Espaço e memória em L´Isola di Arturo
Maria
Aparecida da Silva
Faculdade de Letras/UFRJ
A memória é o mecanismo de que o ser humano dispõe para
resgatar o passado, e assim afirmar sua identidade. O sujeito só se constrói
através da rememoração e, à medida que
vai construindo suas memórias também vai construindo, através dos implícitos,
uma memória social.
Elson A. Teixeira e Andréa Monteiro B.
Machado, em seu livro Leitura dinâmica e
memorização (1993), classificam a memória em três etapas: memória imediata,
memória evocativa e memória de longo prazo.
A
memória imediata é sujeita a interferências externas. A informação aí
registrada tem um período de evocação muito pequeno, de alguns minutos a poucas
horas e, se a informação não for significativa, cai no esquecimento. Já a memória
evocativa é mais duradoura podendo os registros permanecer por várias semanas.
No entanto, é na memória de longo prazo que as informações recebidas podem
durar uma vida inteira. Os fatos da infância são, em geral, os últimos a serem
esquecidos, pois a emoção é a principal causa deste registro. O tema da memória
é justamente o que adquire maior realce no romance L’Isola di Arturo de Elsa Morante.
Elsa Morante foi uma das escritoras que
mereceu destaque no cenário das letras italianas, no início do século XX. Sua
importância deve-se não só ao talento como também à sua bravura pelo fato de
que, naquela época, os caminhos para a fama e o sucesso, em qualquer área, eram
quase inteiramente vedados à mulher.
Elsa Morante nasceu em Roma em 1912. Sua infância e
adolescência foram vividas entre as duas guerras. Lançou-se bem cedo como
escritora produzindo contos e poesias, mas só começa a entrar efetivamente no
campo da narrativa depois de 1945. Dotada de grande versatilidade e dona de uma
produção literária bastante significativa e diversificada, se fez merecedora de
alguns prêmios. Foi casada com o também escritor Alberto Moravia que já era
bastante popular nos meios literários. O melhor de sua produção narrativa se
encaixa na fase de descontinuidade do Neo-realismo italiano. Sua narrativa está
entre as que se classificam como narrativas da “memória” e, ela própria nos dá
um parecer do que seria, no seu entendimento, a obra de arte:
il segreto dell’arte sia [...] Ricordare [...] cercare sopratutto di ricordare. Ché forse tutto l’inventare è ricordare.1
O segredo da arte seja [...] Recordar [...] procurar sobretudo recordar. Que talvés todo o
inventar seja recordar.[1]
Por volta de 1982, constrangida a uma reclusão doméstica
ela tenta o suicídio, mas é impedida por uma serviçal. Logo depois é operada,
por causa de uma hidrocefalia e daí por diante não poderá mais deixar a clínica
romana onde morre de enfarto em 25 de novembro de 1985.
No romance L’Isola di Arturo, escrito pela Morante em
1956, cujo subtítulo é Memorie di un
fanciullo, O adolescente Arturo Gerace, protagonista da história, narra os
fatos que lhe vêem à memória. Órfão de mãe vive a infância e parte da adolescência
em Procida, uma ilha maravilhosa, paradisíaca
e cheia de mistérios.
A vida de Arturo é cheia de sonhos e fantasias, dos quais
a maioria está relacionada a seu pai Wilhelm Gerace, a quem devota total veneração.
Wilhelm, no entanto, o trata com total indiferença enquanto Arturo faz de tudo
para chamar sua atenção, na esperança de que um dia o pai possa vir a se
orgulhar dele. Sua ilusão é tão grande que não o deixa conhecer o verdadeiro
caráter de seu pai. Desse modo, Wilhelm se torna um deus do qual Arturo espera,
ansiosamente, receber pelo menos um gesto de simpatia. Aí já começa a se
delinear um dos temas considerados por Lúcia Castelo Branco como sendo peculiar
à escrita feminina, que é o tema do afeto. Lúcia afirma que:
Longe de ser uma escrita dos grandes feitos e efeitos,
com a epicidade do discurso histórico, ou memória oficial, a escrita feminina é
uma escrita dos afetos: dos amores, das dores, das alegrias casuais, das
perdas, das melancolias. O afeto, como aquilo que afeta, produzirá às vezes uma
escrita dos ressentimentos, outras vezes uma escrita das dores, das doenças,
das hipocondrias, outras ainda uma escrita dos amores, das desilusões amorosas,
dos abandonos.[2]
A narrativa é calcada nas recordações do jovem,
recordações repletas de sentimentos e ressentimentos até o momento da queda dos
seus mitos infantis.
