“Como é verdadeira e ardente essa segunda juventude que o homem extrai de si mesmo! Mas como são perigosas, também, suas volúpias fulminantes e seus encantamentos enervantes. E, no entanto, ... qual de nós teria a coragem de condenar o homem que se abebera de paixão e genialidade?

                                                                                                          (Charles Baudelaire)

 

 

 

 

 

Muitas foram as razões que nos fizeram parecer especialmente destacável o vinho, entre os variados e ricos recursos representativos do romance Lavoura Arcaica. A força simbólica deste elemento abre caminhos para múltiplas interpretações e leituras acerca dos personagens, das relações que guardam entre si, dos espaços que preenchem, dos discursos que interiorizam.

Lavoura Arcaica, como o vinho, promove um trajeto rumo ao entorpecimento. Gera prazer, inquietação, fascínio, êxtase. Embebidos nesta ambiência, desenvolvemos nosso trabalho.

A inesgotável simbologia do vinho é essencialmente paradoxal e são os princípios deste elemento antagônicos, por excelência. Marcel Detienne faz interessante observação de que o vinho, em seu estado líquido, contém, simultaneamente, a água e o fogo, assumindo uma constituição dupla de fogo líquido[i].

O vinho pode propiciar efeitos eufóricos ou catastróficos. Se por um lado representa o amor, a alegria, o conhecimento; por outro remete à cólera, aos impulsos violentos, à loucura, à demência. Considerado como o sangue da terra, o vinho é uma bebida freqüentemente relacionada à renovação da vida, à imortalidade e aos processos alquímicos.

Líquido sagrado, representação do sangue de Cristo, o vinho é o elemento de Dioniso, deus das realizações orgiásticas, dos estados de êxtase e da fertilidade dos campos e das árvores frutíferas.  Dioniso, cultor da embriaguez, possui também natureza dual e sua própria origem mitológica é controversa. Por uma versão, seria originário da Trácia e criador da agricultura. Outra teoria dá conta de que o deus Baco teria surgido na Lídia e desenvolvido o cultivo de plantas frutíferas, dentre elas, a vinha.

Dioniso é marcado por ambigüidades e não define limites entre o divino e o humano, o masculino e o feminino, a loucura e a sabedoria, a civilização e a barbárie. Sua força ambivalente encontra continuidade no vinho, que, segundo crenças provindas da Antigüidade, em contato com o organismo que dele faz uso, produz o sangue e torna vulnerável a natureza humana, na medida em que proporciona, depois do repouso, o movimento.          

Em Lavoura Arcaica, o vinho está eminentemente associado a André, personagem central da trama. Muitos aspectos de sua constituição básica são reafirmados pela importância que o personagem confere ao vinho, como artifício de transformação : a natureza de seu caráter, as origens de sua diferença, de seu afastamento em relação à família, a essência do discurso que (des)constrói ao longo da narrativa, suas dubiedades, seu modus vivendi, enfim.

André, incansável questionador do discurso instaurado da ordem, é o filho distinto, ávido pelo conhecimento e pelas experiências iniciáticas. Ambíguo, dado aos instintos e aos impulsos sensuais, demonstra resistência ao trabalho, em família, na lavoura. Sente-se injustiçado por lhe ser proibido viver o amor incestuoso que nutre pela irmã, Ana. Identifica-se, diante da família, como um inadaptado e, a certa altura, sua diferença torna-se insustentável na casa paterna, o que o faz abandoná-la.

Em oposição aos princípios defendidos nos discursos paternos, André lança-se à vida contemplativa e ociosa, e encontra no uso do vinho uma via de escape, uma possibilidade de estar em contato com uma realidade diferente daquela em que se insere, de estabelecer uma espécie de nova ordem. 

  É pertinente observar que o contraste entre a funcionalidade simbólica do vinho e a força representativa do elemento pão, em Lavoura Arcaica, é a base de uma oposição central entre André e seu pai (representação da ordem familiar); e uma série de outras oposições resultantes.  Assim, o pão, ícone recorrente no discurso paterno, fruto do trabalho coletivo da família, exerceria uma espécie de força centrípeta, em prol da união, da saúde e da continuidade do grupo. Em contrapartida, o vinho, ao menos sob a ótica do discurso da ordem, poderia motivar uma força centrífuga, causando o afastamento, a debilidade, a loucura e a morte.

Notem-se, como ilustração de nosso pensamento, as palavras de Pedro, irmão mais velho, prolongamento ideológico do patriarca, ao censurar André, num momento em que este exagerava no uso do vinho :   

“... nem você deve beber mais, não vem deste vinho a sabedoria das lições do pai ... não é o espírito deste vinho que vai reparar tanto estrago em nossa casa ... guarde esta garrafa, previna-se contra o deboche, estamos falando da família” [ii]

A ligação de André com o vinho, no entanto, admite flexibilidade, e se demonstra de várias maneiras, admitindo diversos níveis de intensidade. A dualidade do líquido de Baco encontra um porto propício e adaptável no caráter complexo e contraditório do “irmão acometido” [iii]

André experimenta, através do contato com o vinho, desde uma letargia agradável e amena, uma sensação aprazível de entorpecimento e leveza, até acessos de tensão e agressividade, passando, inclusive, pela transmutação de seu corpo.  A propósito desta multiplicidade de efeitos provocados pelo vinho, notemos as palavras de Andrócides, citadas por Marcel Detienne, na obra Dioniso a céu aberto:

... Nascido de mãe selvagem, o vinho é uma substância em que se misturam a morte com a vida multiplicada, em que se alternam o fogo ardente e a umidade que refresca. É tanto um remédio quanto um veneno, uma droga pela qual o humano se supera e se transforma em animal, descobre o êxtase ou afunda na bestialidade.

