não se apresenta como uma quantidade abstrata, mas corresponde a uma reconversão qualitativamente específica da subjetividade primária, da alçada da ecologia mental (...) Um ponto programático primordial da ecologia social seria o de fazer transitar essas sociedades capitalistas da era da mídia em direção a uma era pós-mídia , assim entendida como uma reapropriação da mídia por uma multidão de grupos-sujeito, capazes de geri-la numa via de ressingularização.

Essa concepção de uma ecologia social entendida a partir das relações grupais tem a maior importância numa época de globalização, pois tenta resgatar as minorias e reconhecer seu estatuto desde uma ética intergrupal da diferença e intragrupal da identidade, e ambas éticas podendo ser constituídas desde uma consciência e apropriação da linguagem. Em síntese, Guattari sustém que:

 

Convém deixar que se desenvolvam as culturas particulares inventando-se, ao mesmo tempo, outros contratos de cidadania. Convém fazer com que a singularidade, a exceção, a raridade funcionem junto com uma ordem estatal o menos pesada possível (...) Em minha opinião, a ecologia ambiental, tal como existe hoje, não fez senão iniciar e prefigurar e ecologia generalizada que aqui preconizo e que terá por finalidade descentrar radicalmente as lutas sociais e as maneiras de assumir a própria psique.

 

E essa dimensão ampla da ecologia além do ambiental tem muito a ver com nossa preocupação pela dimensão humana dos estudos lingüísticos e literários, pois partir da proposta ecosófica é possível pensar que a literatura tem muito a fazer no campo da ecologia mental como proposta estética de resgate da subjetividade, mas também a linguagem é fundamental no campo da ecologia social como fundamento de uma consciência ética da coletividade.

 

 

Ecologia e Literatura

 

A conhecida sentença de Horacio segundo a qual ‘a arte é doce e útil' tem servido para sustentar a diferenciação entre uma teoria formal e uma teoria moral da arte. Alguns intérpretes têm entendido isso como a divisão entre uma função estética que reduz a arte a um prazer sem outra função além de si mesmo e uma função moral que reconhece na arte uma somatória de funções diversas . A questão tem sido debatida desde múltiplos pontos de vista em diferentes épocas, e independentemente das conclusões, é importante lembrar que a conjunção ‘e' implica que a grande arte reúne as duas características, ainda que cada escola ou artista privilegie uma delas.

 

No campo dos estudos literários, a predominância de uma das funções limita as possibilidades de leitura da literatura mesma: uma didática do ‘doce', que só se dedica ao reconhecimento do belo, o inefável, o transcendente, o espiritual da criação verbal é tão nociva para promover a leitura como uma didática do ‘útil' que troca o texto em pré-texto para a análise psicobiográfica, filosófica, sociológica ou histórica, deixando de lado o gozo artístico da palavra estética. Nós achamos que o estudo formal sem o moral, ou vice versa, não tem maior sentido, pois a literatura não é só um divertimento verbal ou uma elaboração intelectual, é as duas coisas e também uma conquista espiritual da humanidade no sentido que potencia as possibilidades da linguagem e possibilita o conhecimento de nossa particularidade.

A propósito, como falávamos ao início e em relação com a função moral, é freqüente no âmbito acadêmico centrar o ênfase no estudo da literatura como espaço de conhecimento. Assim, por exemplo, nas ciências humanas se desenvolvem densas analises sócio-históricas e na teoria lingüística se propõe a descrição de complexas estruturas narrativas e poéticas; tudo aquilo sustentado em uma idéia de cientificidade segundo a qual a literatura é um “objeto de estudo” susceptível de ser analisado desde categorias concretas.

Mas, desde nossa perspectiva, essas análises o único que conseguem é tornar o literário um pretexto para falar de assuntos diversos e para exibir um conhecimento intelectual que pouco tem que ver com a literatura mesma. Desde a teoria moral ou do útil, o estudo da literatura não é outra coisa que a elaboração de densos discursos intelectuais (supostamente) a partir da obra literária, mas onde o texto literário passa a um segundo plano. A compreensão do conteúdo sensível do texto vira interpretação racional de um pré-texto, e o professor tanto como o estudante esquecem a subjetividade própria da arte em procura de uma objetividade imposta à escrita literária.