Arturo vivia quase totalmente só, pois seu pai viajava
constantemente. Ao nascer, devido à morte de sua mãe, fora confiado ao jovem
Silvestro que lhe serviu de “ama seca” e depois a Costante, um outro empregado
de seu pai, e que se limitava apenas a preparar-lhe as refeições sem, no
entanto, delas participar.
Certo dia, Wilhelm, o pai, retorna de uma de suas viagens
trazendo consigo uma jovem, Nunziatina, e informa ao filho que os dois haviam
se casado. Á partir daí se instaura o conflito, pois Arturo acredita estar apaixonando
por ela, que o repudia. Paralelamente ao fato de haver sido repudiado pela
madrasta, Arturo também descobre a sórdida mesquinhez do pai, através de uma
série de experiências para ele extremamente doloridas. Decide então abandonar a
ilha que fora uma espécie de paraíso terrestre, no qual transcorreu a infância
e parte da adolescência. Já adulto, retornará ao espaço da infância infinitas
vezes através da memória, com o coração cheio de nostalgia.
Parece oportuno destacar o tema da ilha, pois ela não só
se refere a um lugar mas também adquire, pouco a pouco, aspectos cada vez mais
sugestivos, até se tornar a metáfora geográfica da infância de Arturo, da
realidade vista através da visão infantil. Essa é uma ilha muito mais no tempo que
no espaço. A ilha de Arturo, se bem que à primeira vista pareça um paraíso
terrestre, comporta também a idéia de círculo que traduz um estado de espírito,
um fechamento ou aprisionamento, ou a limitação da própria infância.
Carlo Sgorlon, em seu livro Invito alla lettura di Elsa Morante faz a seguinte afirmação:
La scrittrice diffonde in pari tempo la sensazione che
l’isola sia una stagione precaria dello spirito, [...] che scenderà per sempre
nelle zone ombrose e malinconiche della memoria.
A escritora difunde ao mesmo tempo a sensação de que a
ilha seja uma estação precária do espírito, [...], que baixará para sempre nas zonas sombrias e melancólicas
da memória.[3]
Tudo na ilha tem um aspecto arcaico, épico e primitivo e Arturo a vê através de um
véu que freqüentemente adquire um colorido melancólico. L’Isola di Arturo pode ser entendido como uma narrativa de espaço,
pois a ação é basicamente condicionada à questão espacial. A hegemonia do
espaço é também um traço marcante em grande parte da narrativa morantiana.
Gaston Bachelard declara que as lembranças são imóveis e,
tanto mais sólidas quanto mais bem espacializadas. Talvez por essa razão as
recordações de Arturo sejam tão fortes, tão marcantes. Para o narrador de L’Isola di Arturo todos os recursos são
válidos para manter acesa, durante a narrativa, a idéia da dimensão espacio-afetiva
como, por exemplo, o uso de alguns diminutivos:
la mia isola há straducce solitarie e chiuse [...] La mia
casa sorge [...] sull’alto di un monticello [...]A destra, una scalinata di
sassi e terra scende[...]La mia casa non dista molto da una
piazzetta[...]Attraverso la porticina si entra in un atrio lungo.
A minha ilha tem estradinhas solitárias e fechadas [...]
A minha casa surge [...] no alto de um montículo [...] A direita, uma escadinha
de pedras e terra [...] a minha casa não é muito distante de uma pracinha [...]
Através da portinha se entra em um átrio longo.[4]
Junto ao recurso dos diminutivos outros são encontrados:
o fato de se alongar, estreitar, erguer paredes ou muros nas laterais de um
ambiente, dá a sensação de redução espacial. Um outro recurso utilizado para
restringir alguns espaços é o de enchê-los de objetos. Um espaço repleto de
móveis e objetos e com as paredes todas ocupadas por desenhos diversos, talvez não
deixe perceber com exatidão as dimensões desse espaço.
Pode-se assinalar, também, o recurso da penumbra como
redutor de alguns espaços, pois num ambiente onde a iluminação é deficiente torna-se
difícil perceber sua real extensão.
