Lúcio Cardoso - A flor e a ruína: a infância de um possesso

                    Odirlei Costa dos Santos – Doutorando em Teoria Literária da UFRJ

         

       “Diário II”, escrito entre 1952 e 1962, compõe a segunda parte de Diário completo (1970) e possui em suas modulações uma característica distinta do primeiro volume da narrativa diária de Lúcio Cardoso: a configuração de uma escritura íntima com matizes memorialistas. O escritor maduro vislumbra o retorno das imagens do menino que foi, durante os anos de sua primeira infância, em Belo Horizonte. Entre 40 e 50 anos de idade, Lúcio vê-se diante do crescente rememorar face a paisagens, cenários e personagens do passado. Este voltar-se às circunvoluções da memória afetiva possui implicações com suas indagações ontológicas. O homem, ao envelhecer e confirmar seu itinerário em direção à morte, perscruta no menino ou nas imagens da infância a possível compreensão de si. O autor procura aparar os meandros da memória num investigar quase “arqueológico”, como salienta Roberto Corrêa dos Santos em Modos de saber, modos de adoecer:

A Memória, tratado como categoria da História é, em certo sentido, uma metáfora. Metáfora magnífica, por abrigar carga altíssima de possibilidade de sentidos, bem como de perspectivas críticas, e por – em sua natureza antropológica – abraçar grande variedade de estratos e de estádios (...) Magnífica ainda por, em sua concreta abstração arqueológica, deslocar-se, tornando-nos felizes por exercemos, ainda que precariamente, nossa capacidade de identificar, distinguir, aproximar, reconciliar ou conflitar desejos, valores e forças até então nela – na Memória – arquivados e num certo instante entregues à desumana selvageria do não-saber, do não-lembrar. Colocamo-nos, quando no território da Memória, à caça do esquecido, do soterrado. Tornamo-nos arqueólogos do tempo, obsedantes pelas idéias de permanência, de exposição e de domínio (SANTOS, 1999:16).

 

            No papel de “arqueólogo do tempo”, Lúcio busca o entendimento de si e completa o projeto de introspecção ontológica através do (re)aparecimento de despojos da memória. A abstração do tempo conduz o autor a recolher fragmentos de outrora para uni-los à percepção recente da existência. Esta junção passado-presente contribui para fomentar o mecanismo de apreensão do conhecimento do homem em sua totalidade. Compreende, também, a aparição de novas projeções do auto-retrato:

(Pesquisas, buscas arqueológicas, cidades desenterradas da areia – por que é que isto tanto me fascina? Se somos a exata imagem do mundo, por que não supor em nosso íntimo, no grau de nossa inteligência e nossa sensibilidade, uma superposição de datas, de memórias idas e esvaídas, de seres que já fomos, e de que só temos consciência pelos restos que vêm à tona, ou que surgem trazidos pelas escavadeiras de nossa curiosidade?) (DC, 222)

     

      Lúcio percebe o moto perpétuo que determina o fluxo temporal e a destruição das coisas vividas. No entanto, prefere promulgar a invenção das riquezas do tempo a compor seu bric-à-brac pessoal soterrado pelo esquecimento:

Rememoro coisas que tenho perdido. Meu Deus, haveria outro que igual a mim houvesse largado tanta coisa ao longo do mundo? Assusto-me: vejo objetos, livros, quadros, pessoas, desfilando numa implacável marcha de destruição. Onde foram? Não sei. Mas deverei culpar-me, encher-me de tardios, de inúteis remorsos? Não. Porque a vida é um perpétuo fluxo. Se muitas coisas se vão, muitas outras vêm vindo ao longo do tempo. Não quero nomes debaixo de um bric-à-brac, sufocando sob as riquezas. O melhor destas é inventá-las: isto eu o faço a todos os momentos, graças a Deus. (DC, 181)

 

           As reminiscências da infância, no entanto, tornam-se uma oportunidade de buscar a verdade do eu, de encontrar modos de empreender o discernimento de si, incorporando novos matizes ao auto-retrato afeito a dispersões de identidade. O diário enseja uma forma de registrar signos (ruas, casas, cores, livros) que o assaltam e o conduzem ao livre rememorar, cujo maior diapasão remete à infância – a infância belo-horizontina, a bem dizer –, e constrói uma imagem que, sob o olhar do menino, renasce no adulto:

Uma flor de maracujá, exótica, misteriosa e com uma vaga reminiscência de animal – uma aranha talvez. E as pétalas em torno, de um vermelho cor de ferida. Ah! Esse doce e enjoativo perfume... Fecho os olhos um pouco, a flor colada às narinas. E lembro-me – tanto, tão vivamente! – do tempo em que eu era menino e vinha do grupo escolar, descendo uma rua de Belo Horizonte. Havia um rio que hoje está canalizado e, muitas vezes escorregava eu pela sua ribanceira, a fim de sondar lá embaixo os seus mistérios. Em certo trecho a água era acumulada e profunda. Junto, uma pedra, e um pouco acima, uma árvore por onde subiam tumultuosamente as folhas de um maracujazeiro. Era aí que meus olhos se detinham, nas belas e trágicas flores que embebiam o ar de perfume – desse mesmo perfume que agora aspiro e me faz voltar de repente, com dolorosa intensidade, ao tom dessa água, ao silêncio do lugar, ao meu coração de criança que batia de medo, de êxtase, de amor. (DC, 180)

     

         Muitas das lembranças descritas são cenas da infância que exsurgem do oceano da memória sob o prisma visionário dos sonhos. Como para este território não há espaços vetados às fulgurações do imaginário, a descrição dos mundos de infância não se limita a registros referenciais por ser constantemente atravessada pelos cruzamentos de sonhos e devaneios. Segundo as palavras do próprio autor, “sonhos são elementos anárquicos que incompletos para se constituírem ações ou até mesmo sentimentos ou sensações, vagam no fundo do ser à procura de uma unidade”, a qual “muitas vezes se faz arbitrária ou errada, a fim de se exteriorizar e impor sua existência ao homem” (DC, 268). Em outro fragmento, acrescenta: “Jamais me canso de indagar a origem dos sonhos, pelo menos desses sonhos desgarrados e fulgurantes, que surgem com toda a força de fatos já vividos, e à sua mistura de pessoas e de situações insere esse clima profético que tanto nos abala assim que despertamos” (DC, 280). Os modos de pensar as fronteiras entre memória e imaginário nascem a partir do momento em que o bric-à-brac encoberto pela memória reaparece em um universo de sonhos, com o inevitável retorno do sentimento Unheimlich, como podemos inferir das palavras do escritor:

Sonhei esta noite, de um modo lancinante, com a casa de Belo Horizonte onde decorreu parte de minha infância. A mim mesmo, e sem saber por que, eu apresentava as razões de minha permanência, a constância e a força que aquela atitude me transmitia, enquanto Maria de Lourdes, uma velha criada, cortava-me galhos de uva numa velha parreira de que eu muito gostava. De repente houve a mutação, e a permanência na casa tornou-se impossível. Comecei a soluçar, e soluçava de tal modo em meu sonho, era tanta a minha dor por ter perdido a casa, e a parreira de minha infância, que o pranto extravasava o sonho, e eu sabia que realmente chorava. Acordei, lamentando ainda a paisagem que já era minha. Ah, feliz foi Proust, que pôde a vida inteira viver, e ainda morrer no mesmo quarto. (DC, 219)

 

          Em seu estudo sobre a prosa memorialística de Murilo Mendes, Fernando Fábio Fiorese Furtado, refere-se ao “jogo de múltiplas tensões” que compõe a escrita íntima:

Murilo acolhe a superioridade da poesia em relação à historiografia no desvelamento da verdade. À instauração de um jogo de múltiplas tensões – poesia/prosa, fragmentação do discurso/fluxo narrativo, escrita do eu/escrita do outro, estilo particular como valor auto-referencial/registro documental da elocução alheia, memória/imaginário, visão prospectiva do passado/embaralhamento do tempo – corresponde o questionamento das fronteiras entre os domínios da fiction e da diction, conforme a oposição proposta por Gérard Genette para distinguir, de um lado, os textos que, pela explicitação do caráter imaginário dos acontecimentos narrados e pela dissociação do autor e do narrador, ensejam um pacto de leitura romanesca, e de outro, aqueles em que o discurso do sujeito e o próprio estatuto literário estão submetidos às balizas da verdade histórica, referencial e factual (FURTADO, 2003: 129).

         

          Os limites entre memória e imaginário são cada vez mais rechaçados pela aparição de cenas da infância incorporada ao mundo tumultuado dos sonhos: “Sonho: minha casa de Belo Horizonte (...) Essa obsessão da casa de Belo Horizonte significará apenas uma fixação na infância? Não creio” (DC, 221). O escritor passa a vasculhar espaços submersos pela voragem do tempo: “Há dentro de mim uma memória, um fragmento soterrado de alguém que devo ter sido, mas de que me esqueci há muito” (DC, 222). Os pensamentos obsedantes em torno das imagens de Belo Horizonte que voltam à tona intensificam-se: “À medida que o tempo passa, a imagem flui com uma força e uma clareza de obsessão. É um ponto de ruptura, um marco abandonado que teima em repetir sua mensagem – e que à força de insistir, eu sei, acabará por ser entendida” (DC, 229). Ainda em outro fragmento: “Sonhei ainda uma outra vez com a casa de Belo Horizonte. Os quartos, a atmosfera. Começo a me espantar – que Deus me livre dessa obsessão, se ela tem um sentido clínico – que vale, Deus meu, sendo uma verdade” (DC, 230). O retorno constante do mundo da infância conduz o autor a repensar em novas prospecções do auto-retrato e a refletir sobre o desdobramento de sua identidade, a partir do habitat da criança belo-horizontina a completar o universo do sujeito em sua maioridade:

