“Os deuses pintam borboletas...”

 Memória,  exílio e risveglio em Alberto da Costa e Silva

 

Maria Aparecida Rodrigues Fontes

Doutora em Ciência da Literatura pela UFRJ,

Estágio PDEE/CAPES na Universidade de Roma “La Sapienza”.

 

 

 

Antônio,

os deuses pintam borboletas,

mas nós sabemos como

nos homens sonham

e sangram.

 (...)

Existem a solidão – mergulho e assombro –

e o sonhares contigo.

A dor existe.

..

Antônio,

ensina-me a não ter medo

de caminhar acordado,

e a receber o açoite do êxtase.

 (...)

 usciamo

a riveder le stelle (ACS, “A um filho que fez dezoito anos”, p.129-30).[1]

 

A escritura extrema é um ato de sacrifício que deriva de um excesso, de um assalto ao limite: o limite da palavra, da memória, do tempo, do espaço e do Ser. A obra não é mais o espelho da vida, mas a sua profanação. A experiência da criação artística é, então, um esforço em direção à nudez – a única verdade possível.

Nos últimos meses venho estudando a densa obra poética de Alberto da Costa e Silva. Um paulistano que, ainda menino, transferiu-se para Fortaleza e fez dessa cidade, “feita para lágrimas e para adeuses”, o seu refúgio poético e sentimental, os seus sonhos de infância. Do Ceará, mudou-se para o Rio de Janeiro e depois, como diplomata, tornou-se um homem do mundo, visitando quase toda a África: Nigéria, Angola, Zaire, Senegal, Etiópia, Serra Leoa e tantos outros países da Europa e da América. Curiosamente, quando fui convidada por Angélica Soares para participar desse Colóquio sobre memorialismo na poesia, saltou-me da memória os versos, “os deuses pintam borboletas” e “Antônio,/ ensina-me a não ter medo/ de caminhar acordado”. Interessante refletir acerca da produção literária de Alberto da Costa e Silva; de um lado, eis o diplomata e historiador que se consumiu em terras distantes, que “sofreu tantos exílios simultâneos”, caminhando por terras sem fim, e, com uma consciência aguda e ativa da realidade social, escreveu inúmeros ensaios históricos sobre a África e a escravidão, ou seja, sobre a importância de conhecer a África para compreender o Brasil. Do outro lado, encontramos o poeta Alberto de contorno símbolo-modernista que reconstitui, em seus poemas, através da figura do menino (símbolo de sua infância), o ambiente familiar, a nostálgica Fortaleza. Trata-se de uma poesia que está sempre à procura do paraíso perdido e que é reencontrado a partir dos sonhos, dos afetos e do êxtase da memória. Uma escritura poética em constante estado de vigília.

Sabemos que o passado se conserva de duas maneiras, através da memória-hábito, que faz parte de nosso adestramento cultural, e pelas lembranças isoladas, singulares, daí o caráter não mecânico das imagens mnemônicas, do sonho e da poesia. Aqui, o espaço e o tempo se separam e o que resta dessa relação é apenas a duração interior.

A experiência da memória em Alberto realiza-se a partir dessas duas dinâmicas: a da memória-hábito e a da memória-risveglio. A primeira é a do trabalho do ensaísta, historiador e africanista que estaria voltado para a memória-hábito, tal qual um lugar investido de significado total, evocativo do sentido de pertencimento dos indivíduos a uma determinada comunidade. A memória como “lugares/espaços” particulares que permitem que as lembranças se ancorem em um tempo transcorrido. Um tempo que deixa rastros e, quando percorrido novamente, através da imaginação ou através de outros instrumentos de testemunho cultural, é capaz de contribuir para a sua vitalidade e continuidade. Alberto da Costa e Silva tenta então elaborar, a partir de seus escritos sobre a África e o Brasil, uma “estrutura conectiva”, que serve para reunir os indivíduos em torno de um único projeto cultural, étnico e até nacional, constituído pela denúncia, pela consciência histórica, por regras e valores, e pela recordação do passado compartilhado entre si.