Nesse campo é que a ecologia mental se faz tão importante, pois nos permite pensar que a literatura, mais que um campo para a aplicação da objetividade, é um evento para o desenvolvimento da subjetividade: os grandes autores – e os grandes leitores – propõem uma visão de mundo pessoal, a contra mão dos modelos impostos e dos padrões científicos, pois a arte em geral e a literatura em particular se fundamentam precisamente no resgate da individualidade. Diz Guattari:

 

“Sade e Céline se esforçaram, com maior ou menor felicidade, por tornar quase barrocos seus fantasmas negativos. Por essa razão, eles deveriam ser considerados como autores chave de uma ecologia mental.

 

O reconhecimento de uma relação entre literatura e ecologia tem de ter implicações fundamentais no campo dos estudos literários, pois nesse contexto não se trata mais de achar estruturas lingüísticas ou sócio-históricas, mas de procurar no texto aquilo que contribui ao auto-conhecimento. A ecologia mental nos permite pensar a literatura como uma forma de conhecimento, sim, mas de um conhecimento pessoal ou ontológico que contribui ao desenvolvimento da individualidade e não ao abstracionismo intelectual:

 

Chegam até nos, a todo momento, teorias bastante ou somente sofisticadas a respeito dessa complexidade e especificidade da configuração imagística da literatura. A questão fundamental, como tenho procurado demonstrar, se situa, no entanto, muito simplesmente, na pluralidade inerente ao ser humano. O discurso literário faz-se ambíguo por ser o homem uma entidade cindida: não apenas possuidor de uma língua, mas humanizado pela linguagem. Na experiência poética ele pode, realmente, livrar-se do fanatismo científico e deixar-se dês-velar com o máximo de liberdade.

 

A citada reflexão da Professora Angélica Soares inscreve-se no marco da leitura hermenêutica do texto literário, segundo a qual a subjetividade do leitor é tão importante como a ‘objetividade' do autor, pois não se trata de precisar sentidos na obra, mas de abrir os sentidos da mesma mediante o diálogo entre ambos:

 

Considerando o homem um ser dialogante, Gadamer esclarece consistir a tarefa hermenêutica em obter a pergunta que, de acordo com o interesse do intérprete, possa ser respondida pelo texto interpretado, devendo aquele levar em conta o fato de o processo de interpretação nunca ser conclusivo, pois o mesmo enunciado suscitaria outras perguntas possíveis (...) Movimentamo-nos, por tanto, sempre nos limites firmados por nosso interesse hermenêutico. E, com isso, podemos ampliar não só o conhecimento do texto, mas também “nossas experiências humanas, nosso autoconhecimento e nosso horizonte do mundo”

 

Assim, o enfoque hermenêutico privilegia a função moral a partir de um conhecimento ontológico obtido pela leitura e, pelo mesmo, está em relação com uma perspectiva ecológica mental da literatura; por isso é que seu desenvolvimento opera na direção contrária dos enfoques intelectuais ou objetivos que fazem da literatura um “objeto de estudo”; como a mesma Professora Soares diz:

Já vai se tornando claro que a leitura poética é todo o inverso da análise (do grego analisis= dissolução) sistêmica que, em nome da exatidão e da cientificidade crítica, se mantém distanciadamente sobre o texto, sustentada pela ilusão da síntese, a que pretende chegar pelo agenciamento da deconstrucão. Tudo calculadamente executado ao inverso do exercício criador, que se torna impossível sem o livre impulso da imaginação e sem o respaldo da força geradora da linguagem.

Infortunadamente, a idéia da literatura como exercício criador e prática de auto conhecimento é cada vez mais escassa frente à arremetida das modas intelectuais no estéril âmbito acadêmico. A propósito dessa proliferação de teorias diversas e na procura de uma relação entre literatura e ecologia, William Rueckert afirma:

Quanto mais eu penso sobre o problema, mais me parece que para alguns de nós que ainda desejam progredir sem o pluralismo crítico, deve existir uma transferência do local de motivação, da novidade ou elegância teórica, até mesmo coerência, a um principio de relevância. (...) Especificamente, irei experimentar como o emprego da ecologia e seus conceitos ao estudo da literatura, porque a ecologia (como uma ciência, base da visão humana) tem a maior importância para o presente e o futuro do mundo em que vivemos do que qualquer coisa que eu tenha estudado nos tempos atuais. Experimentando um poço com o titulo desse documento (literatura e ecologia) posso dizer que tentarei descobrir algo sobre a ecologia da literatura, ou tentar desenvolver uma poética ecológica a través do emprego de conceitos ecológicos à leitura, ao ensino e à escrita sobre literatura.

