CAEIRO E ROSA: UMA POÉTICA DO HUMANO E DA NATUREZA

 

Angela Guida

Doutoranda em Ciência da Literatura

Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

Sou o Descobridor da Natureza.

(CAEIRO: 2006, 73)

 

O mato era um menino dador de brinquedos.

(ROSA: 1984, 254)

 

Contrário ao que se pensa, mediante a profusão de movimentos ambientais que emergem dos mais distantes cantos da Terra, a ecologia tem sido colocada como questão, ainda que mitificada, desde o século XVIII com os pressupostos pregados por Rousseau de retorno do humano ao espaço natural. No entanto, é a partir do final da década de 60 e início de 70 que as causas ambientais, logo, ecológicas, tornam-se questões obsedantes e políticas. Mais precisamente com a criação, em 68, do Clube de Roma – associação constituída por representantes das mais diferentes áreas e de diversos países, motivados pelo interesse comum de conscientização ecológica – pelo menos, é o que assegura Demétrio Magnoli.

Para o sociólogo, este olhar mais acurado sobre as questões ecológicas baseia-se em dois momentos sobremaneira significativos – a conferência das nações unidas de Estocolmo em 1972 e a conferência no Rio de Janeiro em 1992, a ECO/92. Não obstante, pensar a ecologia como uma questão de corpo , mundo e terra, além do meramente ambiental, data de época mais recente, apesar de esta relação existir desde os tempos mais remotos. É improvável não pensar nas pesquisas com células-tronco, no seqüenciamento do genoma humano, na clonagem e afins também como uma questão ecológica, afinal, o isto da ecologia abarca, entre outros sentidos, a relação do humano com o meio em que vive. Quiçá seja o momento de, a exemplo dos gregos, indagarmos pelo isto da ecologia e, decerto, as respostas não se restringirão a mananciais exuberantes, árvores frondosas, reservas de oxigênio e outros conceitos redutíveis de ecologia.

Julgamos pertinentes essas considerações preliminares, uma vez que elas se apresentam consoantes à proposta de diálogo deste evento – Interdisciplinaridade Poética: Corpo, Mundo e Terra – contudo, propusemo-nos a trazer para este trabalho [fruto de pesquisas ainda deveras incipientes] um percurso ecológico mais voltado para o texto literário propriamente dito. Sob tal égide, vamos questionar como a Natureza se deixa-viger na poética de Alberto Caeiro e Guimarães Rosa. Manuel Antônio Castro, poeticamente, afirma que “os conceitos são o aborto das questões” (CASTRO: 2007, 04), assim sendo, apesar de Caeiro ter se firmado como poeta e Rosa, como prosador [publicou um único livro de poemas – Magma ], usaremos a denominação poética para dialogarmos com a produção textual destes dois pensadores da modernidade, não só por sermos refratários à imposição de conceitos dicotômicos e abortivos, mas também, por acreditarmos que mesmo sem grandes sagacidades literárias, é possível apreender que a prosa de Rosa é tão carregada de poesia quanto os poemas de Caeiro. Octavio Paz argumenta – “A linguagem, por inclinação natural, tende a ser ritmo. Como se obedecessem a uma misteriosa lei de gravidade, as palavras retornam à poesia espontaneamente.” (PAZ: 2006, 12) Seguramente a prosa de Rosa é um retorno constante à poesia.