A segunda via é a do trabalho do Poeta Alberto da Costa e Silva, a partir da qual proponho uma reflexão, baseada na memória-risveglio. Uma memória (involuntária) que determina uma escrita do excesso. Trata-se de uma escritura limite, que é obra da memória e da recordação, mas também é uma obra de cheios e vazios, de memória e esquecimento, de presença e exílio, de sonho e risveglio.

 Em seu livro Poemas reunidos, publicado em 2000, a dicção poética instaura a experiência da memória-risveglio, através dos afetos e dos signos ontológicos. As imagens criadas pelo poeta são verdadeiras figuras de pensamento. Trata-se de uma viagem ao mundo das paixões e do êxtase já evidenciada por Marcel Proust, em seu clássico Em busca do tempo perdido. Essa procura é a busca de um tempo, ou melhor, de uma verdade que é desvelada pela obra de Arte, pela escritura, enquanto signo capaz de redescobrir o tempo.

A dicção lírica de Alberto possui um perturbador tom melancólico análogo ao momento do risveglio,[2] ou seja, do despertar, quando se confundem os fios das horas, a ordem dos anos e do mundo: “tudo é silêncio, pelo avesso” (ACS, “A um filho que fez dezoito anos”, p.129-30), e tudo se mistura e se rompe. É um momento em que a consciência e todo o ser são invadidos pelo saber do corpo e do espírito. Um saber animado por misteriosas figuras, às vezes uma ilusão alucinatória de rever as paisagens da infância, ou sentir a mão do pai doente sobre os ombros. Nesse caminho, somente algum tempo depois, ao despertar, é possível, a partir da recorrência aos hábitos, recompor os traços do próprio Eu e da memória.

O estado de risveglio não é apenas um espaço de tensão e antítese entre as forças do sono e da lucidez da vigília, é uma espécie de mundo do meio, um interstício que se dilata e no qual tudo é possível. O instante do risveglio é uma interrupção no curso linear do tempo. É nesse espaço que coexistem, como diz o poeta Alberto, “papoulas e um céu que era cedo./ Existem o não, e a páscoa, e a noite obesa,/ e o ócio furioso. O iluminado/ gosto de febre e de ferida existe./ Existem o eterno e a sombra/ de um céu fosco e deserto/ sobre o quando o esquecemos” (ACS, “A um filho que fez dezoito anos”, p.129-30). A memória-risveglio é uma espécie de epifania – o instante do conhecimento –, quando tudo se mostra em uma condição paradoxal, tal qual a dialética do stillstand (da suspensão), ou quando essa dialética é interrompida e as coisas e o mundo exprimem-se na tensão que os mantém em oposição e suspensos e os impedem de resolver o seu sentido mais profundo. Uma dialética que une os contrários para superá-los, mas é mantida em estado de suspensão e captura, próprio do estado do risveglio.

É através do instante do risveglio, momento de tensão máxima, que a escritura se faz extrema. Isto porque, nesse instante, o passado e o presente entrelaçam-se em nossa consciência. Esse jogo entre sono e vigília, entre passado e presente, transforma-se em um risco que abre uma fissura no sistema de nossos hábitos, no cotidiano. Nesse lugar atópico, instalam-se as figuras de pensamento[3], as metáforas – a palavra limite. Em Proust, encontramos uma imagem recorrente com a qual ele abre o romance Em busca do tempo perdido I. Trata-se da figura da soleira, do limiar, como lócus de realização do conhecimento. Mas é também uma imagem que aponta para o despertar, quando “é possível em um copo vazio/ beber as lembranças do vinho” (GC, Gelicidio, p. 480)[4], diria Giorgio Caproni, isto é,  quando é permitida a coexistência de idéias contraditórias e aparentemente irreconciliáveis.

Esse espaço atópico da escritura também é o lugar da clausura, do silêncio e da morte, porque escrever é para Alberto da Costa e Silva um ato de solidão, silêncio e excesso. Os livros, recorda Proust, são filhos da obscuridade e do silêncio. Giorgio Caproni, no poema “Condizione”, também adverte acerca da atopia, da reclusão e do excesso da escritura:

 

Un uomo solo,

chiuso nella sua stanza,

Con tutte le sue ragioni.

Tutti i suoi torti.