A proposta de Rueckert, denominada Ecocrítica, se apresenta como muito pertinente (relevante, em seus próprios termos) no campo da relação entre os estudos literários e a ecologia, pois ele está sempre falando desde o lugar de professor e leitor. Infortunadamente não temos acesso a uma bibliografia ampla sobre o tema, mas entre as noções de seu breve texto temos de destacar o conceito de energia aplicado à literatura:

 

Poemas fazem parte dos caminhos de energia que sustenta a vida. Poemas são equivalentes verbais do combustível fóssil (energia armazenada), mas eles são uma fonte de energia renovável, vindo a partir daquelas matrizes gêmeas sempre gerativas: linguagem e imaginação (...) A leitura, o ensino e o discurso crítico dispensam energia e o poder armazenado na poesia para que possa fluir pela comunidade humana (...) Precisamos descobrir formas de usar esta fonte de energia renovável para manter aquela outra fonte restante de energia. Precisamos fazer algumas relações entre a literatura e o sol, entre o ensino da literatura e a saúde da biosfera.

 

Nesse contexto, a ecocrítica apresenta todo um delineamento pedagógico em relação com a ecologia da literatura, já não (só) como fonte de conhecimento pessoal –como na leitura hermenêutica-, mas de melhoramento social e ambiental, o qual reclamaria em si mesmo um desenvolvimento particular.

Por agora, e para fechar este apartado, temos de destacar que dentro do delineamento da relação ecologia-literatura, a tarefa dos estudantes e professores consistirá em questionar essa tendência intelectual que faz da obra literária um “objeto científico”, e procurar em troca sua leitura como uma criação humana e o seu estudo como o estudo do homem, mais exatamente do homem que é e que habita sua própria individualidade. Estudar literatura, ecologicamente falando, é potenciar a subjetividade e a liberdade.

 

 

Ecologia e linguagem

 

 

Num sentido amplo, a literatura compromete não só os textos escritos com alguma valoração sócio-estética, mas também toda a criação verbal do homem, desde a tradição oral até o discurso científico. O mundo todo pode ser pensado, lido como um texto, é dizer, todos os textos que conformam o universo do humano - a cultura - podem ser considerados como literatura. E a literatura - melhor: a linguagem - é o lugar da cultura. E o homem é um ser social pela linguagem, e assim como os estudos literários podem se desenvolver desde a perspectiva de uma ecologia mental, os estudos da linguagem podem se pensar desde uma ecologia social.

No entanto, assim como freqüentemente os estudos literários fazem ênfase em um conhecimento intelectual mais que ontológico, grande parte dos estudos lingüísticos centra seu desenvolvimento em o reconhecimento de estruturas e mecanismos, esquecendo a dimensão cultural da linguagem. Ainda que Saussure defina a língua como fato social, a lingüística moderna parece ter esquecido essa definição em procura de uma descrição estrutural. O ensino da linguagem e a língua chega a ser, desde essa perspectiva, um estudo gramatical sem relação nenhuma com o sócio-cultural ou eco-social.

Uma outra perspectiva dos estudos lingüísticos modernos se centra em a discussão filosófica sobre a linguagem como meio ou como fim: no primeiro caso a linguagem é só um instrumento para nomear e comunicar uma realidade externa, no segundo caso se trata de um gerador de realidades que só existem em virtude de sua configuração pela linguagem . Sem duvida, além das realidades empíricas ou materiais, temos muitas “realidades” criadas pela linguagem, mas nos dois casos a realidade está configurada pela cultura, e é essa instância cultural a que é fundamentalmente esquecida pela perspectiva filosófica que, ao igual que os estudos estruturais, falam da linguagem como um ente isolado da sociedade e da cultura.

