Odirlei Costa dos Santos – Doutorando
“Diário
II”, escrito entre 1952 e 1962, compõe a segunda parte de Diário completo
(1970) e possui em suas modulações uma característica distinta do primeiro
volume da narrativa diária de Lúcio Cardoso: a configuração de uma escritura
íntima com matizes memorialistas. O escritor maduro vislumbra o retorno das
imagens do menino que foi, durante os anos de sua primeira infância,
A Memória, tratado como categoria da História é, em
certo sentido, uma metáfora. Metáfora magnífica, por abrigar carga altíssima de
possibilidade de sentidos, bem como de perspectivas críticas, e por – em sua
natureza antropológica – abraçar grande variedade de estratos e de estádios
(...) Magnífica ainda por, em sua concreta abstração arqueológica, deslocar-se,
tornando-nos felizes por exercemos, ainda que precariamente, nossa capacidade
de identificar, distinguir, aproximar, reconciliar ou conflitar desejos,
valores e forças até então nela – na Memória – arquivados e num certo instante
entregues à desumana selvageria do não-saber, do não-lembrar. Colocamo-nos,
quando no território da Memória, à caça do esquecido, do soterrado. Tornamo-nos
arqueólogos do tempo, obsedantes pelas idéias de permanência, de exposição e de
domínio (SANTOS, 1999:16).
No
papel de “arqueólogo do tempo”, Lúcio busca o entendimento de si e completa o
projeto de introspecção ontológica através do (re)aparecimento de despojos da
memória. A abstração do tempo conduz o autor a recolher fragmentos de outrora
para uni-los à percepção recente da existência. Esta junção passado-presente
contribui para fomentar o mecanismo de apreensão do conhecimento do homem em
sua totalidade. Compreende, também, a aparição de novas projeções do
auto-retrato:
(Pesquisas, buscas arqueológicas, cidades
desenterradas da areia – por que é que isto tanto me fascina? Se somos a exata
imagem do mundo, por que não supor em nosso íntimo, no grau de nossa
inteligência e nossa sensibilidade, uma superposição de datas, de memórias idas
e esvaídas, de seres que já fomos, e de que só temos consciência pelos restos
que vêm à tona, ou que surgem trazidos pelas escavadeiras de nossa
curiosidade?) (DC, 222)
Lúcio
percebe o moto perpétuo que determina o fluxo temporal e a destruição das
coisas vividas. No entanto, prefere promulgar a invenção das riquezas do tempo
a compor seu bric-à-brac pessoal
soterrado pelo esquecimento:
Rememoro coisas que tenho perdido. Meu Deus, haveria
outro que igual a mim houvesse largado tanta coisa ao longo do mundo?
Assusto-me: vejo objetos, livros, quadros, pessoas, desfilando numa implacável
marcha de destruição. Onde foram? Não sei. Mas deverei culpar-me, encher-me de
tardios, de inúteis remorsos? Não. Porque a vida é um perpétuo fluxo. Se muitas
coisas se vão, muitas outras vêm vindo ao longo do tempo. Não quero nomes
debaixo de um bric-à-brac, sufocando
sob as riquezas. O melhor destas é inventá-las: isto eu o faço a todos os
momentos, graças a Deus. (DC, 181)
As
reminiscências da infância, no entanto, tornam-se uma oportunidade de buscar a
verdade do eu, de encontrar modos de empreender o discernimento de si,
incorporando novos matizes ao auto-retrato afeito a dispersões de identidade. O
diário enseja uma forma de registrar signos (ruas, casas, cores, livros) que o
assaltam e o conduzem ao livre rememorar, cujo maior diapasão remete à infância
– a infância belo-horizontina, a bem dizer –, e constrói uma imagem que, sob o
olhar do menino, renasce no adulto:
Uma flor de maracujá, exótica, misteriosa e com uma
vaga reminiscência de animal – uma aranha talvez. E as pétalas em torno, de um
vermelho cor de ferida. Ah! Esse doce e enjoativo perfume... Fecho os olhos um
pouco, a flor colada às narinas. E lembro-me – tanto, tão vivamente! – do tempo