Solo in una stanza vuota,

a parlare. Ai morti.

(GC, “Condizione, p.303)[5]

 

A poética de Alberto da Costa e Silva nasce desse risco, nesse espaço atópico, porque não existe um tempo. Trata-se de uma escrita do instante, por isso limítrofe. Um instante extra-temporal no qual todos os tempos possíveis rugem, tremem, por isso diz o eu-lírico no poema “A um filho que fez dezoito anos”: Antônio,/ ensina-me a não ter medo/ de caminhar acordado,/ e a receber o açoite do êxtase”, (ACS, “A um filho que fez dezoito anos”, p.129-30)  ou ainda “Devolva-me o espanto/diante da iniqüidade/ e do rugir da fera” (idem)

Alberto parece estar à procura de um tempo anterior que conserve em si os múltiplos traços do sentido da existência e do passado no aqui e agora, como em “um casulo do tempo”. Para libertar-se desse casulo, o poeta sonha e, como os deuses, pinta, borboletas, símbolo da metamorfose e da transformação. Mas como homem, preso às aporias do tempo, ele sangra. Os versos “Antônio,/ os deuses pintam borboletas,” é uma advertência e uma constatação: Os deuses podem nos libertar do casulo do tempo e podem nos transformar em seres voláteis, e nos preparar para a morte e para o renascer. Mas isso não acontece sem dor e sem sonhos. A dor existe, mas a poesia opera a transmutação: do casulo à borboleta, um acordar sem medo. A escritura é responsável por essa transformação, porque ela interrompe o fluxo linear do tempo.

No mesmo poema, o eu-lírico convida o filho para ser o seu parceiro no aqui e agora: “Perdoa-me a tristeza,/como se fosses meu pai,/ e não meu filho.// Usciamo a riveder le stelle”. A inversão de papel é também uma reversão temporal, quando o filho encarna o futuro do pai. Também em Caproni a figura do filho amado tem a função de abolir o curso do tempo: Portami con te lontano/ ...lontano.../ nel tuo futuro.// Diventa mio padre, portami/ per la mano” (GC, “A mio figlio Attilio Mauro che ha il nome di mio padre”, p. 335).[6] Os traços, a vida e a história do pai passam a sobreviver na corpo do filho amado. A obra deixa de ser o espelho da vida e torna-se a sua profanação. O amante se dissolve no amor, ou sobrevive através do Outro como objeto parcial,  tal qual o rosto do pai na face do filho. Essa incorporação do Outro, a partir da reminiscência, pode ser entendida como um “fenômeno cíclico” de estados e transformações, inscritos no discurso poético, no qual o eu-lírico reconhece a herança da carne e do espírito, uma espécie de continuidade da vida após a morte. Viver através do Outro, através da palavra e do olhar do Outro constitui para Alberto a passagem para o poético:

  

Sofrer esta infância, esta morte, este início.

As cousas não param. Elas fluem, inquietas,

como velhos rios soluçantes. As flores

que apenas sonhamos em frutos se tornaram.

Sazonar, eis o destino. Porém não esquecer

a promessa de flores nas sementes dos frutos,

o rosto de teu pai na face do teu filho,

as ondas que voltam sobre as mesmas praias,

noivas desconhecidas a cada novo encontro” (ACS, “Elegia”, p 19).

 

Na poesia de Alberto, “o tempo recolhe as flores, às braçadas”, a família, a infância, os desejos do menino são os temas que ocupam esse espaço e esse tempo de exílio. Exilar-se é pôr-se em vigília no momento do risveglio. Para o poeta da memória, “a errância e o exílio são o seu destino”.[7] A escrita é a sua salvação, porque é uma atividade que o mantém suspenso por um fio sobre o abismo da memória. Essa idéia delineia-se mais claramente quando lemos o poema “Pátio da memória”, de Alberto da Costa e Silva, quando a hibridação dos tempos confunde o olhar do poeta:

À beira do sono, o sonho

transita. Um galo de pedra

acorda a sombra e as cores,

repele o pranto e o esquece,

pelo pátio das gangorras.

[...]

Apagam-se as formas duras.

Oscilam as pontes de aço.

