PROUST E A POÉTICA
DA MEMÓRIA
Maria Lucia
Guimarães de Faria
Marcel Proust foi o
escritor que mais visceralmente se apropriou da temática do tempo, fazendo da
memória o instrumento privilegiado de sua criação literária, assumindo
existencialmente a busca do tempo perdido, transformada em suprema vocação
artística. O presente trabalho pretende revelar a maneira pela qual o poetar
pensante da memória alcança – e somente ele – transmutar o tempo perdido em
tempo redescoberto.
É no que o escritor denomina “memória
involuntária” que repousa toda a força e toda a singularidade do seu grandioso
romance Em busca do tempo perdido.
Oferecendo à consciência fragmentos preciosos de um passado de outra forma
irremediavelmente perdido, em contraste com os fragmentos inertes e sem vida
reconstituídos pela memória voluntária, a memória involuntária é a verdadeira
alavanca da redescoberta do tempo. O exame meticuloso do célebre episódio da “madeleine” (No caminho
de Swann, 45-47) é o melhor roteiro para surpreender e acompanhar a
atividade íntima da mais proustiana de todas as operações poéticas:
Primeiro momento: o acaso faz o Narrador reencontrar o
objeto material no qual se esconde uma sensação idêntica à experimentada
outrora: “Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas
do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de
extraordinário em mim”. A atitude do Narrador é de alerta em todos os seus
sentidos.
Segundo momento: irrupção de uma
alegria intensa e poderosa, nunca antes experimentada: “Invadiu-me um prazer
delicioso, isolado, sem noção de sua causa”. O Narrador sente em si mesmo uma
“preciosa essência”, que não é outra senão o seu eu profundo: “Cessava de me
sentir medíocre, contingente, mortal”. Até aqui, a experiência é estritamente
involuntária.
Terceiro momento: Desejo de
compreender, de interpretar, de conhecer o porquê daquele instante tão
singular: “De onde me teria vindo aquela poderosa
alegria?” Após infrutíferas tentativas de repetir a experiência, intervém a
atividade do espírito: “Deponho a taça e volto-me para o meu espírito. É a ele
que compete achar a verdade”. Entretanto, não se trata de procurar, mas de
criar; o explorador (o espírito) se converte no próprio “país obscuro” a ser
explorado: “Está em face de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele
pode dar realidade e fazer entrar na sua luz”. Esta etapa é claramente
voluntária.
Quarto momento: “Peço a meu
espírito um esforço mais, que me traga de volta a sensação fugitiva”. O
esforço, todavia, é vão, e o Narrador se coloca voluntariamente na atitude de distração, de relaxamento da atenção,
que precedera o primeiro momento. Ele permite ao espírito repousar e refazer-se
antes de empreender “uma tentativa suprema”.
Quinto momento: Nova tentativa de
um profundo esforço de reconhecimento: “... sinto estremecer em mim qualquer
coisa que se desloca, que desejaria elevar-se,
qualquer coisa que teriam desancorado, a uma grande profundeza; não sei o que
seja, mas aquilo sobe lentamente; sinto a resistência e ouço o rumor das
distâncias atravessadas”. Somente neste instante, o Narrador se apercebe de que
“o que assim palpita no fundo de mim, deve ser a imagem, a recordação visível
que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até chegar a mim”. É esta etapa de
atenção ativa e de esforço voluntário e consciente de memória que precede
imediatamente a localização da lembrança.
Sexto momento: Reconhecimento da
sensação idêntica da “petite madeleine” saboreada no
quarto da tia Leôncia: “E de súbito a lembrança me apareceu”. A partir do
quarto, ressurreição da casa, do jardim, da rua, de toda Combray e da infância
em sua integralidade: “Mas quando mais nada subsistisse de um passado remoto,
após a morte das criaturas e a destruição das coisas – sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais
fiéis – o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas,
lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando
sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação”.
Sentimento de felicidade intensa.
Sétimo momento: Desejo de conhecer
a fundo a causa daquele êxtase extraordinário. Entretanto, a explicação será
adiada para muito mais tarde: “... embora ainda não soubesse, e tivesse de
deixar para muito mais tarde tal averiguação, por que motivo aquela lembrança
me tornava tão feliz”.