Abrindo os olhos faço uma descoberta que me parece espantosa: sou um possesso. No sentido literal, imbuído de uma outra personalidade que não a sua. Ou melhor, com duas personalidades coexistindo. Uma, a que se prende à minha infância em Belo Horizonte, e cuja melancolia de se saber escrava, produz todo o escuro painel da minha natureza. A outra, a que domina, e elabora na vida todos os meus atos e meus gestos. Está é a usurpadora, a que existe sem direito. (DC, 228)

 

         Ainda em “Diário II”, Lúcio Cardoso realiza a passagem da infância mineira à casa da Tijuca, já no Rio de Janeiro. Tal período o remete às revistas recortadas, aos desenhos, às telas improvisadas e às demais brincadeiras de menino, que fizeram do porão da residência familiar no Rio “uma cidade inteira de cinemas” (DC, 11). Dos porões da casa da Tijuca aos desvãos da memória afetiva, o escritor vislumbra possibilidades de reinterpretar (e reinventar) as riquezas do passado:

Explico: ontem, terminando o texto para um documento cinematográfico para Belo Horizonte, ao mesmo tempo que me sentia velho de cem anos ante aquelas coisas que tão nitidamente marcaram o meu passado, fui ter a uma casa da Tijuca,  exatamente nos arredores de uma das primeiras onde morei quando cheguei ao Rio. Dona Blandina, a dona da casa, era um estranho ser que havia se detido no tempo – quando? – exatamente há trinta anos atrás. Exatamente no instante em que eu morei naqueles arredores. Lá estavam a pequena vitrola de mão, os discos de Caruso, a mobília de 25 – e os retratos, sobretudo os retratos que evocavam uma gente antiga, tão liberta de determinados sentimentos, tão pura ainda na simplicidade de sua vida, e tão autêntica que chegou a me dar um nó na garganta... (DC, 249)

 

         Não obstante, a angústia de rever os arredores da casa no bairro carioca o conduz à certeza do processo de destruição promulgado pelo tempo, quando “recordar é também verificar e perder uma segunda vez o que não voltará mais” (BARTHES, 1984; 303), como nos diz Roland Barthes em O rumor da língua. O sentimento de perda, destruição e completa ruína o assalta pela visão da casa corroída pelo tempo: “Mas a casa, porém, a casa onde eu morava e que vira há um mês atrás, não existia mais, era um montão de ruínas, pronto a ceder lugar a um novo arranha-céu”, completando que “através do tabique olhei, aflito, a desordem que ia lá dentro e surpreendi de pé, ainda, um resto do porão onde outrora tantas vezes me escondera com meus sonhos e meus brinquedos impossíveis” (DC, 249). No entanto, a fatalidade do tempo não impede (ou mesmo acentua) a reintegração do menino ao coração do homem: “Atravessamos de um salto esta distância toda através do calor do sol, do cheiro de asfalto, que de novo sentimos, reinstalando sem dificuldade no homem que somos, o menino que um dia sentiu também tudo isto, numa rua da Tijuca” (DC, 269).

         Tal qual o amigo Murilo Mendes, Lúcio Cardoso teve sua primeira formação na casa dominada pelo regaço materno. O menino Lúcio viveu infância similar à casa muriliana, como podemos perceber depreender do estudo já citado de Fernando Fiorese. O filho caçula aprendeu a costurar, brincar e fabular com as irmãs, sob o olhar das tias, das avós e, principalmente, da mãe. Furtado aponta a influência sui generis da casa dominada pelas mulheres para a formação de Murilo Mendes, cuja perspectiva aproxima-se daquela observada na criação do menino Lúcio: “São essas casas fêmeas que se oferecem ao menino-adolescente como espaço aberto (embora protegido) à educação dos sentidos, à prática dos afetos, aos jogos de Eros, à elaboração da personagem, à descoberta das formas da natureza e dos mecanismos do artifício” (FURTADO, 2003: 100). As palavras de Lúcio permitem confirmar tal analogia:

O relógio, o relógio da casa de minha avó. Basta que soe sua pequena melodia, marcando os quartos de hora, para que imediatamente eu me precipite a quilômetros de distância – a minha distância. Era assim, antigamente, uma casa de gente tão pobre, e a minha espera de que chegasse o último fascículo de Sherlock Holmes... Havia sol, havia sempre sol. Um cheiro de quintal andava pelo ar, e era salsa misturada a funcho e manjericão. O porão, mandado refazer por minha avó, só era transitável até certo ponto. E nas duas primeiras salas, abertas para a rua, minha tia costurava. Lá eu aprendi a lidar com tecidos, miçangas e bordados, foi a minha primeira e mais autêntica escola. (DC, 286)

 

         No início dos anos 60, após a primeira edição de Crônica da casa assassinada, a vida emocional de Lúcio Cardoso não acompanhou o ápice do reconhecimento que obteve como escritor. Abandonado à bebida e às anfetaminas, o escritor se vê diante da derrocada iminente: “Olho minha silhueta na sombra, gordo, disforme, um homem de idade – mas o que ferve dentro de mim, essa curiosidade, esse frêmito de viver. Acalmo-me à força, à custa de remédios, arrastando o dia como uma data que não me pertencesse” (DC, 297). Não obstante, o escritor procurava esboçar sentidos de renovação e prosseguia com o exercício de escrita, trabalhando em seu inacabado O viajante: “Propósitos! Oh, minha mocidade, não foi de propósitos idênticos que a enchi, de propósitos frustrados e esquecidos? Mas assim recomeço: sou de novo moço de mim mesmo e de minhas ambições” (DC, 303). Nos últimos meses de 1962, antes do primeiro derrame que o tornou fisicamente limitado, seria a imagem do menino que acompanharia Lúcio e lhe traria bons e raros augúrios em meio ao período de desânimo e abandono de sua fase final:

É um sábado, escrevo, sozinho em casa. Há uma grande paz no meu coração, assim como se de repente se tivessem aquietado as marés externas que me agitam – e assim eu pudesse ver o quanto de claro e simples é aquilo que em mim é o mais profundo. O mais profundo é este que aqui escreve, descalço, com o coração limpo de paixões, tão próximo do menino que fui e ao mesmo tempo tão distante dele, neste dom luminoso e coerente, que faz os extremos se unirem e traça da curva da vida, desigual em certos pontos, amargo e hostil em outros, este arco suspenso, onde as idades se confundem e o eu, recomposto, se torna harmonioso e completo. (DC, 302)

 

           Face à expectativa dos livros que almejava escrever, Lúcio prosseguia com seu interesse obsedante pela humanidade, intrigado por suas vozes obscuras, por suas projeções ocultas, pelas luzes e sombras que direcionaram ao percurso da existência a (im)possibilidade de perscrutação dos signos que o assaltaram em sua jornada e que permaneceram indecifráveis. Observemos a perturbação que a existência ainda lhe despertava, no último fragmento escrito por Lúcio Cardoso em seu diário, em outubro de 1962, pouco antes do derrame que interromperia a trajetória de sua escrita:

Aquela mesma angústia fria, aquela dor sem doer que se espalha pelo corpo inteiro. Arrumo, desarrumo, faço e refaço. Ah, como é difícil ser calmo. Encho-me de remédios, vou à janela: é a noite, a noite dos homens, a minha noite. Ruídos de carros que passam na escuridão. Rádios abertos. Vultos que transitam em apartamentos acesos. E eu, e eu? Onde vou, que faço? Ouço a voz de Cornélio Pena – naquele tempo – “o seu sofrimento é um sofrimento bom, de permanecer à margem.” Não há, Cornélio, pior sofrimento do que permanecer à margem. Não tenho temperamento para isto. Quero amar, viajar, esquecer – quero terrivelmente a vida, porque não creio que exista nada de mais belo e nem de mais terrível do que a vida. E aqui estou: tudo o que amo não me ouve mais, e eu passo com a minha lenda, forte sem o ser, príncipe, mas esfarrapado. (DC, 304)

 

           Seria pelas transposições pictóricas, através de quadros que desvelariam uma violência cromática e uma deformação figurativa, que daria prosseguimento à estética expressionista de seus livros. Enquanto o homem Lúcio Cardoso morre em 24 de setembro de 1968, o personagem Lúcio Cardoso, com seu montante de enigmas, segredos e incógnitas, permanece vivo pelas páginas de Diário completo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução: António Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1984.

 

CARDOSO, Lúcio.  Diário completo.  Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.

 

FURTADO, Fernando Fábio Fiorese. Murilo na cidade: os horizontes portáteis do mito. Blumenau: Edifurb, 2003.

 

SANTOS, Roberto Corrêa dos. Modos de saber, modos de adoecer: o corpo, a arte, o estilo, a história, a vida, o exterior. Belo Horizonte, UFMG, 1999.