A MORAL E O HADES : UM PASSEIO PELOS INFERNOS FUSQUIANOS

 

 

Cassiana Lima Cardoso Mestranda na área de Poética – Programa Ciência da Literatura UFRJ
Orientador: Antonio Jardim As psiques aspiram aroma do Hades (Heráclito de Efeso)

 

 

Pois, se não fizessem procissões a Dionisio e não honrassem os genitais com hinos, procederiam despudoradamente. Mas Hades e Dionísio são o mesmo, a quem deliram e exaltam nas Lenéias. ( Idem,ibidem)

 

Jorge Luis Borges, em um de seus escritos que tem como tema uma discussão sobre A Cabala , cita KierKegaard, que disse que “se houvesse uma única alma no inferno, necessária para a variedade do mundo, e essa alma fosse a dele, cantaria do fundo do inferno a glória do Todo-Poderoso” (BORGES,2000, p.307). A idéia refere-se a um problema essencial, o da existência do mal, que a tradição metafísica separou de seu contrário, o bem , apontando as duas forças como contrárias e antagônicas. Esta atitude filosófica que reduziu o logos ao dizer racional, excluindo dele o seus poder de reunir enquanto sentido as diferenças, criou em contrapartida toda uma nomenclatura conceitual que promove a bipartição entre sensível/inteligível, sentimento/razão, matéria/espírito, cultura/natureza, corpo/alma, céu-inferno e todas as demais oposições que somente o discurso poético manteve e cultivou.

Na perspectiva da tradição Ocidental, a imagem do inferno em oposição à do céu, figura no imaginário humano como um lugar subterrâneo onde habitam as almas dos mortos. Espaço de temível penetração, palco de martírios e tormentos perdidos nas trevas, assombrado por monstros e demônios. Para os gregos, o deus dos mortos, Hades, O invisível :

 

Como ninguém ousasse pronunciar-lhe o nome, por temor de lhe excitar a cólera, ele recebeu o apodo de Plutão (o Rico), nome que implica terrível sarcasmo, mais do que eufemismo, para designar as riquezas subterrâneas na terra, entre as quais se encontra o império dos mortos E esse sarcasmo se torna macabro quando se coloca a cornucópia entre os braços de Plutão.(...)

Após a vitória de Olimpo sobre os Titãs, foi feita a partilha do universo entre os três irmãos, filhos de Cronos e Réia: A Zeus coube o Céu; a Poseidon (Netuno), coube o Mar; a Hades, o mundo subterrâneo, os Infernos ou o Tártaro. Senhor impiedoso, tão cruel quanto Perséfona, sua sobrinha e esposa, ele não dá trégua a nenhum de seus súditos ou vítimas. Seu nome foi dado ao lugar por ele dominado; Hades tornou-se símbolo dos infernos.

(CHEVALIER, 2006, p.505)

 

Todavia, a simbologia do Inferno transcende a interpretação de infortúnios infinitos. O subterrâneo é também onde se encontram ricas jazidas, o lugar das metamorfoses, das passagens da morte à vida, da germinação.

Os personagens de O Dia do Juízo , de Rosário Fusco, são em sua maioria, habitantes do submundo. A narrativa fusquiana encaminha o leitor para um estranho limbo, no qual personagens marginalizados por uma opressora moralidade de costumes, travam um verdadeiro duelo com suas consciências atormentadas. Eles experimentam em seus conflitos, a sensação de estarem divorciados de si mesmos; a disjunção existente entre seu consciente/inconsciente e prática comportamental exigida pela realidade social que vivenciam, regida por valores cristalizados do cristianismo.

São gigôlos, anãs, prostitutas, cafetinas e homossexuais freqüentadores de rodoviárias, bares, prostíbulos e uma pensão, na qual desfilam todo o tipo de caracteres. A protagonista, uma jovem órfã criada por freiras, que, libertada do internato, se torna companheira de um ex- presidiário sexagenário, vendedor de Bíblias. Boatos na cidade apontam esse amante como seu suposto pai. Ela, Primavera. Ele, Jandorno.

Além deles, um padre, um juiz, um bacharel; Todos convivendo em uma provinciana cidadezinha mineira na qual a rígida moralidade do costume é diametralmente proporcional às despudoradas condutas de seus moradores.

 

Em O Dia do juízo , de Rosário Fusco, ninguém escapa a veia irônica do narrador, que em suas ásperas e repentinas intervenções, vasculha, perscruta, ausculta minuciosamente os movimentos dos dramas que encarnam seus personagens.