De início, a poética de Caeiro e de Rosa deixam-viger duas questões preeminentes – natureza e olhar. Poderíamos, talvez, sinalizar como hipótese que os pensadores se utilizam da Natureza como dis – ponibilidade para o exercício da poética do olhar. Em Rosa, muitos escritos abordam o olhar à maneira da Antigüidade – ver com os olhos do espírito e não com os olhos físicos. Veja-se o fragmento seguinte do conto O espelho “Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim.(...) Tirésias, contudo, já havia predito ao belo narciso que ele viveria apenas enquanto a si mesmo não se visse... (ROSA: 1994, 438). Esse olhar para dentro contradiz Caeiro, uma vez que o poeta guardador de rebanhos prega o olhar tautológico – “Creio no mundo como num malmequer,/ Por que o vejo. ” (CAEIRO: 2006,19, grifo nosso) No conto São Marcos, o personagem perde subitamente a visão no meio da floresta e esta cegueira vai, de certa forma, conduzi-lo para dentro de si próprio. “Mesmo sem os olhos. Vamos!” (ROSA: 1984, 264). Apesar de conhecer profundamente a mata, enquanto gozava da visão física, o personagem roseano jamais se aventurara a penetrar uma determinada parte da floresta, mas ao ficar cego, enfim, chega à zona desconhecida. “Sei desta aberta fria: tem sido o ponto extremo das minhas tentativas de penetração; além daqui, nunca me aventurei, nos passeios mato a dentro.” (ROSA:1984, 266) Sem grandes esforços, poderíamos vislumbrar no fragmento referido uma clara metáfora do auto-diálogo , do olhar-escuta de si próprio, sobretudo, porque Rosa explora a audição/escuta , quando o lugar-comum realça o tato.“Tão claro e inteiro me falava o mundo, que, por um momento, pensei em poder sair dali, orientando-me pela escuta .” (ROSA: 1984,264, grifo nosso). A figura do cego pode ser vista como uma imagem-questão na poética de Rosa, uma vez que ela emerge com certa recorrência. Em A benfazeja há o cego Retrupé, no conto O moço muito branco surge o cego Nicolau. Ademais, em Rosa, não é só a figura do cego, mas há outras palavras-signos que se encontram no mesmo campo semântico do olhar e que podem ser pensadas como questões – vagalume, clareira, claridade, lamparina, escuridão, branco, óculos – configurando, assim, uma espécie de poética da sombra e da escuridão e/ou um jogo do claro e do escuro . Em Campo geral , ao receber os óculos de um médico forasteiro, o menino Miguilim descobre um outro mundo e uma outra terra através do olhar.

 

 

Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo... (ROSA: 2001,149)

 

 

 

Igualmente em Caeiro, a figura do cego também se presentifica e pode ser pensada como imagem-questão, ainda que, a princípio, possa revelar-se contraditória, afinal, sua poética privilegia o olhar, aliás, mais que o olhar – o olhar tautológico. Entretanto, não nos esqueçamos de que o poeta, além de fingidor , é um contraditor . “Caindo aqui, levanto-me acolá,/ Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso .” (CAEIRO:2006,73, grifo nosso) ou então, “Verdade, mentira, certeza, incerteza.../ Aquele cego ali na estrada também conhece estas palavras.”(CAEIRO:2006,132) O desejável olhar tautológico arranha a imagem do poeta porque, em não raros poemas, o olhar e a natureza estão muito além do tamanho daquilo que ele vê. Há pouco falávamos em fingimento, entretanto, refletindo com mais acuidade, não nos parece apropriado falar em fingimento , uma vez que o próprio Caeiro adverte a nós leitores acerca de suas contradições. “Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.” (CAEIRO: 2006,54)

Leyla Perrone-Moisés questiona se de fato Caeiro teria conseguido colocar em prática o olhar que pregava. A teórica acredita que não e reforça seus argumentos, ao comentar o uso da expressão “quem me dera”, presente em alguns textos de Caeiro.Vestígios de que o poeta não haveria conseguido praticar, pelos menos, em sua totalidade, o olhar que preconizava. “Quem me dera ser de fato Caeiro, e poder olhar sem pensar – isto é o que diz, indireta e constantemente, a poesia do guardador de rebanhos.” (PERRONE-MOISÉS: 2003, 337) Para nós, semelhantes considerações não traduzem muita relevância diante da grandeza de Caeiro ao reconhecer- se humano, porque reconhecer-se humano é reconhecer-se contraditório em suas sensações, em sua forma de apreender corpo , mundo e terra . Talvez, mais que o poeta dos sentidos, Caeiro seja o poeta das sensações, ainda que, mais uma vez, isso contradiga sua pretendida postura tautológica diante do olhar. “Olho-me e comovo-me .”(CAEIRO: 2006, 39, grifo nosso) Se o olhar fosse mera tautologia, o poeta não teria sido arrebatado pela comoção. O olhar seria tão-só o olhar, assim como não seria invadido pela nostalgia diante da luz do luar que bate na relva. “O luar quando bate na relva/ Não sei que cousas me lembra.../ Lembra-me a voz da criada velha/ Contando-me contos de fadas(...)” (CAEIRO: 2006, 44). Caeiro é humano, demasiado humano.

