Roberta da Costa de Sousa
Romance
tradicional x romance moderno
Os romances tradicionais, como os folhetins que
predominaram durante os séculos XVIII e XIX, valorizam a história a ser
contada. O leitor, preocupado com a ação, quer saber o que vai acontecer, pois
o importante é o enredo. A escrita linear, com uma história fechada, fazia o
leitor do Romantismo mergulhar no enredo e vivenciar o drama dos personagens
como uma história real, sofrendo os dissabores deles, a ponto de terminar a
leitura aos prantos.
A partir do século XIX, entra em cena o romance
moderno, que vai discutir a forma por meio da qual se conta a história, ou seja,
a questão do discurso. Isso ocorre por meio da metalinguagem, recurso artístico
que se caracteriza pelo fato de a linguagem se voltar sobre si mesma, sobre o
seu próprio código: se vale das palavras que a compõem para expor procedimentos
de construção do discurso.
Machado de
Assis
O autor que desenvolve esse estilo na literatura
brasileira é Machado de Assis. Inicialmente, Machado escreveu romances
românticos tradicionais, como Helena
e Iaiá Garcia. A ruptura se dá com Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881),
no qual o narrador em primeira pessoa, autobiográfico, não é um “autor
defunto”, mas um “defunto autor”. Ao colocar um defunto como narrador, o texto
já deixa claro que envereda pelo terreno da inverossimilhança. Brás Cubas sabe
que seu romance é uma versão: está rememorando os fatos e não pode recuperá-los
fielmente, apenas contá-los como interpretações. “Era fixa a minha idéia, fixa como... Não me ocorre nada que seja assaz
fixo nesse mundo...” (ASSIS, 1978, p. 19).
Desde o prólogo, ele classifica o romance como uma
“obra difusa”, que não vai agradar a todos, e não disfarça que os comentários
irônicos vão acompanhar o leitor por toda a narrativa. Assim, Machado faz uso
da metalinguagem ao interpelar o leitor ou a leitora ou redigindo digressões, o
que torna a leitura descontínua. Essa descontinuidade impede a mistura entre
realidade e ficção por parte de quem lê. O leitor machadiano é levado a
distanciar-se da narrativa para compreender o sentido simbólico inerente.
Dessa forma, Machado foi um predecessor do Modernismo.
Este movimento abordou a transformação do ato criador em tema da criação, o que
constitui a metalinguagem. A arte do século XX passou por um
autoquestionamento, do qual a metalinguagem se tornou um instrumento. Este
recurso foi adotado pela arte moderna com a finalidade de produzir no
espectador/leitor uma nova atitude. A intenção de despertar no leitor a
consciência de que a arte é um “fazer artístico” integrava o projeto estético
modernista.
A arte deixou de ser apenas um espaço de evasão e
também incluiu em suas funções a possibilidade da tomada de consciência por
meio do distanciamento do objeto artístico. Quando Machado de Assis dialoga com
o leitor, seja para comentar o teor de um capítulo ou para antecipar um
acontecimento que só concretizar-se-á num momento posterior, está rompendo a
linearidade narrativa e içando o leitor a outro plano. Assim, antecipa a
atitude autocrítica dos modernistas.
A discussão sobre os procedimentos de construção do
texto deixa claro que o romance não pretende iludir o leitor, tratando a obra
como uma realidade aparente. Ao contrário, esta postura lança uma espécie de
pacto entre o leitor e o narrador: “eu sei que você está lendo e você sabe que
eu estou escrevendo”. Ambos sabem que aquela é uma obra de ficção.
Nas artes plásticas, o termo “desrealização” se refere
ao fato de que a pintura deixou de ser mimética e se recusa a simplesmente
reproduzir ou imitar a realidade empírica. Na pintura, correntes figurativas,
como o cubismo, o expressionismo e o surrealismo, todas consideradas
representantes das vanguardas européias, deixaram de visar à reprodução fiel da
realidade sensível para desenvolver a arte a partir da fragmentação, da
geometria, da deformação, do onírico e do absurdo. Todas constituem a negação
do realismo enquanto designação da tendência à reprodução da realidade
apreendida pelos sentidos.