Por detrás de um intricado enredo, cujo desenvolvimento narrativo não se propõe em momento algum facilitar ao leitor uma concatenação entre os eventos; vê-se de forma constante, o desnudar da consciência de personagens que vivenciam o conflito de experimentarem a dualidade presente entre o instinto e a moralidade do costume. Na intenção de justificarem suas condutas, os caracteres fusquianos mergulham aos subterrâneos de si mesmos. A atmosfera que perpassa a narrativa é de dor e sofrimento; prazer e crueldade.

Assim como em Sade, a narrativa de Rosário Fusco propõe um entrelaçamento de temas como o gozo, a crueldade, o conhecimento da natureza pelo gozo e pela crueldade. O que rege a conduta dos personagens? O conflito entre o desejo e o desejo de não desejar. Decerto que esse combate se dá no íntimo de cada um, já que é a intervenção de um cáustico e violento narrador que aproxima esses dois pólos. Esse procedimento se dá no emprego do discurso direto, que na narrativa fusquiana, funde a voz do narrados às de seus personagens. Assim, muitas das vezes se tem a primeira pessoa, mas quem fala é o narrador; ocorrendo também o inverso , quando o narrador em terceira pessoa, onisciente , põe-se a desvelar o universo interior dos personagens.

A condição sócio-econômica dos personagens é precária. Pode –se concluir que com exceção de Primavera, Duarte e o Padre; ninguém mais conheceu com profundidade o mundo das letras ou passou por qualquer instituição de ensino. Por isso a junção da fala do narrador à dos personagens é um importante estratagema para dar articulação ao discurso dos desajustados. Mas há também, e talvez seja esse o expediente que torna alguns dos personagens tão desprezíveis ao olhar do narrador e de si mesmos, o desejo de, por meio de ignóbeis justificativas, se harmonizar com o ambiente. É como se o discurso elaborado pelos personagens para salvarem a si próprios e reintegrar-lhes à realidade social a qual pertencem, os deslegitimasse ainda mais, apontando o quão hipócrita e desumana é a ordem de valores que sustenta a moralidade instituída.

Nietzsche, em A Genealogia da Moral , Uma Polêmica , questionou a capacidade humana de criar para si valores que a fundamentassem enquanto seres éticos e portanto verdadeiramente livres . O que há de pungente no discurso nitzscheano é justamente a indignação em relação à passividade do homem que renega a si mesmo em favor de uma moralidade instituída. “Seja quem tu és”, grita também o Zaratrusta, conclamando uma afirmação do humano, da variedade, da diferença, enfim da alteridade ; tão sufocada pela máquina de fabricar ideais do cristianismo:

 

Por um instinto de autoconservação, de auto-afirmação, no qual cada mentira costuma purificar-se, essa espécie de homem necessita crer no “sujeito” indiferente e livre para escolher. O sujeito (ou, falando de modo mais popular, a alma ) foi até o momento o mais sólido artigo de fé sobre a terra, talvez por haver possibilitado à grande maioria dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda espécie, enganar a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e o seu ser-assim como mérito . (NIETZSCHE, 2005, p.37)

 

A turbulência psíquica enfrentada pelos personagens fusquianos parece não desmentir ás constatações Nietzsche. De fato, a crença de que a consciência representa apenas o pequeno setor da experiência socialmente padronizada e o inconsciente representa o estado de repressão promovida pela ordem de valores vigente que determina o que é bom ou mal, resulta no fato de que o eu , a pessoa acidental, social vê-se separada de si, a pessoa humana total.

O universo de estranheza ao qual é-se arremessado ao infiltrar-se na narrativa de Rosário Fusco remete-nos a um território no qual já não mais há esta separação entre consciente/ inconsciente . Um território cujos seres já não mais se reconhecem, pois se deixaram subjugar pela moralidade de costumes. Mais que escravos de seus vícios, são estes habitantes do submundo desconhecedores de si mesmos, no momento em que se deixam guiar por uma ordem de valores que não os constitui; simplesmente por internalizarem um sistema de conceitos criados pela aristocracia que apontava o que era “bom” ou “mal”. Em Genealogia da Moral, Nietsche busca em uma pesquisa etimológica demonstrar que “bom” não provém daqueles aos quais se fez o bem:

 