Infância e foice passam

(estas ornadas de luto)

pelo pátio da gangorra.  (ACS, “Pátio da memória”,  p. 28).

 

O passado e o presente são os sujeitos desse jogo lúdico. Um jogo que estabelece a ponte entre infância e vida adulta, mas é também elemento atópico do ir e vir, do poeta errante. Essa ação assume um caráter onírico, os fragmentos de sono, e também de sonho, se insinuam como um entre-tempo, no tempo da vigília. Trata-se da soma de figuras que transitam entre o dormir e o svegliarsi, tal qual o galo de pedra que acorda a sombra e as cores. Essas figuras reúnem-se e agrupam-se em um conjunto que Franco Rella chamou de “constelação do risveglio”.[8] Um espaço do interstício, um tempo do meio, um instante em que sono e risveglio misturam-se e tornam-se indistinguíveis: “À beira do sono, o sonho/ transita” e “Pelo pátio das gangorras/ transitam doces memórias” (Idem, p. 28).

O tempo do risveglio está para além do ordinário. As imagens e figuras que surgem, a partir desse momento, são excêntricas e mutáveis.[9] Nenhuma significação prévia, nenhuma estabilidade que nos permita distinguir um sentido único ou um símbolo universal. Nos poemas de Alberto, a cada instante existe um eu que morre e outro que renasce na figura do eu-lírico menino que sonha o passado, dialoga com o pai poeta, mas não é capaz de adivinhar no arco do horizonte algum futuro, e o próprio passado é uma paisagem, uma reconstrução pictórica. Um tempo que possui a cicatriz do risveglio, recordações nebulosas e incertas. Trata-se, como diz o eu-lírico, de uma ausência:

Uma ausência de mim por mim se afirma.

E, partindo de mim, na sombra sobre

o chão que não foi meu, na relva simples

o outro ser que sonhei se deita e cisma.

 

Sonhei-o ou me sonhei? Sonhou-me o outro

– e o mundo a circundar-me, o ar, as flores,

os bichos sob o sol, a chuva e tudo –

ou foi o sonho dos demais que sonho?

 

A epiderme da vida me vestiu,

ou breve imaginar de um ócio inútil

ergueu da sombra a minha carne, ou sou

 

um casulo de tempo, o centro e o sopro

da cisma do outro ser que de mim fala

e que, sonhando o mundo, em mim se acaba. (ACS, “Soneto”, p. 122).

 

Se o futuro é apenas uma possibilidade, o passado é uma reconstrução e uma fantasia da memória: “sonhei-o ou me sonhei?”. Uma experiência interiorizada e metabolizada, uma poesia feita de vários eus, tal qual a de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa), em “Aniversário”: “sim o que fui de suposto a mim-mesmo,/ o que fui de coração e parentesco./ (...) No tempo em que festejavam o dia dos meus anos.../ (...) Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,/ com uma dualidade de eu para mim.../ comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!”. Na verdade, os vários “eus” afirmam-se, na poesia de Alberto, através da proposição “eu sou o princípio e o fim”, e, entre os extremos, existe somente o vazio paradoxal, uma espécie de ausência do passado no rio da memória.

Nos poemas “Ensaio de agonia” e em “Breve solilóquio no jardim das tulherias”, o poeta Alberto atribui as atividades da memória não a si mesmo, mas a um personagem, ao menino, que ele vê em seus sonhos e em sua vigília: “como se estivesse a sonhar-se menino” (ACS, p. 145), ou ainda:

O que quer este menino a andar de bicicleta,

senão lembrar-me do que fui? Senão, tonto de riso,

entre pombos e pardais no chão ensolarado, fingir-me?

 

Não aceito ter sido. Nem me quero menor

no coração que guardou o assombro e a fábula

de tudo o que viveu como um sonho escondido.

 

Os dias me cobraram o que era infinito.

E, se agora persigo o pedalar do menino,

é porque sei que sou o final do seu riso.” (ACS, “Breve solilóquio no jardim das tulherias”, p. 144).

