A IMAGEM GROTESCA
DA MORTE EM NO FUNDO
DAS ÁGUAS DE
OSWALDO FRANÇA JÚNIOR
Maria José Ladeira
Garcia
- E no entanto
hás de ser igual
a esse monturo,
Igual
a esse infeccioso
horror! 1
É
em torno
da morte que
a concepção da história-destino se
ordena. A morte é a verdade
última da vida
em cujo
extremo “o homem
sucumbe à sua condição
de criatura”2 . Como ser descontínuo, o homem
tem a nostalgia da continuidade perdida
e sofre por não
existir nesse mundo
“como onda
perdida na multiplicidade das ondas”
3 A sua
tristeza vem de sua
privação à transcendência
e por saber que a vida terrena é ilusória
num constante apelo
aos sentidos que
“são diabólicos”
(D. B. , p. 24).
Mas nos últimos
anos, “a idéia
da morte vem perdendo, na consciência
coletiva, sua
onipresença e sua
força de evocação” 4 . A sociedade
da modernidade parece ter o objetivo
de “ permitir aos homens
evitarem o espetáculo da morte” ( N. , p. 207) cuja
violência derruba o edifício
da vida; como
conseqüência, “a teologia
cristã assimila à morte a ruína
moral consecutiva
ao pecado da carne”
(E. , p. 95).
“
A idéia da eternidade
sempre teve na morte
sua fonte mais rica” (N
. p. 207), porém essa
idéia está se atrofiando o que
leva a concluir
que
“ o rosto da morte deve ter assumido
outro
______________
1 BAUDELAIRE, Charles ( s.d. ) p. 65.
2 BENJAMIN, Walter (1984)
p. 38. Todas as citações desta obra serão feitas por esta
edição, no próprio
texto entre
parêntesis, indicando-se abreviado D.B. , em
itálico e seguido da página em algarismos arábicos.
3 BATAILLE, Georges (1980)
p. 16. Todas as citações desta obra serão feitas por esta
edição, no próprio
texto entre
parêntesis, indicando-se abreviado E. , em
itálico e seguido da página em algarismos arábicos.
4 BENJAMIN, Walter (1994)
p. 207. Todas as citações deste capítulo serão feitas por esta
edição, no próprio
texto entre
parênteses, indicando-se abreviado N.
, em itálico
e seguido da página em
algarismos arábicos.
aspecto” (N., p.
207).
Sempre vista como mistério, superstição
e fascinação pelo
homem, a morte
evoca-lhe piedade e terror,
por ser “ a passagem do estado
vivo ao cadáver”
(E. p. 39), isto é, ao objeto angustiante que
é o cadáver de outro
homem.
Na
Idade Média, morrer era “ um episódio público na vida
do indivíduo” ( N. p. 207) e hoje a morte é cada vez mais expulsa do universo
dos vivos; na verdade,
com o desenvolvimento
do consumo, a morte
começa a ser interdita. Atualmente,
os burgueses vivem em locais depurados de qualquer
morte e, quando
ela chega,
o indivíduo é colocado por seus herdeiros em sanatório e hospitais,
porque a sociedade
marginaliza os indivíduos que deixam de ser funcionais em relação a seu projeto.
O
cadáver é para
cada um
daqueles que fascina, “ a imagem do seu destino” (E.
p. 39), o testemunho de uma violência que
destruirá todos os homens;
por isso,
a interdição que
existe no homem diante
do cadáver é a distância
para a qual
se rejeita a violência.
Separado
da morte, o homem
sucumbe à sua fascinação:
de um lado,
há o horror ligado à atmosfera da vida
que o mantém à distância;
de outro, há um
elemento solene
e terrível que,
simultaneamente, fascina o homem e
deixa-o perturbado.
A
morte causa ao ser vivo espanto por chegar de surpresa até mesmo quando o indivíduo
está em estado
de saúde delicado.
É responsável também
pela desordem
na ordenação do trabalho que exige um comportamento em
que o cálculo
do esforço ligado à eficácia
produtiva é constante;
por isso,
exige um comportamento
racional em
que os movimentos
tumultuosos, que
existem nas festas e no jogo, não são admitidos.