Foram os “bons” mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, vulgar e plebeu. Desse phatos de distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade! Esse ponto de vista da utilidade é o mais estranho e inadequado, em vista de tal ardente manancial de juízos de valor supremos, estabelecedores e definidores de hierarquias: aí o sentimento alcançou bem o oposto daquele baixo de calor que toda prudência calcaladora, todo cálculo de utilidade pressupõe – e não por uma vez, não por uma hora de exceção, mas permanentemente. O phatos da nobreza e da distância, como já disse, o duradouro, dominante sentimento global de uma elevada estirpe senhorial, em relação com uma estirpe baixa, com um “sob” – eis a origem da oposição “bom” e “ruim”.(NIETZSCHE, 2005, p.19)

 

 

É curioso notar o que diz Nietzsche nesse excerto: ele, um pensador comumente acusado como defensor de ideais aristocráticos, e portanto preconceituosos com relação aos plebeus, afirmar de maneira contundente que a valoração de “bom” e “ruim” constitui-se a partir de uma idiossincrasia. Em sua pesquisa etimológica a respeito das designações de “bom” em diversas línguas, verificou em todas elas a ocorrência da mesma transformação conceitual _ que, em toda parte, “nobre”, “aristocrático”, no sentido social, é o conceito básico a partir do qual necessariamente se desenvolveu “bom”, no sentido de “espiritualmente nobre” “aristocrático”, de “espiritualmente bem nascido”: um desenvolvimento que corre paralelo àquele outro que faz “plebeu”, “comum”, “baixo” transmutar-se finalmente em “ruim”.

 

O que há de contundente na relação dos habitantes do submundo fusquiano e a moralidade que os condena? Os personagens de O Dia do Juízo encontram-se envoltos em uma rede de tormentos. Ás ásperas inquisições de um narrador onisciente unem-se tumultuadas especulações dos personagens, que os inscrevem em um círculo vicioso, no qual o sentimento de culpa figurará como seus maiores algozes:

 

A partir da noite daquele dia a atmosfera doméstica mudou: por quê, senhor, por quê –se inquiria. No princípio, “curtíssimo princípio”, atribuindo-se a culpa do inexplicável desajuste conjugal, vertia, na latrina “colheradas de lágrimas” noturnas, doída de remorso. Pensou em suicídio, nova fuga ... em fazer jogo franco com os dois, expor-lhes o que achava dele, de suas vidas da vida que lhe davam. Só os ingênuos aceitam e encarecem a inocência infantil.Ingênuos ou desmemoriados, “esquecidos de que foram meninos”. O instinto é sábio em qualquer idade. À criança falta-lhe, apenas, o meio de expressão adulta.

_Desculpe o exagero e me entenda.

Algo lhe soprava os ouvidos : “Prima, sua mãe terá ciúme de você? Seu pai terá ciúme dela ou desse Armando? Seu pai tem ciúme de você. Todos têm ciúme de você”. (...)

Fora do Internato, moça feita, podendo conversar livremente com Jandorno, Mainenti, Bembém, Ernesta e outras “pessoas informadas”, conclui que não se enganara. (FUSCO, 1961, p.24)

 

Primavera, a protagonista do romance de O Dia do Juízo, parece o tempo todo buscar em sua memória algo que justifique os infortúnios que atravessa. O dístico que repete ao longo da obra “DEUS ME DETESTA, DEUS ME DETESTA E EU CUMPRO SUA LEI”, corresponde a uma interpretação de mundo na qual os sofrimentos vivenciados por um individuo são fruto de culpas que este carrega consigo ; faltas pelas quais deve pagar:

O sentimento de culpa, da obrigação pessoal, para retomar o fio de nossa investigação, teve origem, como vimos na mais antiga e primordial relação pessoal, na relação entre comprador e vendedor, credor e devedor: foi então que pela primeira vez defrontou-se, mediu-se uma pessoa com outra. Não foi encontrado um grau de civilização tão baixo que não exibisse algo dessa relação. Estabelecer preços, medir valores, imaginar equivalências, trocar _isso ocupou de tal maneira o mais antigo pensamento do homem, que num certo sentido constituiu o pensamento: aí se cultivou a mais velha perspicácia, aí se poderia situar o primeiro impulso do orgulho humano, seu sentimento de si: homem (Mensch, em alemão) designa-se como o ser que mede valores, valora e mede, como “animal avaliador”. (NIETZSCHE, 2006, p.59)

 

 

O sarcástico narrador de O Dia do Juízo diverte-se ao assistir o cômico teatro das ações humanas que se contradizem continuamente em face das deter m inações de uma consciência dividida entre a moral pública, ascética; fundamentada a partir de valores cristalizados do cristianismo; e a prática sensual, privada; que perverte e corrompe. Mas não são todos a apresentarem tão conduta:

 

_Disponham sempre do Giacomo, único na espécie: padroeiro dos adúlteros dos dois sexos, ex-fêmea de muitos, atual de vários, futura de não sei quantos.(...) Boa noite para todos, sonhem comigo e não caiam das camas: machuca, queridos.