em que eu era menino e vinha do grupo escolar, descendo uma rua de Belo
Horizonte. Havia um rio que hoje está canalizado e, muitas vezes escorregava eu
pela sua ribanceira, a fim de sondar lá embaixo os seus mistérios. Em certo
trecho a água era acumulada e profunda. Junto, uma pedra, e um pouco acima, uma
árvore por onde subiam tumultuosamente as folhas de um maracujazeiro. Era aí
que meus olhos se detinham, nas belas e trágicas flores que embebiam o ar de
perfume – desse mesmo perfume que agora aspiro e me faz voltar de repente, com
dolorosa intensidade, ao tom dessa água, ao silêncio do lugar, ao meu coração
de criança que batia de medo, de êxtase, de amor. (DC, 180)
Muitas
das lembranças descritas são cenas da infância que exsurgem do oceano da
memória sob o prisma visionário dos sonhos. Como para este território não há
espaços vetados às fulgurações do imaginário, a descrição dos mundos de
infância não se limita a registros referenciais por ser constantemente
atravessada pelos cruzamentos de sonhos e devaneios. Segundo as palavras do
próprio autor, “sonhos são elementos anárquicos que incompletos para se
constituírem ações ou até mesmo sentimentos ou sensações, vagam no fundo do ser
à procura de uma unidade”, a qual “muitas vezes se faz arbitrária ou errada, a
fim de se exteriorizar e impor sua existência ao homem” (DC, 268). Em outro fragmento, acrescenta: “Jamais me canso de
indagar a origem dos sonhos, pelo menos desses sonhos desgarrados e
fulgurantes, que surgem com toda a força de fatos já vividos, e à sua mistura
de pessoas e de situações insere esse clima profético que tanto nos abala assim
que despertamos” (DC, 280). Os modos
de pensar as fronteiras entre memória e imaginário nascem a partir do momento
em que o bric-à-brac encoberto pela
memória reaparece em um universo de sonhos, com o inevitável retorno do
sentimento Unheimlich, como podemos
inferir das palavras do escritor:
Sonhei esta noite, de um modo lancinante, com a casa
de Belo Horizonte onde decorreu parte de minha infância. A mim mesmo, e sem
saber por que, eu apresentava as razões de minha permanência, a constância e a
força que aquela atitude me transmitia, enquanto Maria de Lourdes, uma velha
criada, cortava-me galhos de uva numa velha parreira de que eu muito gostava.
De repente houve a mutação, e a permanência na casa tornou-se impossível.
Comecei a soluçar, e soluçava de tal modo em meu sonho, era tanta a minha dor
por ter perdido a casa, e a parreira de minha infância, que o pranto
extravasava o sonho, e eu sabia que
realmente chorava. Acordei, lamentando ainda a paisagem que já era minha. Ah,
feliz foi Proust, que pôde a vida inteira viver, e ainda morrer no mesmo
quarto. (DC, 219)
Em
seu estudo sobre a prosa memorialística de Murilo Mendes, Fernando Fábio
Fiorese Furtado, refere-se ao “jogo de múltiplas tensões” que compõe a escrita
íntima:
Murilo acolhe a superioridade da poesia em relação à
historiografia no desvelamento da verdade. À instauração de um jogo de
múltiplas tensões – poesia/prosa, fragmentação do discurso/fluxo narrativo,
escrita do eu/escrita do outro, estilo particular como valor
auto-referencial/registro documental da elocução alheia, memória/imaginário,
visão prospectiva do passado/embaralhamento do tempo – corresponde o
questionamento das fronteiras entre os domínios da fiction e da diction,
conforme a oposição proposta por Gérard Genette para distinguir, de um lado, os
textos que, pela explicitação do caráter imaginário dos acontecimentos narrados
e pela dissociação do autor e do narrador, ensejam um pacto de leitura
romanesca, e de outro, aqueles em que o discurso do sujeito e o próprio
estatuto literário estão submetidos às balizas da verdade histórica,
referencial e factual (FURTADO, 2003: 129).