Para
Benjamin, na perspectiva da
história-natureza, o mundo é um campo de ruínas porque o
único
destino certo
do homem é a morte,
e a caveira é “ de todas as figuras
a mais sujeita
à natureza” (D. B., p. 39). Sua imagem
conota, simultaneamente, o espírito humano petrificado e “a natureza
em decadência,
transformação do cadáver em esqueleto que será pó” ( D.
O. , p. 202). A maioria dos homens temem a morte porque sabem que
é cruel e fria,
representando um mistério
que alija o homem
de qualquer compreensão
humana. É o princípio
estruturador da alegoria
barroca e “a prova mais extrema da
impotência e do desamparo
da criatura” ( D. B. , p. 28). O horror da morte não está ligado ao aniquilamento
do ser, mas “
à decomposição do cadáver,
onde se vê
uma força terrível
e agressiva (E., p. 42).
A
transitoriedade histórica, a ruína, é o emblema
da natureza em
decadência, isto
é, o fragmento do morto,
o que lhe
restou da vida porque,
“sujeita ao destino,
a vida humana
é efêmera” ( D. B. , p. 35).
A
aura sagrada
do homem que
colore a vida é destituída pelo tempo, ao permitir chegar até a caveira
dos objetos, desvelando, então, a sua ruína. E a poesia
de Baudelaire mostra bem
o lado material
e mortal do mundo,
desnudando a ruína da vida, como exemplo, o poema
‘Carniça’.
A
narrativa No fundo
das águas de Oswaldo França Júnior capta a dimensão
da realidade ao fazer o escritor um texto literário
que se torna
o espaço em
que se vive uma experiência
de vida e, através
de sua textura,
o homem se torna
vítima de seu
destino.
E
é nesses percursos marcados pela presença da morte que se busca o que está para além da matéria,
entregando-se ao movimento de
transmutação que vai sendo tecido no espaço
em que
a morte se revela.
Estêvão,
personagem do romance,
ao defender os valores
da família, aparece como
o mártir que
leva às últimas conseqüências
a virtude, a justiça,
encarnando a lei da criatura
e, por isso,
“sua sujeição à morte”
( D. B., p. 30). O personagem é
conduzido à morte pelo destino, e a faca torna-se o veículo do destino, confirmando,
assim, “a sujeição da vítima às leis naturais da criatura”
(idem, ibidem,
p. 33) em: Edésio “puxou uma faca e cortou a barriga de Estêvão”5 que
ficou “com a barriga
aberta, tentando segurar
os intestinos com
as mãos” ( F. A., p. 28) e “morreu na colina, ao pé da árvore”(idem, ibidem,
p. 28). Sua morte
é de um realismo
grotesco que
faz nascer um
sentimento de terror
e repugnância. Percebe-se a ameaça da força bruta contra a liberdade
humana. Estêvão é um
herói solidário,
consciente de sua
missão em
praticar a justiça
e, por isso,
se torna vítima
sacrificial cuja morte
é um destino individual, um sacrifício e uma expiação.
A alegoria
da perda remete à alegoria
da morte que
é tão presente
em Baudelaire que
o frontispício da segunda
edição de Les fleurs du mal
realça a imagem
da morte onde
“o mito da árvore
do paraíso, como
origem do bem
e do mal ”6 surge através
da imagem de uma árvore-
___________
5 FRANÇA JÚNIOR,
Oswaldo (1981) p. 28. Todas as citações
desta obra serão feitas por esta
edição, no próprio
texto entre
parêntesis, indicando-se abreviado F.A.., em
itálico e seguido da página em algarismos arábicos.
6 SILVA, Edson Rosa
da (2004) p. 102. Todas as citações deste artigo
serão feitas
por esta edição,
no próprio texto
entre parênteses,
indicando-se abreviado I.C.C., em
itálico e seguido da página em algarismos arábicos.
esqueleto, revelando, portanto,
que tudo
o que o homem
comer o
levará à morte porque
é o seu único
fruto. Logo,
a criação do homem
e a sua relação
com a morte já ocorrem desde
o mito da origem, numa espécie de enunciação do destino da carne,
confirmada nas duas imagens horizontais abaixo:
a morte da mulher
e a do homem.
Na
verdade, o pecado
original dá ao homem
a consciência de que
está nu bem como a da morte e a de si mesmo.