O episódio da “madeleine”
prova que o esquecimento é o verdadeiro guardião da memória. A visão do pequeno bolo não trouxe ao
Narrador nenhuma recordação especial, talvez porque ele o houvesse visto, sem
prová-lo, tantas vezes depois de Combray, que a sua imagem havia deixado os longínquos dias de sua infância para se
ligar a outras mais recentes. O sabor, por sua vez, guardado incólume nas
brumas do esquecimento, e protegido pela espessura de tantos anos passados,
aconchegou-se no fundo mais recôndito da memória, no estranho limiar da
lembrança e do olvido, onde a reminiscência é simultaneamente segredo e degredo,
e de lá pôde ressurgir com aquele inefável misto de novidade e antigüidade que
é a marca inequívoca da origem. Foi por nunca
mais ter comido a “madeleine” desde a infância que
o sabor pôde arrastar atrás de si o “edifício imenso da recordação”. Se a reminiscência
não é preservada pelo denso manto do esquecimento, ela é barateada pela
repetição sucessiva que a priva de sua aura poética e de seu poder
encantatório. Paradoxalmente, a atualização reiterada, a recordação repetida, é
que irremediavelmente fazem escoar a lembrança pelo ralo do esquecimento, que
conduz ao limbo de onde não há resgate possível. Há no esquecimento uma fugidia
fronteira, um horizonte móvel, que assinala o limite entre o que para sempre se
conserva como germes de sonho, embriões de imagens, matrizes de idéias, e o que
irrecuperavelmente se engolfa na ausência absoluta, e este movediço umbral é a pátria da memória involuntária. Um gesto desastrado, uma violação, um abuso, e a reminiscência se
esvai:
Se ainda possuísse o François le Champi por mamãe tirado uma noite do embrulho de livros
que minha avó acabara de me dar como presente de aniversário, nunca o olharia;
temeria inserir nele, pouco a pouco, minhas impressões de hoje, recobrindo
inteiramente as antigas, temeria vê-lo tornar-se de tal maneira atual que,
quando lhe pedisse para invocar de novo a criança que lhe soletrara o título no
quarto de Combray, esta, não lhe reconhecendo a voz, não respondesse mais ao
apelo e permanecesse para sempre sepultada no esquecimento (O Tempo
redescoberto, p.165-6).
No início da Recherche, o episódio da “madeleine trouxe
ao Narrador uma alegria profunda e intensa, que permaneceu, contudo, “sem noção
da sua causa”, pois a busca de uma explicação foi adiada para muito mais tarde,
e a compreensão do fenômeno manteve-se na penumbra. No último livro do ciclo
romanesco, O Tempo redescoberto, por três vezes consecutivas o extraordinário
evento se repete:
Mas no momento em que, procurando equilibrar-me, firmei o pé numa pedra
um pouco mais baixa do que a vizinha, todo o meu desânimo se desvaneceu (...) Como quando provei a “madeleine”, dissiparam-se
quaisquer inquietações com o futuro, quaisquer dúvidas intelectuais. (...) Um
azul intenso ofuscava-me os olhos, impressões de frescura, de luz deslumbrante
rodopiavam junto de mim (...) E logo a seguir, bem a
reconheci, surgiu-me Veneza (...) e me era agora devolvida pela sensação
outrora experimentada sobre dois azulejos desiguais do batistério de São
Marcos, juntamente com todas as outras
sensações àquela somadas no mesmo dia ... (p. 148/9).
Ora, naquele momento um segundo aviso
veio reforçar o que me havia dado a pavimentação irregular (...)
Com feito, um copeiro (...) acabava de bater com uma colher num prato.
Invadiu-me um bem-estar do mesmo gênero do causado pelas pedras irregulares; às
sensações também ainda frescas, mas muito diversas, misturava-se agora um
cheiro de fumaça, abrandado pelos eflúvios de uma paisagem silvestre; e (...)
reconheci o mesmo renque de árvores (...) em frente ao qual (...) acreditei por
um instante, numa espécie de vertigem, ainda estar, tanto o ruído idêntico da
colher esbarrando no prato me dera (...) a ilusão do martelo de um empregado
que consertara alguma coisa numa roda do trem quando paramos na orla da pequena
mata (p. 150).
Dir-se-ia até que os sinais (...)
timbravam em multiplicar-se pois (...) enxuguei a boca
no guardanapo (...) mas logo (...) nova visão cerúlea me passou ante os olhos;
(...) a impressão foi tão intensa que tomei pelo atual o momento imaginário, e,
(...) tonto (...) julguei que o criado tinha aberto uma janela sobre a praia e
que tudo me convidava a um passeio no cais, com a maré alta; o guardanapo onde
limpara a boca, engomado exatamente como a toalha com a qual tivera tanta
dificuldade em enxugar-me defronte da janela no dia de minha chegada a Balbec
(p. 150).