Pois é este o Giacomo Mainenti que o povo (por temer-lhe a discrição) escarnece o ano inteiro para aplaudir o que representa na Semana Santa em cima do jerico, debaixo ou pendurado na cruz, principalmente quando o ator suspira (pensando em quê? Em quem, Giacomo?), diz uma coisa em hebraico e “morre”, surdo ao sermão das sete palavras , arenga que há meio século o padre Faria vem uivando com a mesma fúria e sucesso (FUSCO, 1961, p.32)

 

 

Há no excerto acima a evidente adoção de uma atitude de profanação do sagrado por parte do narrador. Giacomo Mainenti, homossexual, despreocupado com a prática de manutenção das aparências que permeia o meio em que habita, é quem encarna a figura do Cristo na encenação das Comemorações da Semana Santa. O episódio, por seu caráter popular, serve de ensejo para o narrador delinear, ironicamente, um painel geral das contradições existentes entre os valores que a festividade celebra e o comportamento daqueles que a assistem ao participarem do ritual:

 

O vigário benzerá, ali mesmo, as palmas e ramos que os fiéis trouxeram: garantia de um ano sem tormentas e raios, sob o endosso auxiliar de Santa Bárbara e São Jerônimo.

Então, começa a trágica escalada à verde montanha, cada qual pelejando pela identificação e posse da parte que lhe toca, no festivo atropelo em que tudo acontece: choro de crianças, invocações aos anjos, beliscões, disputas verbais e físicas, imprecações, bolinas e nomes cabeludos. (FUSCO, 1961,p.32-33)

 

No entanto, nada se assemelha ao trágico destino de Primavera. No decorrer da narrativa, em virtude de circunstâncias acidentais, ela acaba por se afastar de Jandorno. Nesse período conhece um promotor, Duarte, que por um período interessa-se por ela. A cafetina ainda tenta convencê-la que tire proveito financeiro da situação, mas Primavera nega-se a proceder desta forma. O encantamento do bacharel se esvai e Primavera, que havia transposto todas as expectativas naquele romance, é acometida por um turbulento conflito que culmina com seu suicídio. Primavera joga-se do décimo terceiro andar. Nesse momento, sem marcas de pontuação, inicia-se na narrativa um monólogo interior de Primavera. O fluxo de seu inconsciente traz à tona, até que ela se despedace no chão, todas as vozes que sinalizaram sua trágica existência:

 

(...) tal mãe tal filha quem sai aos seus não degenera a maldição mora no sangue sai da igreja enxotada como cadela sai da igreja sai passar sabão na camisa pras outras não verem o que é isto isto é o corpo o que tenho elas têm melhor bem melhor tinturaria corpo de merda sublime malícia pura lavagens rápidas e Jesus em pêlo entregas a domicílio na cruz um homem afinal de contas Deus com uma toalha protegendo o sexo sexo lá no céu inferno purgatório e limbo cá aqui céu é aqui que prefiro o inferno... (FUSCO, 1961, p.272)

 

 

É no inferno que se localiza Primavera em suas últimas palavras. Impedida de realizar-se como mulher, e negando sistematicamente o que seu contexto social lhe imputava, -o destino de prostituta, dá cabo à própria vida. Sua atitude revela o estado de sua psique. Ao experimentar o seu inferno, em sua luta, acaba sucumbindo aos monstros, não por haver tentado recalcá-los no inconsciente, mas porque aceitara identificar-se com eles numa perversão consciente. Monstros que foram edificados por uma estranha Moral que julga, valora e mede os seres, ignorando as diferenças.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Bibliografia utilizada :

BORGES, Jorge Luis. Jorge Luis Borges - Obras Completas .Vários tradutores. São Paulo : Globo, 2000.

CHEVALIER, Jean/ GHEERBRANT, Alain. O Dicionário de Símbolos . Trad. SILVA, Vera Costa. BARBOSA DE SÁ, Raul. MELIM, Angela. MELIM, Lúcia. Rio de Janeiro: José Olympo, 2006.

FUSCO, Rosário. O Dia do Juízo . Rio de Janeiro: José Olympio, 1961.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral : uma Polêmica. Trad. SOUZA, Paulo Cesár. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis) curso . Porto Alegre: L&PM, 2001.

 

 

 

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