O poeta guardador de rebanhos e Rosa, outrossim, revelam-se refratários à questão do nomear, contudo quando se trata do espaço natural, Rosa o nomeia de maneira taxionômica. “ Mas as imbaúbas! As queridas imbaúbas jovens, que são toda uma paisagem...Depuradas, esguias, femininas, sempre suportando cipó-braçadeira, que lhes galga o corpo com espirais constrictas. (ROSA: 1984,256) Octávio Paz observa que Caeiro “não se propõe a dar nomes aos seres e por isso nunca nos diz se a pedra é um cristal ou um seixo, se a árvore é um pinho ou uma azinheira.”(PAZ: 2006, 211) As árvores são apenas árvores. “Um renque de árvores lá longe, lá para a encosta. /Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.” (CAEIRO: 2006, 71) O não-nomear de Caeiro seria a qüididade da árvore, o ser-árvore do qual fala Heidegger em A questão da técnica? Para Caeiro subsiste a essência da árvore, logo, não é relevante se se trata de um jequitibá ou de uma aroeira. A questão é o ser-árvore . “A qüididade, responde à pergunta pela essência de alguma coisa. O que, por exemplo, convém e pertence a todas as espécies de árvores; carvalho, faia, bétula, pinheiro, é uma mesma arboridade, o mesmo ser árvore(...) (HEIDEGGER: 2001, 32). Quem sabe, em Rosa, a relevância da experienciação mais direta possa dar conta desse classificar taxionômico dos elementos naturais, o que, talvez, não poderia se aplicar ao poeta guardador de rebanhos, pois conforme ele mesmo revela “Eu nunca guardei rebanhos, / Mas é como se os guardasse” (CAEIRO: 2006, 16, grifo nosso). Para nós, o como se distancia-se do campo da experienciação. Ao longo de nossas considerações, temos ressaltado o caráter contraditório da poética de Caeiro, quiçá fosse mais apropriado pensar as contradições caeirianas sob a égide do fragmento 123 de Heráclito “Physis Kryptestai Philei . A natureza ama velar-se. Antevendo o perigo do des – encobrimento preconizado por Heidegger “o destino do desencobrimento não é, em si mesmo, um perigo qualquer, mas o perigo” (HEIDEGGER: 2001, 29), Caeiro se mostra e se retrai num jogo de des-encobrimento e en-cobrimento . “Todo desencobrimento pertence a um abrigar e esconder. Ora, o que liberta é o mistério, um encoberto que sempre se encobre, mesmo quando se desencobre.” (HEIDEGGER: 2001, 28) Caeiro se des – vela e assume sua tristeza diante do cair da noite para em seguida, velar-se e justificar essa tristeza como algo natural. “ (...) eu fico triste como um pôr de sol/ Para a nossa imaginação, /Quando esfria no fundo da planície/ e se sente a noite entrada/ Como uma borboleta pela janela./ Mas a minha tristeza é sossego/ Porque é natural e justa.” (CAEIRO: 2006,16). O conector mas encerra em si todo o jogo do velar e do des-velar. Em outro fragmento deixa escapar um remorso por ter se des-velado. “Mas quem me mandou a mim querer perceber?/ Quem me disse que havia que perceber?” (CAEIRO: 2006, p. 47)