Desta
vez, o Narrador não se resigna a ignorar o motivo daquele júbilo incomum nem se
detém em aspectos superficiais, mas compreende claramente que as sensações das
pedras desiguais, da rigidez engomada do guardanapo, do sabor da “madeleine” não tinham qualquer relação com as impressões que
buscara voluntariamente evocar de Veneza, de Balbec, de Combray, com a ajuda da
memória consciente e uniforme. Ausentando-se da premência do presente,
concentrando-se existencialmente nas semelhanças daquelas experiências e
descendo os escuros corredores de si mesmo, ele adivinha a causa daquela
felicidade: aquelas sensações eram simultaneamente
experimentadas no momento atual e num momento longínquo, fazendo o passado
imiscuir-se de tal maneira no presente que, na vertigem do instante, era-lhe
impossível saber em qual dos dois se encontrava:
Na verdade, o ser que em mim
então gozava dessa impressão e lhe desfrutava o conteúdo extratemporal,
repartido entre o dia antigo e o atual, era um ser que só surgia quando, por
uma dessas identificações entre o passado e o presente, se conseguia situar no
único meio onde poderia viver, gozar a essência das
coisas, isto é, fora do tempo (p. 152).
Muitos são os “tempos” que habitam o
romance proustiano. Para que se compreendam esses fenômenos temporais em toda a
sua profundidade e se possa edificar em sua plenitude a poética da memória,
necessário se faz interrogar o que significa, na passagem acima, “fora do
tempo”. De que tempo se trata aqui? Pouco adiante, tem-se uma primeira
indicação: “Tal ser nunca me aparecera, nunca se manifestara senão fora da ação, da satisfação imediata, cada vez que o milagre de uma
analogia me permitia escapar ao presente”
(p. 152). As expressões que grifamos dão a exata medida da correspondência: fora
do tempo equivale a fora da ação (Le Temps retrouvé, p. 871); o tempo,
fora do qual se situa o Narrador, é o presente
imediato. O Narrador alcança o milagre de viver ao mesmo tempo o outrora e o agora, o lá e o aqui, porque abdica da
ação, desliga os fios que o conectam com a urgência do momento seguinte,
esquece o premente e presentifica o ausente. O presente, descomprometido com a
ação, é um amplo cenário para as múltiplas dramatizações do tempo, pois,
detendo-se um instante, e aprofundando-se – ao invés de debruçar-se
imediatamente sobre o futuro, de atirar-se compulsivamente para
a frente, de continuar-se sôfrega e ininterruptamente – ele dá ensejo às
intersecções, superposições, interpolações, que encenam as incessantes
metamorfoses do eu nas diversas máscaras do tempo. Puro, isento,
contido em si mesmo, o presente apresenta-se e revela a sua face mais
misteriosa: ele é o vertiginoso abismo do que não é – não é passado, não é futuro, não é presente,
tampouco, já que, frágil e tênue, deixa tão instantaneamente de ser – e, por
isso mesmo, pode tão profundamente vir a ser. Poeticamente vivido, o presente é
o nada que a memória pode infinitamente preencher e que a imaginação pode
diversamente povoar. O que ao Narrador se afigurara como “um verdadeiro momento
do passado”, na verdade, é muito mais do que isso, “alguma coisa que, comum ao
passado e ao presente, é mais essencial do que ambos” (p. 153). E que coisa é
essa? Logo a seguir, no
júbilo de transcender a lei absurda, segundo a qual só se pode imaginar o
ausente, ele se apropria da intuição precisa:
E eis que
repentinamente se neutralizava, se sustinha o efeito
dessa dura lei, pelo expediente maravilhoso da natureza, fazendo cintilar a
mesma sensação – ruído da colher e do martelo, irregularidade semelhante do
calçamento – tanto no passado, o que permitia à imaginação gozá-la, como no
presente, onde o abalo efetivo dos sentidos, pelo som, pelo contato,
acrescentara aos sonhos da fantasia aquilo de que são habitualmente
desprovidos, a idéia da existência, e graças a esse subterfúgio, me fora dado
obter, isolar, imobilizar – na fração de tempo que dura um relâmpago – o que nunca
antes apreendera: um pouco de tempo em estado puro. (p. 153)
Como
se explica a aparente contradição de estar o Narrador fora do tempo e simultaneamente apreender
o tempo em estado puro? Percebe-se que o tempo de que agora se fala é e não
é mais o mesmo. O tempo desfila pelo romance as suas mais contraditórias