Os
limites entre memória e imaginário são cada vez mais rechaçados pela aparição
de cenas da infância incorporada ao mundo tumultuado dos sonhos: “Sonho: minha
casa de Belo Horizonte (...) Essa obsessão da casa de Belo Horizonte
significará apenas uma fixação na infância? Não creio” (DC, 221). O escritor passa a vasculhar espaços submersos pela
voragem do tempo: “Há dentro de mim uma memória, um fragmento soterrado de
alguém que devo ter sido, mas de que me esqueci há muito” (DC, 222). Os pensamentos obsedantes em torno das imagens de Belo
Horizonte que voltam à tona intensificam-se: “À medida que o tempo passa, a
imagem flui com uma força e uma clareza de obsessão. É um ponto de ruptura, um
marco abandonado que teima em repetir sua mensagem – e que à força de insistir,
eu sei, acabará por ser entendida” (DC,
229). Ainda em outro fragmento: “Sonhei ainda uma outra vez com a casa de Belo
Horizonte. Os quartos, a atmosfera. Começo a me espantar – que Deus me livre
dessa obsessão, se ela tem um sentido clínico – que vale, Deus meu, sendo uma
verdade” (DC, 230). O retorno
constante do mundo da infância conduz o autor a repensar em novas prospecções
do auto-retrato e a refletir sobre o desdobramento de sua identidade, a partir
do habitat da criança belo-horizontina a completar o universo do sujeito
em sua maioridade:
Abrindo os olhos faço uma descoberta que me parece
espantosa: sou um possesso. No sentido literal, imbuído de uma outra
personalidade que não a sua. Ou melhor, com duas personalidades coexistindo.
Uma, a que se prende à minha infância
Ainda
em “Diário II”, Lúcio Cardoso realiza a passagem da infância mineira à casa da
Tijuca, já no Rio de Janeiro. Tal período o remete às revistas recortadas, aos
desenhos, às telas improvisadas e às demais brincadeiras de menino, que fizeram
do porão da residência familiar no Rio “uma cidade inteira de cinemas” (DC, 11). Dos porões da casa da Tijuca
aos desvãos da memória afetiva, o escritor vislumbra possibilidades de
reinterpretar (e reinventar) as riquezas do passado:
Explico: ontem, terminando o texto para um documento
cinematográfico para Belo Horizonte, ao mesmo tempo que me sentia velho de cem
anos ante aquelas coisas que tão nitidamente marcaram o meu passado, fui ter a
uma casa da Tijuca, exatamente nos
arredores de uma das primeiras onde morei quando cheguei ao Rio. Dona Blandina,
a dona da casa, era um estranho ser que havia se detido no tempo – quando? –
exatamente há trinta anos atrás. Exatamente no instante em que eu morei
naqueles arredores. Lá estavam a pequena vitrola de mão, os discos de Caruso, a
mobília de 25 – e os retratos, sobretudo os retratos que evocavam uma gente
antiga, tão liberta de determinados sentimentos, tão pura ainda na simplicidade
de sua vida, e tão autêntica que chegou a me dar um nó na garganta... (DC, 249)
Não
obstante, a angústia de rever os arredores da casa no bairro carioca o conduz à
certeza do processo de destruição promulgado pelo tempo, quando “recordar é
também verificar e perder uma segunda vez o que não voltará mais” (BARTHES,
1984; 303), como nos diz Roland Barthes em O
rumor da língua. O sentimento de perda, destruição e completa ruína o
assalta pela visão da casa corroída pelo tempo: “Mas a casa, porém, a casa onde
eu morava e que vira há um mês atrás, não existia mais, era um montão de
ruínas, pronto a ceder lugar a um novo arranha-céu”, completando que “através
do tabique olhei, aflito, a desordem que ia lá dentro e surpreendi de pé,
ainda, um resto do porão onde outrora tantas vezes me escondera com meus sonhos
e meus brinquedos impossíveis” (DC,
249). No entanto, a fatalidade do tempo não impede (ou mesmo acentua) a
reintegração do menino ao coração do homem: “Atravessamos de um salto esta
distância toda através do calor do sol, do cheiro de asfalto, que de novo
sentimos, reinstalando sem dificuldade no homem que somos, o menino que um dia
sentiu também tudo isto, numa rua da Tijuca” (DC, 269).
Tal
qual o amigo Murilo Mendes, Lúcio Cardoso teve sua primeira formação na casa
dominada pelo regaço materno. O menino Lúcio viveu infância similar à casa
muriliana, como podemos perceber depreender do estudo já citado de Fernando Fiorese.