No universo machadiano, o que importa é considerar que
a fantasia funciona como realidade. No caso de Bentinho,
No entanto, como a obra é narrada em primeira pessoa, o
leitor não tem acesso aos fatos tais como eles aconteceram, mas apenas à versão
do narrador-personagem, cuja isenção é nula. Ele diz que o filho é idêntico a
Escobar, e cabe ao leitor tirar as suas próprias conclusões, acreditar ou não
na versão de Bentinho. Enfim, o real pode ser o que parece real.
Um pouco
de teoria
Em suas obras, Machado cria uma verdadeira teoria da
literatura por meio dos diálogos que estabelece com o leitor. Uma
característica comum consiste na classificação dos leitores em categorias como
“graves” e “frívolos”. Muitas vezes, o autor o provoca, gerando até mesmo um
certo incômodo, pois sabe que o leitor do século XIX está acostumado a romances
românticos e ainda não está preparado para o estilo narrativo “ébrio” de Brás
Cubas.
...o maior
defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda
devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e
este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda,
andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...
(ASSIS, 1978, p. 102)
Talvez por isso, ainda mantém o narrador clássico que
orienta o leitor em sua jornada, tenta organizar o texto, realizando
retificações, advertindo para o que vai acontecer, pois guarda um compromisso:
o entendimento do leitor com a obra. Ainda não pode se pautar por um estilo
como o fluxo da consciência, de Virginia Woolf, que entra diretamente no
pensamento do personagem. Machado vislumbra que os parâmetros da narrativa
devem ser discutidos, sinaliza, mas ainda não concretiza o desaparecimento do
narrador mediador.
Entretanto, antecipa a teoria da recepção. A história
moderna da teoria da literatura se caracteriza por três fases quanto à prioridade
do objeto de estudo. No período romântico, predomina a preocupação com o autor,
pois se considerava que o artista era dotado de uma genialidade que tornava a
sua obra original. Mais tarde, as correntes teóricas se voltam exclusivamente
para o texto
Para Barthes (1999), o “texto de
fruição” provoca desconforto, uma crise na relação com a linguagem, pois leva o
leitor a questionar seus valores sociais e culturais. Enquanto alguns apenas
passam as páginas em busca da sucessão de acontecimentos a fim de se deparar
com o grand finale, outros sabem que
uma obra é apenas o início de uma série de reflexões. O final não constitui o
encerramento de um ciclo. Não há uma resposta a ser encontrada, mas infinitos
caminhos.
...leiam
depressa, por fragmentos, um texto moderno, esse texto torna-se opaco, perempto
para o nosso prazer: vocês querem que ocorra alguma coisa, e não ocorre nada;
pois o que ocorre à linguagem não ocorre ao discurso: o que “acorre”, o
que “se vai”, a fenda das duas margens,
o interstício da fruição, produz-se no volume das linguagens, na enunciação,
não na seqüência dos enunciados: não devorar, não engolir, mas pastar, aparar
com minúcia, redescobrir... (BARTHES, 1999, p.20)
Foi o próprio Barthes que
dessacralizou a figura do autor, quando os estudos literários ainda se baseavam
na investigação da biografia do autor para explicar um texto, as razões do
personagem, os motivos de determinadas soluções literárias. Certas cobranças
geram indagações que nem mesmo o próprio autor consegue responder. Procurar
todas as respostas nele apenas limita as possibilidades de leitura e concede a
quem lê uma posição extremamente confortável em relação ao texto.
A análise do texto em si, como
propunha a Nova Crítica Americana (1930-50), ou da estrutura, como o
Estruturalismo, também não solucionava todos os problemas. Os Novos Críticos
rompem com a teoria dos Grandes Homens, porque o poema diz a despeito das
intenções do poeta ou dos sentimentos subjetivos do leitor, a mensagem está na
própria linguagem do texto literário.