O
salto para o eterno é “o ponto de convergência de onde toda uma vida
contempla a morte e onde
a morte se revela como
o prenúncio de uma nova
vida”7 e é no acesso
ao outro lado
das coisas que
se encontra o eterno.
O
homem identifica no sofrimento alheio o próprio sofrer e aprende a conhecer-se“nessa troca
de experiências” ( J.S.V., p. 23), passando a compreender a
universalidade da dor, como ocorreu com
Bernardo cujo tio
morreu de câncer. Sr. Hilton “ficou apenas dois meses de cama e neste período a doença acabou com ele” (F. A . , p. 105), deixando-o “muito magro, somente pele e ossos” (idem, ibidem, p. 105). Bernardo sentiu o pesadelo de sua
agonia, pois
o tio tornou-se um
cadáver vivo;
pintado com
as cores da morte,
não consegue mais
“dissimular a decomposição
mortal” 8 que o
corrói insidiosamente. Cheira a defunto, parodiando a vida.
Durante o período da doença Bernardo preocupava-se com
ele e não
percebia Edite e as filhas tão preocupadas assim
[ .... ] . Ele era
testemunha de como
o tio havia se esforçado pela família e
vendo-o deitado, magérrimo,
o rosto coberto
por um
véu e com
um crucifixo
debaixo das mãos,
comentava sozinho:
- É um
absurdo. Um
homem bom,
trabalhou a vida inteira
para elas e
recebe uma despedida destas.
Até o caixão era de qualidade
inferior. Depois
do enterro não
se conteve e falou com Edite e as
filhas:
- Se não fosse
eu que
passei a noite lá,
ele ia ficar sozinho ( F.
A . , p. 105) .
O morto se vê no invisível,
embora não
se faça o morto viver.
A presença de sua
ausência infinita
mantém viva a “plenitude”
da morte como
fez Bernardo ao apresentar “um
projeto de lei
considerando de utilidade pública a mangueira
e a parte do quintal
que ficava sob
sua copa”
(idem, ibidem,
p. 106) como homenagem
ao tio que
tanto gostava da mangueira
de seu quintal.
_________________
7 SILVA, Edson Rosa da (1984)
p. 21. Todas as citações desta obra serão feitas por esta
edição, no próprio
texto entre
parêntesis, indicando-se abreviado J.S.V., em
itálico e seguido da página em algarismos arábicos.
8 MEYER, Augusto (1986)
p. 465.
A
morte é a ruptura da individual descontinuidade
que a angústia
nos faz tocar
e se propõe como verdade
mais eminente
do que a vida.
A paixão introduz perturbação e desordem que leva ao sofrimento, pois é
a busca do impossível,
e Alceu, marido de Mirtes, carrega a paixão que o
coloca na intimidade do erotismo e da morte. O erotismo é um momento de dissolução
do ser que
iguala o momento da morte
cuja imagem
se torna uma espécie
de aura sagrada.
Se aquele que
ama não
pode possuir o ser amado, pensa em matá-lo e, em
muitos casos,
prefere matá-lo a perdê-lo, deseja também a sua própria morte. Diante da possibilidade de suicídio,
vida e morte
dissolvem suas fronteiras,
condicionando-se à coragem do gesto
como fez Alceu em
relação à sua
esposa. Por
ciúmes “percebeu que
lhe seria impossível
viver sem ela” (F. A . , p. 59). Então,
atirou-lhe três vezes
na direção do rosto
e, “empurrada pelo impacto
das balas” (idem,
ibidem, p. 59), caiu sobre os travesseiros,
“esvaindo-se em sangue.
Olhou os seus olhos
já sem
vida, deitou-se sobre
suas pernas
ainda quentes,
colocou o cano do revólver
no ouvido e matou-se” (idem, ibidem,
p. 59).
A
paixão pode, assim,
invocar a morte, o desejo de morte ou de suicídio; o que a designa “ é um
halo de morte”
(E., p. 21). Assim, Alceu,
perturbado e fascinado pela violência contra
a vida, torna-se, dessa forma,
um transgressor,
realizando crime contra
as leis da sociedade.