Por isso, muito além de concepções filosóficas ou gramaticais e ao tratar da ecologia em sua dimensão social a partir da promoção de um investimento afetivo e pragmático em grupos humanos, a proposta ecosófica de Guattari tem que comprometer, necessariamente, a linguagem como instrumento ecológico por natureza, no sentido de que permite a humanização (e habitação) do homem pela interação consigo mesmo, com outros homens e com seu espaço. Nossa proposta è que, desde a perspectiva ecosófica, os estudos lingüísticos tem de destacar a importância da linguagem para o desenvolvimento sócio-cultural a partir da promoção de uma consciência ética do falar.

A conhecida sentença de Heidegger segundo a qual “ A linguagem é a casa do ser. Em sua habitação mora o homem” pode nos ajudar a pensar a idéia de uma consciência ética da linguagem como fundamento ou objetivo de uma lingüística enfocada desde a ecologia social, pois sendo a casa é preciso lhe proteger para habitar: cuidar a linguagem é cuidar a habitação do ser na sociedade. A propósito, o mesmo Heidegger desenvolve a idéia do habitar em relação com o construir e afirma que “habitar constitui o ser do homem”:

 

A maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o qual somos homens sobre essa terra é o Buan , o habitar. Ser homem diz: ser como um mortal sobre essa terra. Diz: habitar. A antiga palavra bauen (construir) diz que o homem é á medida que habita . A palavra bauen (construir), porém, significa ao mesmo tempo: proteger e cultivar, a saber, cultivar o campo, cultivar a vinha. Construir significa cuidar do crescimento que, por si mesmo, dá tempo aos seus frutos.

 

Essa citação nos permite entrever novamente fortes nexos entre o ontológico e o ecológico e, nesse contexto, poderíamos sustentar que se o homem é homem porque habita e a linguagem é a casa do ser, então habitar é falar. O Ser ecológico teria de ser aquele que cuida do que fala, e é isso o que denominamos consciência ética da linguagem, a qual a lingüística deveria promocionar no marco de uma ecologia social.

A relação entre o ontológico e o ecológico é desenvolvida pelo Professor Manuel A. Castro a partir da idéia de cultura como habitação:

 

A ecologia anuncia esta habitação e tudo que ela implica. A cultura como processo de constituição desta habitação, precisa ser reconduzida à promoção do mundo do homem (...) A relação profunda do homem com as coisas como habitação, como existência, é conservada no verbo haver, do português. Ele significa ter, mas também existir. Habitação ( habere, habitare) e existência nos remetem para a mesma percepção da relação do homem com o real. Habitação fala do homem enquanto está junto das coisas e delas é guardião.

 

Se a cultura é ‘tudo o que homem faz, pensa, sente e crê', e a linguagem é criador e transmissor da cultura, qualquer reflexão sobre a linguagem é, de algum modo, uma reflexão sobre a cultura, e vice versa. Cultura e linguagem: habitação.

 

A ação está na ordem do sentido, o conhecimento e o signo na ordem do significado. A manifestação do imaginário gera a forma: a do mito, o rito; a do inconsciente, a consciência. Todos estes aspectos são momentos da habitação .

 

Assim, uma reflexão sobre a linguagem e a cultura, sobre o habitar, é ecológica sem dúvida nenhuma. E pensar a linguagem (e a cultura) desde uma dimensão ecológica nos permite ir além do estrutural para chegar até sua dimensão ético social:

 

A forma, o signo, a consciência, o rito permitem ao grupo social (nação) acumular e transmitir soluções. Estas asseguram o âmbito da vivencia e sobrevivência da nação e a identificam. Identidade é o processo de hominização de cada um e da nação enquanto tal.

As soluções culturais são, pois, referenciais obrigatórios. Daí receberam um valor. Defender os valores é assegurar os referenciais da identidade.

O fato que procuramos propor é que desde uma ecologia social, os estudos sobre a linguagem (e a cultura) não têm que se preocupar pela reflexão sobre o estatuto da realidade ou pela descrição de estéreis estruturas, mas pelo reconhecimento da identidade cultural e dos valores contidos na linguagem, procurando assim uma consciência ética para beneficio grupal.