O Estruturalismo não considera a
literatura como expressão de autores isolados. Estes constituem apenas funções
do sistema universal. O sujeito individual não é fonte ou finalidade do
significado, uma vez que a literatura não consistia numa forma singular de
discurso, nem experiência divina, nem privada, mas produto de sistemas comuns
de significação. O “leitor ideal” ou “superleitor” deveria possuir os códigos
para ler o texto adequadamente, ou seja, o leitor em função do texto.
O formalismo desenvolve alguns
conceitos, como o de “desvio” para caracterizar a literariedade, objeto de
estudo da teoria da literatura. Seria a propriedade essencial para definir uma
obra como literária. O “desvio” consiste num uso com finalidade artística,
diferente das formas corriqueiras da língua,
para provocar a desautomatização/desfamiliarização da linguagem. Embora
essas questões gerem discussões a respeito da conotação e dos múltiplos
sentidos, o papel primordial do leitor ainda não é relevante.
Ao longo do século XX,
gradativamente alguns autores passam a reavaliar a importância do leitor para a
interpretação da obra em maior ou menor grau. O polonês Roman Ingarden, na
década de 1930, por exemplo, partia de uma visão mais limitada, já que o leitor
apenas completava as indeterminações de uma obra literária. O crítico inglês,
William Empson, contemporâneo à Nova Crítica, indicava pontos em que a
linguagem vai além de si mesma, sugerindo significações inesgotáveis e uma
participação ativa do leitor. Wolfgang Iser considerava que uma obra é mais
eficiente quando exige do leitor uma nova consciência crítica de seus códigos e
expectativas habituais, reconhecendo o poder da literatura de romper e
transfigurar valores.
Romantismo x Realismo
Enquanto o Romantismo era criticado
por exaltar o sentimento, a emoção e iludir o leitor, levando-o a um mundo de
sonhos, o Realismo, segundo o escritor português, Eça de Queiroz, condenaria o
que houvesse de mal na sociedade.
Os escritores realistas consideravam
que a arte deveria ser dotada de uma finalidade moralizante. A função do
escritor era condenar os vícios, mostrar o certo e o errado, para limpar a
sociedade e a consciência dos indivíduos. Curiosamente, tanto o Romantismo
quanto o Realismo apresentavam como princípios fundamentais a aliança entre o
belo, o justo e o verdadeiro, contudo, por vias diferentes. Enquanto o artista
realista acreditava na possibilidade de alcançar a verdade absoluta por meio da
ciência, o romântico, como um iluminado por Deus, se guiava pela religião.
Para apontar todas as mazelas
sociais, o romance realista se caracterizava por descrições minuciosas, de
maneira a constituir um espelho da sociedade para não falsear a realidade. Apesar de criticar
os valores burgueses, os romances realistas acabavam por validá-los, já que o
pensamento da época não contemplava outra saída. Como refém social, o homem,
por heroísmo, renunciava à própria vida, ou seguia a sociedade burguesa e
renunciava à singularidade.
Ao punir a adúltera Luisa com a
morte
Embora seja contemporâneo do Romantismo e do Realismo,
Machado de Assis não deve ser classificado como membro integrante de nenhum
desses dois movimentos literários, uma vez que em suas obras são encontradas
críticas a ambos os estilos de época. Afinal, como citado anteriormente, ele
antecipou traços da estética modernista, sendo considerado por muitos autores
como “inclassificável”.
...cavalgando
um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas que o
Romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com ele nas ruas do nosso
século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à
margem, onde o Realismo o veio achar comido de lazeira e vermes, e, por
compaixão, o transportou para os seus livros. (ASSIS, 1978, p. 38)
Segundo Barthes (1980), a literatura
é ao mesmo tempo realista, pois tem o real como objeto de desejo, e irrealista,
porque deseja o impossível, uma vez que o real não é representável e sempre
escapa ao discurso.
A literatura realista preserva uma
“atitude natural”. O signo realista ou representacional é doentio, pois pretende
apagar a sua própria condição de signo para alimentar a ilusão de que estamos
percebendo a realidade sem a sua intervenção. Dessa maneira, nega o caráter
produtivo da linguagem e elimina o fato de que só temos um mundo, porque temos
a linguagem para significá-lo.