Zenóbio
é um doente terminal que
está no hospital, mas
“já sem
condições de ser
salvo, sem
condições de se fazer
regredir a metástase”
(F. A . , p. 166). Procura-se “por
todos os meios
minorar-lhe os sofrimentos e as dores” (idem, ibidem,
p. 166), mas está “sempre
impaciente, irritado. Xingando as enfermeiras
(idem, ibidem,
p.166) dizia ser as “culpadas pelas suas dores” (idem, ibidem,
p. 166). Dr. Jaime, o médico, trocou idéias com um colega e com o padre e, depois, conversou com
o paciente, dizendo-lhe que o que
sentia ‘ era em
conseqüência do que
havia contraído, da evolução de sua doença” (idem, ibidem,
p. 167); Zenóbio “ouviu e permaneceu calado”
(idem, ibidem,
p. 167). A angústia, causada pelo
que deixará de fazer
em virtude
de sua morte iminente pelo câncer,
deixou-o em silêncio
e “não reclamou nem
aceitou mais nenhum
medicamento” (idem,
ibidem, p. 167). Torturado pela doença, sente o seu fim e
compreende que não
adianta lutar contra
o absurdo da vida
e, após três dias, faleceu. Sua
verdade é agora
o nada: “ausência
de luz, ausência
de vida” (J.S.V. , p. 233), pois é um morto, ruína, apodrecimento. Constata-se, mais
uma vez, a impotência
do homem diante
do sofrimento e da morte; por
isso, aquele
vencido incomoda, porque lembra a miséria humana.
O
erotismo é uma violação
do ser constituído na sua
individualidade descontínua;
“é um dos aspectos
da vida interior
do homem” (E. , p. 27). A fusão dos seres
é uma decorrência natural
do ato erótico
em que
cada parceiro
entra no mundo do outro
ao se transformar em
objeto de prazer
e, como conseqüência,
perde momentaneamente sua própria consciência.
As duas consciências morrem no ato erótico e,
“despojadas de sua individualidade,
reencontram-se na continuidade” (J.S.V. p. 251), conforme
ocorria com Brigite e Adolfo, gerente do Hotel
Bandeirantes que
“durante
uma farra com amigos”
(F. A . , p. 39) na zona conheceu a jovem.
A prostituição é
prática sexual
transgressiva que reaproxima Adolfo do mundo dionisíaco, do qual se viu separado pelo estabelecimento do código
de interdições. Desrespeitando as normas do interdito,
Adolfo descobre o prazer da transgressão
quando se entrega
aos excessos da festa,
passando a se encontrar com
Brigite “quase todos
os dias” (idem,
ibidem, p. 39). Brigite tinha ‘ilusões
de que pudesse tirá-la dali” (idem, ibidem,
p. 40), mas, quando
“passou a procurá-lo no hotel [....]
inventou que era
noivo da filha
de um fazendeiro
e ia casar-se “ (idem, ibidem, p.40). A jovem
não reagiu, mas
pediu-lhe “que tivessem um último encontro daí a dois dias (idem, ibidem, p. 40).
O momento do orgasmo é o da “petite mort” em
que “através
do erotismo, se chega
à antevisão da harmonia cósmica” (J.S.V.
, p. 267) , e as convulsões da carne
são mais
precipitadas quanto mais próximo se está do esgotamento que
favorece a volúpia. Brigite está no reino do excesso
e dominada pela fascinação
do perigo, liberta-se do humano, pois, “durante o amor,
no escuro, ela
não falava” (F. A.. , p. 40).
Mexia-se muito, “gemia contraindo o corpo” (idem, ibidem, p. 40). Ao terminar,
ele acendeu a luz
e viu que “ela
estava morrendo e de sua boca descia uma espuma branca” (idem, ibidem, p. 40).Havia bebido guaraná
com formicida
e os seus movimentos
eram convulsões de dor
enquanto Adolfo sentia prazer.
A aliança entre Eros e Tânatos pode revelar
uma relação de erotismo
com a morte, pois a morte de Brigite equivale
a um momento
de realização “para
o lado sagrado
das coisas” (J.S.V . , 197),
e Adolfo se sente embaraçado diante da morte, pois está iniciando um novo aprendizado ao sentir o orgasmo da dor
de Brigite.
Morto, o ser descontínuo não desapareceu inteiramente;
deixa vestígios
que podem durar
infinitamente, como
Brigite que Adolfo não
conseguia esquecer “ debaixo
dele, morrendo, consumindo-se em dores e ele
sentindo prazer.
-
Tomou veneno por
minha causa –
dizia. – A gente fazendo amor e ela
morrendo”(F. A . , p.41).