A proposta ética está na base da reflexão eco-social. O professor Castro afirma:

Assegurar os valores morais, não em si, mas como afirmação da identidade do homem, agindo eticamente, é o grande objetivo da ecologia.

E Félix Guattari diz:

 

Não se trata aqui de propor um modelo de sociedade pronto para usar mas tão somente assumir o conjunto de componentes ecosóficos cujo objetivo será, em particular, a instauração de novos sistemas de valorização.

 

Nossa proposta consiste, então, em (começar a) pensar esse componente ético como fundamental no campo dos estudos lingüísticos. Tal componente teria que reorientar toda a concepção estrutural em ares de uma perspectiva social, ecológica no sentido dos valores da coletividade; melhor ainda, possibilitar a construção do bem estar da coletividade a partir de uma consciência ética da linguagem. Obviamente, tal assunto tem de requerer uma sustentação maior da que nestas linhas podemos apresentar.

Só para concluir podemos dizer que se os estudos em Letras tiverem um enfoque ecológico, a ‘analise' literário seria um exercício de autoconhecimento e a descrição lingüística uma procura da identidade sócio-cultural. Frente ao estéril intelectualismo de nossas universidades, a proposta ecológica no estudo da literatura pode facilitar o desenvolvimento da subjetividade por meio do conhecimento ontológico, e no estudo da linguagem pode contribuir para o desenvolvimento da sociedade a partir de uma ética da linguagem, é dizer, de uma responsabilidade ao falar, ao habitar.

 

Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.

Castro de, Manuel A. Ecologia: a cultura como habitação. Em: “Ecologia e literatura”. Pg. 7

Guattari,Félix: As três ecologias. Pg. 15

Guattari, Op. Cit. g. 30

Ibidem, pg. 28

Ibidem, . pgs. 45 e 47

Guattari, op. Cit., pgs. 35 e 36.

 

Aguiares ,Vitor M. Teoria de la literatura. Pg.94

Guattary, Op. Cit. Pg. 43

Soares, Angélica: O homem, a literatura, a crítica. Em: “Ressonâncias veladas da lira” pg. 26

Ibidem, Pg. 32 (A citação final é de Gadamer)

Soares, A. Op cit. Pg. 30

Rueckert, William. Literatura e ecologia. Um experimento em ecocrítica. Pg. 2

Ibidem. Pgs. 3 y 4

Bernal L, Jaime: Filosofía del lenguaje. Pg. 45

Heidegger, M. Construir, habitar, pensar. Em: Ensaios e conferências. S.f.b.

Castro de, Manuel A. Ecologia: a cultura como habitação. Em: “Ecologia e literatura”. Pgs. 26 y 27

Ibidem, pg. 22

Ibidem , pg. 22

Castro, M. Op. Cit . Pg. 23

Guatary, F. Op. cit. Pg.50

 

 

 

Bibliografia

 

AGUIARES SILVA, Victor M.: Teoría de la literatura, Cap. 2: Funciones de la

literatura. Ed. Gredos, Madrid, 1982. pgs. 35 a 47

 

BERNAL, Leon: Filosofia del lenguaje. Instituto Caro y Cuervo, Bogotá, 1994. 120 p.

 

BU ARQUE, Aurélio: Novo diccionário da língua portuguesa.

Ed. Nova fronteira, R.J. 1986

 

CASTRO DE, Manuel Antonio: Ecologia: a cultura como habitação

Em: Soares, Angélica (ed.): Ecologia e literatura. Tempo Brasileiro,

Rio de Janeiro, 1992. pgs. 13 a 33

 

GUATTARI, Félix: As três ecologias. Papirus, São Paulo, 1990. 56 p.

 

HEIDEGGER, Martin: Construir, habitar, pensar. Em: Ensaios e conferências.

Vozes, Petrópolis, 2002. pgs. 125 a 141

 

RUECKERT, William: Um experimento em ecocritica. S.f .b.

 

SOARES, Angélica: O homem, a literatura, a crítica.

Em: Ressonâncias veladas da lira. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1989.

pgs. 19 a 33

 

 

 

 

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