fisionomias. Ele é, primeiramente, o destruidor implacável, que reduz ao
esquecimento e conduz à morte. Mas este mesmo tempo, que saqueia, outorga de
volta o que roubara com semblante transfigurado, de tal maneira que a
consciência aguda da perda é a posse definitiva. O tempo, contudo, de par com
seu lugar-tenente, a memória, é capaz de manobras ainda mais estranhas, ao
trazer de volta incidentes insignificantes, ocorridos em épocas muito remotas e
esquecidos nos baús empoeirados do passado, não como lembranças, mas como fatos
reais, que tornam a acontecer, num novo momento do tempo. Animicamente
disponibilizado para o operar poético da memória, o
Narrador experimenta, pouco depois da três epifanias consecutivas, um quarto
advento, ainda mais explícito, talvez, que os anteriores:
Enquanto refletia sobre isso, o barulho estridente de um encanamento de
água, (...) semelhante aos longos apelos que (...) os iates de passeio faziam
ressoar à noite ao largo de Balbec, comunicou-me (...) uma sensação mais do que
simplesmente análoga à que experimentava ao cair da tarde em Balbec (...). Não
era (...) tão-somente um eco, uma ressonância da sensação passada (...), mas
essa sensação ela mesma. Neste caso, como em todos os precedentes, a sensação
comum buscara recriar em torno de si o lugar antigo, enquanto o atual que o
substituía opunha-se com toda a resistência de sua matéria a essa imigração,
para uma casa de Paris, de uma praia normanda (...). A marítima sala de jantar
de Balbec (...) tentara abalar a solidez do palacete Guermantes, forçara-lhe as
portas e fizera um instante vacilarem os sofás a minha volta... (p. 154-5)
Não
se trata de um passado e de um
presente, mas de uma mesma presença
que faz coincidirem, em uma simultaneidade sensível, momentos incompatíveis,
separados por todo o curso da duração. O presente é passado e o passado é
presente, pois ambos advêm de um brotar contemporâneo da memória e da
imaginação, solidário e tributário da gestação histórica do próprio ser que
recorda e imagina e do acontecer poético do próprio Tempo que se temporaliza. O
tempo é, portanto, anulado e engendrado pelo próprio Tempo. Compreende-se que o
estar fora do tempo é a condição de possibilidade para se apreender o Tempo em
estado puro.
Em Proust, a operação mais originária
da memória consiste em barrar o curso dos acontecimentos e pôr o próprio Tempo
a escrever. O Tempo é o verdadeiro Narrador da Recherche, pois nele se imbricam a memória que pensa,
a imaginação que recorda, a alma que se prospecta e o ser que se auto-engendra.
Fundamentalmente, a memória não é rememorativa, mas comemorativa, pois ela
reúne, numa unidade ambígua e movediça, que necessita incessantemente perfazer-se, todas as forças vitais, todo o vigor anímico,
todos os pendores do espírito, todas as reservas sensíveis, numa celebração
entusiástica na qual o que foi, em sua facticidade, e o que poderia ter sido,
em sua vasta gama de possibilidade, tornam-se o anverso e o reverso de um mesmo
impulso criador que faz nascer o verdadeiro Tempo: o tempo do aconte-ser histórico do homem: “Um minuto livre
da ordem do tempo recriou em nós, para o podermos sentir, o homem livre da
ordem do tempo” (p. 154). O homem deve mesmo libertar-se “de l’ordre du temps”, pois a ordem do tempo, a cronologia, é também o
tempo da ordem, tempo da mesura, da memória voluntária, da inteligência clara e
da consciência do dever, tempo cujo correr linear e horizontal escraviza,
depaupera e esvazia. O tempo da ordem conduz inexoravelmente à morte, pois esta
é a ordem do tempo. A morte como fim da linha não é mais do que fenecimento
bruto, morte geral, sem fisionomia, e desta deve o homem também libertar-se, a
fim de poder morrer a sua própria morte, a que o engrandece e o singulariza
como portador de um destino único e inimitável. O ser que se deixa encarcerar nesse
tempo “deperece na observação do presente, (...) na investigação de um passado
ressecado pela inteligência, na expectativa de um futuro que a vontade constrói
com fragmentos do presente e do passado, dos quais extrai ainda mais a
realidade, só conservando o necessário aos fins utilitários, estreitamente
humanos, que lhes fixa” (p. 153). Foi nesse tempo “demasiadamente humano” que o