Em um de seus célebres aforismos, Nietzsche comenta que é aprazível ficar em contato com a natureza porque ela não apresenta opinião acerca do humano. De fato, a natureza não exprime juízo sobre nós, mas em Caeiro e Rosa, conforme tem sido demonstrado, ela pode ser apreendida como algo que talvez seja bem mais complexo que lidar com o olhar externo – o embate com o olhar interno. Ela poderia se configurar, assim, como um dos possíveis caminhos/tao para o auto-diálogo , logo, para o encontro-escuta de si próprio. “Entretanto, hoje em dia, na verdade, o homem já não se encontra em parte alguma, consigo mesmo, isto é, com a sua essência.” (HEIDEGGER: 2001,30) Em São Marcos , o personagem cego e sozinho na floresta habita o antes inabitável de si próprio, sua zona desconhecida – “Então, eu compreendi que a tragédia era negócio meu particular, e que, no meio de tantos olhos, só os meus tinham cegado(...) Mas, então, qual será a realidade, perigosa, no sul?” (ROSA: 1984,262, 263). Em outro fragmento de Caeiro lemos – “ Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa/ Na cara dos meus sentidos,/ Eu fico confuso, perturbado, querendo perceber/ Não sei bem como nem o quê...”(CAEIRO:2006, 47). No conto Nada e a nossa condição, Tio Man'Antônio, “de si para si”, silencia-se diante de sua paisagem contemplativa:

 

 

Sim, se os cimos – onde a montanha abre asas – e as infernas grotas, abismáticas, profundíssimas. Tanto contemplativa-as, feito se, a elas, algo, algum modo, de si, votivo, o melhor, ofertasse: esperança e expiação, sacrifícios, esforços – à flor. Seria, por isso, um dia topasse, ao favorável, pelo tributo gratos, o Rei-dos-Montes ou o Rei-das-Grotas – que de tudo há e tudo a gente encontra? De si para si, quem sabe, só o que o inútil, novo e necessário, segredasse ; ele consigo mesmo muito se calava. (ROSA: 1994, 444, grifo nosso)

 

 

Esta proposta de diálogo, por nós pretendida, entre Caeiro e Rosa ainda se revela bastante incipiente, portanto, está no espaço do risco, do “salto mortale ”, à procura de seu Kairós, mas ainda assim, a poética desses dois pensadores, seja no velar-se ou no des-velar-se, convida-nos a pensar a relação – humano/ ecologia/natureza – como uma questão de corpo , mundo e terra e não como um mero modismo que se faz presente, em não raros segmentos das “ficções sociais”, como forma de apaziguamento da consciência daqueles que se autodenominam politicamente corretos , mas esmagam flores em livros e põe plantas em jarros, como observa nosso mestre Caeiro.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Bibliografia

CAEIRO, Alberto. Poesia completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

 

CASTRO, Manuel Antônio. A questão e os conceitos. In: http://travessiapoetica.blogspot.com

 

HEIDEGGER, Martin. Que é isto – a filosofia? In: Os pensadores. Trad. Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

______. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências . Rio de Janeiro: Vozes, 2001.

 

MAGNOLI, Demétrio. A consciência planetária e a pedagogia inaciana. In: Pedagogia inaciana e os novos sujeitos históricos. (org.) Vitorino Serafin. Florianópolis: Edições Catarinense, 2006.

 

MATURANA, Humberto. Biologia do conhecer e epistemologia. In: Cognição, Ciência e Vida cotidiana. Belo Horizonte: UFMG, 2001.

 

PAZ, Octávio. Signos em rotação. Trad. Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 2006.

 

PERRO NE-MOISÉS, Leyla. Pensar é estar doente dos olhos. In: O olhar. (org.) Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

 

NIETZSCHE, Friedrich. Humano demasiado humano. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2005.

 

ROSA, João Guimarães. São Marcos. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1984.

______. Ficção completa. V. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

______. Miguilim e Manuelzão: corpo de baile. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2001.

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