O
erotismo é, além
do domínio da violência,
“o desequilíbrio no qual o ser a si próprio se põe em questão, conscientemente”
(E., p.29).
A
sociedade humana
não é somente
o mundo do trabalho;
compõem-na ainda “o mundo
profano e o mundo
sagrado” (idem, ibidem, p. 60). O profano
é o do interdito e o sagrado é o que
se abre “para as transgressões
limitadas (idem, ibidem,
p. 60).
O
sagrado é a continuidade do ser “revelada àqueles
que, num rito
solene, fixam a sua
atenção na morte
de um ser descontínuo” (idem,
ibidem, p. 74), como
D. Dilma, em:
Ao chegarem à fazenda
as luzes da casa
estavam acesas e da varanda ouviu pessoas chorando na sala
[ ....] D. Dilma havia morrido. Ainda se
achava sobre a poltrona
com o Sr. Varela de pé,
ao lado. A um
canto dois empregados choravam [ .... ] O Sr. Varela começou a chorar, a reconhecer que ela estava morta. E procurava ajudar
a carregar o corpo
( F. A ., p. 164)
que projeta na atmosfera
silenciosa da sala
uma aura sagrada
que é a verdadeira luz
da revelação.
A presença da morta transforma o espaço
em que
se encontra, e o velório,
ao delimitar esse
“espaço sagrado”,
faz com que
haja uma integração àquela “festa ritual”, porque a morte é um momento de ruptura da vida e reencontro do humano
com o inumano
e, desse reencontro, surge a fascinação do ser vivo pelo ser
morto, pois ‘deseja' como ser descontínuo,
dissolver-se na continuidade. E é através
da morte que tal continuidade se manifesta.
A vítima morre, e
os assistentes ligam-se a um certo elemento que a morte revela. Bataille chama
a esse elemento
de sagrado por
ser justamente
a continuidade do ser revelada àqueles
que fixam sua
atenção, durante
um rito
solene ao qual
a vítima se acha
entregue.
O horror à morte está ligado ao desaparecimento
do ser e “à podridão
que entrega
a carne morta
à fermentação geral
da vida” (E. , p. 49); por isso, o respeito, ligado à solene
representação da morte
que pertence
à civilização idealista,
desenvolveu uma radical oposição ela. O
horror mantinha a consciência
de uma identidade do aspecto
terrível da morte,
da sua fétida
corrupção e da elementar
condição da vida
humana.
Na verdade, a morte
funciona como um
reflexo espelhado do futuro, espaço em que todos “ se reduzirão à mesma
imagem grotesca
da morte, ao corpo
descarnado que
povoa os poemas de Baudelaire” (I.C.C.,
p. 103). Apesar de Baudelaire como o cristão
verem no mundo
a imagem da ruína
que condena o lado
material do homem,
há uma diferença entre
eles, porque,
para o cristão,
a realidade da morte e do
sofrimento é uma forma de o homem
se precaver contra
o pecado, na esperança
da salvação e, para Baudelaire, não
há salvação, pois a miséria
de seus personagens
realça a ruína que
acompanha o homem moderno
nos diversos
níveis de sua
vida privada
e social, em
sua decadência
física e moral
“ sem a possibilidade de resgate” (idem,
ibidem, p. 104).
Para conviver
com a idéia
de sua finitude, o homem
precisa acreditar
na complexidade de tudo que o rodeia no
universo, ampliar
sua capacidade
de entendimento sobre
o significado da natureza,
espécie e humanidade.
O homem não
pode ignorar a morte, porque, se assim
o fizer, estará condenado a viver uma existência superficial,
uma vida despreocupada com o futuro “espiritual”.
A vida é um contínuo e dinâmico processo de
mudanças que leva
à morte que
pode conduzir o homem
à renovação e regeneração. A morte precipita o ser na
continuidade, e os limites de exclusão fascinam França Júnior
devido ao fato
de apresentar na narrativa
vinte e seis mortes.
Conclui-se que a narrativa franciana revela o espaço
de uma busca onde
o erotismo alinha-se ao lado da morte como possibilidade de atingir
o mundo da continuidade, mas, embora os homens se sintam fascinados pelo
lado sagrado
da morte, o desejo
de permanecer na descontinuidade
é muito mais
forte.
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