                     ( DETIENNE : 1988, p. 63)

 

Acreditamos que o vinho seja, para André, um dos “objetos que o quarto consagra[iv]. O protagonista do romance de Raduan Nassar permite-se dessedentar-se, através da bebida, com prazer e gozo, sem culpas ou aflições.

 Num trecho do discurso literário em que o personagem visualiza projeções de um futuro feliz ao lado de Ana, verifica-se um vínculo entre o vinho e uma ambiência de prazer extremo :

... e decantaremos numerosos vinhos capitosos, e nos embriagaremos depois como dois meninos, e subiremos escarpas de pés descalços ( que tropel de anjos, que acordes de cítaras, já ouço cascos repicando sinos!) e, de mãos dadas, iremos juntos incendiar o mundo!    

                     ( NASSAR  : 2001, p. 108)

 

Outra importante forma de aparição do vinho em Lavoura Arcaica é como instrumento através do qual o corpo se transforma. A propósito desta idéia, convém citar as palavras de Helena Miranda Mollo, acerca do vinho, em seu ensaio, “Vinho e Metamorfose”: “Possuindo a mesma cor do sangue dos homens, terá o movimento da vida, pois ao ser ingerido, passa por uma transmutação no corpo, transformando-se em sangue. Começa, então, um processo de renovação da vida e do próprio corpo do homem”[v]. 

Há momentos da narrativa em que André, envolvido pelos delírios de sua embriaguez, identifica e narra o seu estado de metamorfose corporal.  Eis um trecho em que o sangue e o vinho se confundem, explicitando a relação metafórica entre estes elementos :

... mas eram na verdade só as primeiras ressonâncias do meu sangue tinto que eu sentia salso e grosso, e refluindo na cabeça, e intumescendo ali a flor antes inerme, e fazendo daquele amontoado de vermes, despojada de galões, a almofada sacra pr’eu  deitar meu pensamento; só eu sabia naquele instante de espumas, em que águas, em que ondas eu próprio navegava, só eu sabia que vertigem de sal me fazia oscilar, ‘é o meu delírio’ eu disse ainda....  

                    

(NASSAR : 2001, p. 48)

Se o vinho possui íntima relação com a vitalidade, com as forças de renovação da vida, seria aceitável o pensamento de que a transformação do corpo por ele realizada passaria pela questão da sensualidade, outro aspecto de fundamental importância em Lavoura Arcaica, e acentuadamente perceptível em André. No momento da narrativa em que o personagem tenta persuadir Ana a aceitar o seu amor, eis a ocorrência, no discurso, em que se podem confirmar nossas idéias :

... vasculhando os oratórios em busca da carne e do sangue, mergulhando a hóstia anêmica no cálice do meu vinho, riscando com as unhas, nos vasos, a brandura dos lírios, imprimindo o meu dígito na castidade deste pergaminho, perseguindo nos nichos a lascívia dos santos ( que recato nesta virgem com faces de carmim! que bicadas no meu fígado!), me perdendo numa neblina de incenso para celebrar o demônio que eu tinha diante de mim: ‘tenho sede, Ana, quero beber’ (...) eu que vinha correndo as mãos na minha pele exasperada, devassando meu corpo adolescente, fazendo surgir da flora meiga do púbis, num ímpeto cheio de caprichos e de engenhos, o meu falo soberbo, resoluto, e, um pouco abaixo, entre as costuras das virilhas, penso, me enchendo a palma, o saco tosco do meu escroto que protegia a fonte primordial de todos os meus tormentos ...

 

         (NASSAR : 2001, p. 137)

                                 

A vida e a morte, a paz e o tumulto, o sagrado e o profano, a sanidade e a loucura, tudo se neutraliza no vinho. Em dois textos literários clássicos – a Bíblia e As Bacantes, de Eurípedes, o vinho assume formas extremas. No primeiro, o seu consumo é associado, de maneira geral, a um ritual sagrado, a uma forma de celebrar as dádivas de Deus, presentificar o seu espírito. Na tragédia grega, em contrapartida, o uso do vinho leva a conseqüências violentas e caóticas. O vinho está fortemente vinculado aos impulsos irracionais da essência humana.       