 

O menino é o seu duplo, o espelho de ontem, mas é também esse menino que ativa a dinâmica da memória e da escritura. O trabalho da memória resulta, então, numa proposição de cheios e vazios, de memória e esquecimento, porque o que “se foi para sempre, fica e afunda no espelho” (ACS, “Poema”, p 173). Tal qual o ser amado que é diluído na memória do amor, também o eu-lírico dilui-se na memória do menino (ele). Ao exilar-se na memória do menino, o eu-lírico permanece em um estado suspenso, no entre-tempo.

A arte é um coração desnudado, é a verdade, e, para alcançá-la, é necessário sacrificar tudo, até mesmo a própria vida. É isso que Proust declara ao longo de sua obra, observando que a escritura é um salto para a morte, ou uma eterna torrente em direção à morte. Por isso, para Proust, é necessário manter a morte perto de nós, para que não percamos a lucidez do sofrimento autêntico. A morte, como a escritura, nas palavras de Proust, se instala tão profundamente, como faz o amor, de modo que não é possível pensar qualquer coisa, sem antes ter passado primeiramente pela idéia de morte. A narração e a palavra poética nascem desse não-lugar, que reúne os contrários, no interstício paradoxal entre o não-tempo infinitesimal e o não tempo do eterno, na experiência extrema e atópica da consciência em direção à morte.

Como em Marcel Proust, a busca do tempo perdido ultima-se no tempo reconquistado, nem presente nem passado, nem fusão dos dois, mas algo que, comum ao presente e ao passado, é mais essencial do que ambos. Não se trata então de uma fusão, mas de transmutação: do casulo à borboleta. A “revivescência”do passado no presente retira o presente do fluxo do tempo. Alberto da Costa e Silva identifica esse mecanismo, e, no poema “Ode a Marcel Proust”, o eu-lírico diz:

(...)

Retiras da memória

um mundo ignoto e novo,

e acompanhas, nas tuas vigílias,

os passos dos homens nos tapetes

e as palavras doces que não foram pronunciadas.

 

A cada instante,um encontro inesperado:

um peixe, uma gravata ou uma flor apenas entreaberta.

Tuas mãos repelem a morte, enluvadas,

e escrevem como se nada mais existira

a não ser a torre da matriz de Combray.

 

Proust, repercute em mim

Toda a tua agonia, companheiro.

(...) (ACS, “Ode a Marcel Proust”, p. 16)

 

Se o passado é uma ficção da memória e o futuro não existe, o que dizer do presente? Já sabemos que a experiência memória-risveglio é um risco e somente através da força do hábito, das atividades do cotidiano, e precipitando-se no curso do tempo, é possível contê-la. É aqui que a escritura intervém como salvação, oração e transmutação. O presente passa a ser o tempo da escritura, da poesia, que recolhe e organiza os fragmentos do tempo perdido, indagando e decifrando o que se foi. Para o eu-lírico, em “Hoje: Gaiola sem paisagem”, o tempo presente é um tempo de clausura e somente a poesia é capaz de libertá-lo. O espaço restringe-se ao limite de uma “gaiola”, ou de um quarto, diante das paredes e das grades, metáfora da imposição limítrofe do próprio tempo. O espaço a partir do qual escreve é um lugar de sacrifício e punição, diz o eu-lírico:

 

Nada quis ser, senão menino. Por dentro e por fora, menino.

Por isso, venho de minha vida adulta como quem esfregasse na

pureza e na graça o pano sujo dos atos nem sequer vazios, apenas

mesquinhos e com frutos sem rumo.

Como se escovar os dentes fosse montar num cavalo e levá-lo a

beber água ao riacho! Como se importasse à causa humana ler os

jornais do dia!

(...) (ACS, “Hoje: Gaiola sem paisagem”, p 69)

 