O filho caçula aprendeu a costurar, brincar e fabular com as irmãs, sob o olhar
das tias, das avós e, principalmente, da mãe. Furtado aponta a influência sui generis da casa dominada pelas
mulheres para a formação de Murilo Mendes, cuja perspectiva aproxima-se daquela
observada na criação do menino Lúcio: “São essas casas fêmeas que se oferecem
ao menino-adolescente como espaço aberto (embora protegido) à educação dos
sentidos, à prática dos afetos, aos jogos de Eros, à elaboração da personagem,
à descoberta das formas da natureza e dos mecanismos do artifício” (FURTADO,
2003: 100). As palavras de Lúcio permitem confirmar tal analogia:
O relógio, o relógio da casa de minha avó. Basta que
soe sua pequena melodia, marcando os quartos de hora, para que imediatamente eu
me precipite a quilômetros de distância – a minha distância. Era assim,
antigamente, uma casa de gente tão pobre, e a minha espera de que chegasse o
último fascículo de Sherlock Holmes... Havia sol, havia sempre sol. Um cheiro
de quintal andava pelo ar, e era salsa misturada a funcho e manjericão. O
porão, mandado refazer por minha avó, só era transitável até certo ponto. E nas
duas primeiras salas, abertas para a rua, minha tia costurava. Lá eu aprendi a
lidar com tecidos, miçangas e bordados, foi a minha primeira e mais autêntica
escola. (DC, 286)
No
início dos anos 60, após a primeira edição de Crônica da casa assassinada, a vida emocional de Lúcio Cardoso não
acompanhou o ápice do reconhecimento que obteve como escritor. Abandonado à
bebida e às anfetaminas, o escritor se vê diante da derrocada iminente: “Olho
minha silhueta na sombra, gordo, disforme, um homem de idade – mas o que ferve
dentro de mim, essa curiosidade, esse frêmito de viver. Acalmo-me à força, à
custa de remédios, arrastando o dia como uma data que não me pertencesse” (DC, 297). Não obstante, o escritor
procurava esboçar sentidos de renovação e prosseguia com o exercício de
escrita, trabalhando em seu inacabado O
viajante: “Propósitos! Oh, minha mocidade, não foi de propósitos idênticos
que a enchi, de propósitos frustrados e esquecidos? Mas assim recomeço: sou de
novo moço de mim mesmo e de minhas ambições” (DC, 303). Nos últimos meses de 1962, antes do primeiro derrame que
o tornou fisicamente limitado, seria a imagem do menino que acompanharia Lúcio
e lhe traria bons e raros augúrios em meio ao período de desânimo e abandono de
sua fase final:
É um sábado, escrevo, sozinho
Face
à expectativa dos livros que almejava escrever, Lúcio prosseguia com seu
interesse obsedante pela humanidade, intrigado por suas vozes obscuras, por
suas projeções ocultas, pelas luzes e sombras que direcionaram ao percurso da
existência a (im)possibilidade de perscrutação dos signos que o assaltaram em
sua jornada e que permaneceram indecifráveis. Observemos a perturbação que a
existência ainda lhe despertava, no último fragmento escrito por Lúcio Cardoso
em seu diário, em outubro de 1962, pouco antes do derrame que interromperia a
trajetória de sua escrita:
Aquela mesma angústia fria, aquela dor sem doer que
se espalha pelo corpo inteiro. Arrumo, desarrumo, faço e refaço. Ah, como é
difícil ser calmo. Encho-me de remédios, vou à janela: é a noite, a noite dos
homens, a minha noite. Ruídos de carros que passam na escuridão. Rádios
abertos. Vultos que transitam em apartamentos acesos. E eu, e eu? Onde vou, que
faço? Ouço a voz de Cornélio Pena – naquele tempo – “o seu sofrimento é um
sofrimento bom, de permanecer à margem.” Não há, Cornélio, pior sofrimento do
que permanecer à margem. Não tenho temperamento para isto. Quero amar, viajar,
esquecer – quero terrivelmente a vida, porque não creio que exista nada de mais
belo e nem de mais terrível do que a vida. E aqui estou: tudo o que amo não me
ouve mais, e eu passo com a minha lenda, forte sem o ser, príncipe, mas
esfarrapado. (DC, 304)
Seria pelas transposições pictóricas, através de quadros que desvelariam
uma violência cromática e uma deformação figurativa, que daria prosseguimento à
estética expressionista de seus livros. Enquanto o homem Lúcio Cardoso morre em
24 de setembro de 1968, o personagem Lúcio Cardoso, com seu montante de
enigmas, segredos e incógnitas, permanece vivo pelas páginas de Diário completo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARTHES,
Roland. O rumor da língua. Tradução: António Gonçalves. Lisboa:
Edições 70, 1984.
CARDOSO,
Lúcio. Diário completo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.
FURTADO,
Fernando Fábio Fiorese. Murilo na cidade: os horizontes portáteis do
mito. Blumenau: Edifurb, 2003.
SANTOS,
Roberto Corrêa dos. Modos de saber,
modos de adoecer: o corpo, a arte, o estilo, a história, a vida, o
exterior. Belo Horizonte, UFMG, 1999.