 O desfecho trágico em Lavoura Arcaica é a representação analógica de um ritual de bacantes. Na festa que marca o retorno de André à casa familiar, a própria descrição da cena, dos personagens e da ação, realizada pelo discurso, sugere a similaridade com os cultos dionisíacos. O texto deixa muito claro tratar-se de um acontecimento orgiástico :

“... já transportavam contentes garrafões de vinho, correndo sucessivas vezes todos os copos, despejando risonhas o sangue decantado e generoso em todos os copos, recebido sempre com saudações efusivas que eram prenúncio de uma gorda alegria ...[vi] 

Um pouco mais adiante, o discurso nos apresenta nada menos do que Baco, conduzindo e estimulando a embriaguez:

... meu velho tio, velho imigrante, mas pastor na sua infância, puxou do bolso a flauta, um caule delicado nas suas mãos pesadas, e se pôs então a soprar nela como um pássaro, suas bochechas se inflando como as bochechas de uma criança, e elas inflavam tanto, tanto, e ele sangüíneo dava a impressão de que faria jorrar pelas orelhas, feito torneiras, todo o seu vinho...  

 

(NASSAR : 2001, p. 187)

Muitas culturas reconhecem que o uso desmedido do vinho, o seu consumo em demasia causa, não raro, reações maléficas, levando a embriaguez à loucura e à irracionalidade. A cólera do patriarca no final do romance de Raduan Nassar, ao investir num golpe fatal contra a própria filha, expressa a perda do controle, o comportamento bárbaro, descomedido, desencadeado pela hybris, exaltada com o vinho. Convém lembrar que nas Bacantes – eis um diálogo entre literaturas – Agave mata o próprio filho, depois de exorbitar no vinho.

Embora seja um dos maiores responsáveis pela tragédia que se verifica ao fim de Lavoura Arcaica, André não tem presença ativa na cena final. Afastado, assiste a tudo sem qualquer envolvimento físico. Confirma, uma vez mais, sua natureza contemplativa, seu estilo um tanto passivo de viver.

André realiza, durante toda a narrativa, a desconstrução do discurso paterno, ora com base em critérios deste próprio discurso, no fundo, falho e contraditório, ora através de seu pensamento filosófico, poético, renovador, subjetivo. A estória do faminto, contada por seu pai como um exemplo a ser seguido, funciona como um marco da divergência ideológica entre os dois personagens.

 A fábula narra a estória de um faminto que, chegando a um reino de fartura, implora um alimento. O monarca, à procura de um homem realmente paciente, simula o oferecimento de diversas iguarias ao faminto, fazendo mímicas e descrições detalhadas. O pobre homem adere ao “faz de conta” e, em nenhum momento, faz questionamentos ou perde o espírito lúdico. Conquista, então, a simpatia do rei, que o recompensa com uma refeição verdadeira.

A estória sugere que a paciência é a maior das virtudes e que o homem deve sujeitar-se, resignadamente, à fome, para que um dia ela possa saciar-se. André, em sua sensibilidade de revolucionário, consegue identificar o absurdo deste discurso, propondo uma outra finalização para a fábula. O momento em que o personagem demonstra sua discordância é dos trechos mais  belos e bem construídos do romance. Certamente, não é por coincidência, esta passagem relacionar-se com o vinho :

          ... o faminto, com a força surpreendente e descomunal da sua fome, desfechara um murro violento contra o ancião de barbas brancas e formosas, explicando-se diante de sua indignação : ‘Senhor meu e louro da minha fronte, bem sabes que sou o teu escravo, o teu escravo submisso, o homem que recebeste à tua mesa e a quem banqueteaste com iguarias dignas do maior rei, e a quem por fim mataste a sede com numerosos vinhos velhos. Que queres, senhor, o espírito do vinho subiu-me à cabeça e não posso responder pelo que fiz quando ergui a mão contra o meu benfeitor.’... 

         (NASSAR : 2001, p. 86,87)

      

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Notas



[i] Cf. DETIENNE, Marcel. Dioniso a céu aberto.

[ii] NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica, p. 40

3 NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica, p. 110.

[iv] Ibidem, p. 9.

[v] MOLLO, Helena Miranda. Vinho e Metamorfose. In: BASTIAN, Vera Regina Figueiredo &PESSANHA, Nely Maria (Orgs) Vinho e Pensamento, p 263.

[vi] NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica, p. 186.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Bibliografia

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CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos (Mitos, Sonhos,       

             Costumes, Gestos, Formas, Figuras, Cores, Números). Rio de janeiro: José Olympio

            Editora , 1990.

 

NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica. 3ª ed . São Paulo: Companhia das letras, 2001.

 

MELLO, Suzanna Teixeira Mendes de. A presença dionisíaca na tragédia grega: os

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            Figueiredo & PESSANHA, Nely Maria (Orgs) Vinho e Pensamento, Rio de Janeiro,

            Tempo brasileiro, 1991, pp 41-46. 

 

MOLLO, Helena Miranda. Vinho e Metamorfose. In: BASTIAN, Vera Regina Figueiredo

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STARLING, Maria Adília Pestana de Aguiar. Dioniso, deus das representações dramáticas.      In: BASTIAN, Vera Regina Figueiredo & PESSANHA, Nely Maria (Orgs) Vinho e

            Pensamento, Rio de Janeiro, Tempo brasileiro, 1991, pp 17-21.