O presente submete o poeta aos hábitos e aos costumes e o aprisiona. A experiência da memória e do tempo em Alberto da Costa e Silva é contemplação, instante, risveglio: é “ficar olhando, completo, perfeito, os calangos/ a tomar sol no muro, sem trair o silêncio, sentindo o dia, para/ conhecer o mundo, para saber que estou vivo” (idem, p 69). Isto porque, segundo o poeta, sem os olhos da inocência e da contemplação as coisas tornam-se palavras vazias e áridas, assim como a vida dos adultos quando aprendem, no limite do adestramento cultural, a “dar laço em gravatas” (idem). Daí a presença constante do “menino”, metáfora da inocência e da nudez. E para conhecer o mundo é preciso desnudar-se. Em “Elegia Serena”, o primeiro poema do livro Poemas reunidos, o poeta apresenta-se “desnudando o seu próprio segredo”, pelos “tristes ventos que traziam as formas/ frágeis da inocência” (ACS, p 11), quando, em um instante, a “verdade” surge como revelação e como êxtase de existir: “...em vão tecemos vestes para cobrir o corpo nu” (ACS, “Vigília” p. 47). A condição de nudez diante da vida e do mundo implica olhar e ser olhado, uma atividade de contemplação que faz da experiência literária um ato divino de pura criação e de abstração temporal da existência humana e da morte, tal qual, uma pintura, uma paisagem, um Deus que pinta borboletas.

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

           

CAPRONI, Giorgio. Tutte le poesie. Milano, 1999.

DELEUZE, Gilles.  Proust e os signos.  Trad. Antônio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1987.

FONTES, Maria A. R. “Da fratura original às desdobras da memória: a via-sacra adeliana”. In: LOBO, Luiza e Faria, Márcia G. S. (Orgs.). Poética das cidades. Rio de Janeiro, Relume-Dumará/Ciência da Literatura-UFRJ, 1999, p. 93-115.

PROUST, Marcel.  No caminho de Swann.  Trad. Mário Quintana. São Paulo, Globo (Em busca do tempo perdido I), 1997.

RELLA, Franco. Miti e figure del moderno. 2ª ed. Milano, Feltrinelli, 1993.

_____.  Limina: il pensiero e le cose. 2ª ed. Milano, Feltrinelli, 1994.

_____. Pensare per figure: Freud, Platone, Kafka. Bologna, Pendragon, 1999.

_____. Dall’esilio: la creazione artística come testimonianza. Milano, Feltrinelli, 2004.

_____. Escritture estreme: Proust e Kafka.  Milano, Feltrinelli, 2005.

SILVA, Alberto da Costa. Poemas reunidos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira/ Biblioteca Nacional, 2000.

_____. Espelho do príncipe: ficções da memória. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1994.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] SILVA, Alberto da Costa. Poemas reunidos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira/ Biblioteca Nacional, 2000. A partir de agora citarei apenas as iniciais ACS, os poemas, dessa edição, seguido do número da página, no corpo do texto.

 

[2] Cf. RELLA, Franco. Dall’esilio: la creazione artística come testimonianza. Milano, Feltrinelli, 2004. Gostaria de esclarecer o motivo pelo qual uso a palavra (ri)sveglio, em italiano, e não a sua tradução em português que é acordar ou despertar. Svegliare provençal esvelhar, do latim vulgar exvigilãre, derivado do latim clássico evigilãre, vegilãre, vegliare, que se traduz por interromper o sono, mas também vigília (veglia), estar atento. Svegliare reúne em si o sentido de vigília, também de desvelar/velar e despertar. Entretanto esta última, em italiano, é destare, do latim vulgar deexcitare (estimular e provocar), que não traduz a idéia de vigília, velar e desvelar e nem o sentido elástico e ‘atemporal’ que tem a palavra risveglio.

[3] Cf.  RELLA, Franco. Pensare per figure: Freud, Platone, Kafka. Bologna, Pendragon, 1999.

[4] CAPRONI, Giorgio. Tutte le poesie. Milano, 1999. A partir de agora citarei apenas as iniciais GC, os poemas, dessa edição, seguido do número da página, no corpo do texto. A tradução dos poemas de Giorgio Caproni para esse ensaio é de minha autoria.

[5] “Um homem só/ recluso em seu quarto./ Com todas suas razões./ Todos os seus erros. Só em um quarto vazio,/ a falar. Para os mortos”.

[6] Leve-me contigo para longe/...muito longe.../ para o teu futuro.// Seja meu pai,/ leve-me pelas mãos”.

[7] Escritture estreme: Proust e Kafka.  Milano, Feltrinelli, 2005.

 

[8] Idem.

[9] Idem, p. 22-3.