Por isso, em sua obra, Barthes trava
uma verdadeira caça aos estereótipos naturalizados já arraigados na linguagem
com o intuito de compreender como a sociedade produz estereótipos que ela mesma
consome como sentidos inatos, na configuração da língua trabalhada pelo poder.
História e
literatura
Enquanto Machado de Assis aponta para o relativismo, o
século XIX vive o primado do positivismo e do cientificismo. Contudo,
contrariamente ao sonho positivista, não é possível o acesso aos fatos históricos.
O passado só nos é acessível em forma de arquivos, documentos, discursos,
escrituras, ou seja, textos. E estes são inseparáveis dos textos que constituem
o nosso presente.
Hoje em dia a história é cada vez mais lida como se
fosse literatura, como se o contexto fosse necessariamente texto. A história
dos historiadores não é mais unificada, mas se compõe de uma multiplicidade de
histórias parciais, de cronologias heterogêneas e de relatos contraditórios.
Ela não tem mais aquele sentido único que as filosofias totalizantes lhe
atribuíam desde Hegel.
A história é uma construção, um relato, que como tal, põe em cena tanto o
presente quanto o passado. A objetividade ou transcendência da história é uma
miragem, pois o historiador está engajado nos discursos por meio dos quais
constrói o objeto histórico. A verdade é que há somente textos, os contextos
são apenas construções narrativas.
Os séculos XIX e
XX divinizaram a história, isto é, a cultura enquanto transformação da natureza
pelo trabalho. As ideologias burguesas ou marxistas viram o homem como o seu
sujeito e a perspectiva histórica se tornou o horizonte para a compreensão do
humano. Com o fim das metanarrativas religiosas e políticas, pós-queda do Muro
de Berlim, o mundo deixou de ser narrável coerentemente segundo uma lógica ou
projeto. Uma história linear caiu em descrédito, cedendo espaço ao ceticismo e
ao relativismo.
A semelhança entre os procedimentos narrativos da
literatura e história mostra que, em forma de discurso, as ações humanas tornam-se
interpretações sempre sujeitas a novas interpretações. É isso o que Machado de
Assis indica no fragmento abaixo de Memórias
Póstumas de Brás Cubas.
...cumpre
advertir que a natureza é uma grande caprichosa e a história uma eterna
loureira. Por exemplo, Suetônio deu-nos um Cláudio, que era um simplório – ou
“uma abóbora”, como lhe chamou Sêneca, e um Tito, que mereceu ser as delícias
de Roma. Veio modernamente um professor e achou meio de demonstrar que dos dois
césares, o delicioso, o verdadeiro delicioso, foi o “abóbora” do Sêneca. E tu,
madama Lucrécia, flor dos Bórgias, se um poeta te pintou como a Messalina
católica, apareceu um Gregorovius incrédulo que te apagou muito essa qualidade,
e, se não vieste a lírio, também não ficaste pântano. Eu deixo-me estar entre o
poeta e o sábio.
Viva
pois a história, a volúvel história que dá para tudo... (ASSIS, 1978, p. 18)
De acordo com Benjamin (1987), a historiografia
progressista baseava-se no progresso da humanidade em si, como um todo
homogêneo, inevitável e cientificamente previsível. A historiografia burguesa
contemporânea ou historicismo acreditava numa imagem eterna do passado, na
possibilidade de conhecê-lo como realmente foi, já que a verdade não nos
escapa. Ambas se opõem ao materialismo histórico, que trabalha com o método de
salvar o passado no presente. Assim, eles se transformam, pois tanto o passado
se torna uma experiência única, ao ser relido a partir de um novo ângulo,
quanto o presente se configura como a realização possível de uma promessa anterior.
O fundamental é essa busca constante por analogias entre o passado e o
presente, entre história e literatura, entre obra, autor e leitor.
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___. “A morte do
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___. O prazer do texto. Tradução Jacob Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 5ªed., 1999.
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São Paulo: Duas Cidades, 1995.
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SANTIAGO, Silviano. Nas
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