Narrador, ainda jovem, sentiu-se subitamente aprisionado, quando recebeu do pai
a permissão para seguir a carreira que lhe aprouvesse, sob a alegação de que
era pouco provável que ele viesse a mudar de inclinação. Ele, que acreditava a
cada dia encontrar-se no fresco limiar de sua existência intacta, que se sentia
sempre em vésperas de si mesmo, com toda a ampla liberdade do vir-a-ser,
viu-se, de repente, com um estremecimento, encurralado dentro da duração: sua existência começara e, o que era mais
triste, o que se seguiria haveria de diferir pouco daquilo que precedera; ele
não se situava mais fora do tempo,
mas estava sujeito às suas leis e ao seu determinismo compulsório (À l’ombre des jeunes filles en fleurs,
p. 481-2). A errância pela vida afora parece seguidamente confirmar a inexorabilidade
do tempo que se esvai, arrastando atrás de si as alegrias, as ilusões, as
melhores lembranças, os entes queridos. Os esforços da memória consciente para
resgatar o passado, as viagens aos sítios idos e vividos em busca do tempo
perdido não fazem mais do que deixar na boca o sabor amargo do fracasso e na
alma a incurável nostalgia do que já foi. As ocasionais irrupções da memória
involuntária são cintilações epifânicas na profunda noite do que se perdeu, instantes
extraordinários, os únicos “fecundos e verdadeiros”, que, no entanto, não
oferecem a totalidade do seu dom até a grande revelação na biblioteca dos
Guermantes, quando a sucessão, num
curtíssimo espaço de tempo, das três experiências semelhantes, logo seguidas
por uma quarta, trouxe ao Narrador a apropriação plena do vigor poético da
memória e a chave para a conversão do
tempo perdido em tempo redescoberto. Entretanto, a mais fabulosa descoberta que
se lhe configurou na alma foi a de que a foz da temporalidade, de onde jorrava
a possibilidade suprema da criação artística e da realização existencial, era
dos subterrâneos de si mesmo que emanava:
(...) eu sabia não ter
descoberto a beleza de Balbec quando lá estivera, nem ter encontrado, lá
regressando, a formosura guardada na memória. Já verificara demasiadamente a
impossibilidade de atingir na realidade aquilo que estava no fundo de mim mesmo
(p. 157).
O
encontro com a verdade profunda, que se revela sob a forma da redescoberta do
tempo, se processa numa autêntica arqueologia do sensível que se consuma na
descida ao núcleo cordial da interioridade anímica:
Impressões como as que procurava fixar só se poderiam evanescer ao
contato do gozo direto, que fora impotente para suscitá-las. O único modo de
apreciá-las melhor seria tentar conhecê-las mais completamente lá onde se
achavam, isto é, em mim mesmo, torná-las claras em suas profundezas (p. 157).
O
âmago do ensinamento poético da memória é que o ser é tempo e o tempo é ser.
Por isso, experimentar o tempo em estado puro significa engendrar o próprio ser
que se temporaliza. Inversamente, originar-se a si mesmo na gestação poética de
uma obra equivale a sentir concretamente o tempo jorrar das próprias entranhas,
manifestando-se sob a forma de imagens antiqüíssimas e inéditas, as mesmas e
outras, que se materializam no vazio deveniente do espaço imaginário.
Ontologicamente, a memória não re-corda o acontecido, mas faz acontecer o que é
trazido ao coração (= re-cordado). Ela não refaz o passado, ela faz o tempo; ela não recompõe o que foi, ela compõe o
que é e sempre será; ela não restaura um todo perdido, mas instaura, não propriamente um novo cosmos, mas a possibilidade
permanente de haver khosmoi. A
memória é doadora de ser. Pedindo licença poética à língua, poder-se-ia
enunciar: a memória acontece o tempo. Neste acontecer, o fluxo temporal
liberta-se de sua compulsoriedade, o presente se desobriga de estar aqui e
agora, o passado esquece que já passou, o futuro é sem ter sido, e o tempo, com
folga para vagar, põe-se a criar. “E eu era feliz?”, pergunta o poeta. E
responde: “Fui-o outrora agora”. Rimando existencialmente com esta disposição
anímica, poder-se-ia dizer também: “Sou-o agora outrora”. No falar da memória,
presente, passado, futuro são apenas nomes, vocativos da alma, que convocam as
forças subterrâneas do homem e provocam a verdadeira vocação do Tempo:
ser.