Ainda segundo Bachelard, a casa fornece imagens dispersas
e um corpo de imagens e a imaginação aumenta os valores da realidade, e que
refúgios efêmeros e abrigos ocasionais recebem às vezes, de nossos devaneios,
instintos e valores que não têm qualquer base objetiva.
A casa de Arturo fora construída em um terreno árido,
íngreme e inacessível. As grades das sacadas corroídas pela ferrugem, no jardim
havia toda sorte de refugos, as plantas crescidas em meio ao lixo tinham as
folhas inchadas e espinhosas. Dentro, a mobília inteiramente destruída; as
paredes descoloradas e recobertas por inscrições, os vidros das janelas
enegrecidos e opacos. No lustre, três lâmpadas, também enegrecidas e empoeiradas.
Logo, os signos que identificam a casa são: a aridez, a inacessibilidade, a corrosão
e a sujeira, a destruição e a escassez de luz, signos que podem muito bem
traduzir aspectos de degradação moral, e como afirma Dalma Nascimento a literatura
é, sobretudo, memória e que respaldado pela memória, o artista tem obrigação de
exibir as mazelas do corpo social, ainda que imerso na memória afetiva pessoal
ele não pode se eximir da memória coletiva.
Não basta considerar a casa como objeto, simples
construção, diz Bachelard, é preciso, ao contrário, superar os problemas da
descrição. Alguns escritores caracterizam um aposento em seu estado atual, sem
viver, no entanto, a sua primitividade. A casa deve ser caracterizada não só
pelo momento em que é vivida, mas também pelo seu passado, pela sua cronologia.
Assim, é possível se ler uma casa ou se ler um quarto porque o espaço habitado
transcende o espaço geográfico. As grandes imagens têm ao mesmo tempo uma
história e uma pré-história.
A
casa de Arturo fora desde a sua construção, e, por dois séculos consecutivos,
um convento de frades. Depois da transferência desses religiosos, ela
hospedara, por certo tempo, durante e depois da guerra, companhias de militares
e, finalmente foi adquirida por um rico expedicionário chamado Romeo,
l’Amalfitano, que a deixara como herança ao pai de Arturo.
Durante dois séculos, a casa abrigara
frades: homens compromissados com o celibato, porém, pessoas comuns sujeitas a
fraquezas como qualquer ser humano.
Depois vieram os militares. Grandes
grupos de homens coabitando um mesmo espaço, num tempo de guerra, quando as
relações humanas se tornam por demais complicadas. Pergunta-se: que fariam
esses homens com seus instintos carnais? Em seguida ali encontramos o senhor
Amalfitano promovendo noitadas misteriosas, na casa, nas quais só era permitida
a entrada de rapazes. Sabemos por intermédio do narrador que alguns objetos
retirados da casa, depois da morte de Amalfitano, podiam conter o estigma
negativo da Casa dos Guaglioni. Esse era o apelido dado pelas mulheres da ilha
à casa, visto que Guaglione, em dialeto napolitano, significa rapazinho ou jovenzinho.
A casa de Arturo fora palco de um passado moralmente duvidoso. Na verdade o
relato de Arturo comporta forte carga de erotismo, a aparência de androgenia
parece ser a tônica do romance.
Sendo a casa um corpo de imagens, como afirma Bachelar,
poder-se-ia dizer que na casa de Arturo o quarto por guardar fortes lembranças
do qua havia sido vivenciado ali, seria o órgão central da casa, pois é lá que
se encontram as recordações mais significativas, inclusive a recordação
olfativa. A memória serve para reter coisas percebidas pelos sentidos. O
armário e as gavetas do quarto de Arturo exalava um odor cadavérico, símbolo de
deteriorização. Essa é uma lembrança olfativa que pode sugerir que os segredos
e lembranças guardados ali fossem, definitivamente, inconfessáveis.
A simbologia da ilha caracteriza a casa talvez de maneira
bem mais eficaz do que a descrição própria dos ambientes que a compõem. Uma das
características mais evidentes na caracterização da ilha está também ligada à
lembrança olfativa. Arturo a descreve como bela, de perfume selvagem e
acariciante, com muitos frutos, vinhedos, praias de areia clara delicada, mar
“tenro” e fresco, povoada por gaivotas e rolinhas. Tem-se, então, a ilha com
seu agradável odor, sua claridade e beleza, opondo-se à casa com seu mau
cheiro, sujeira, obscuridade e o clima pesado.
Arturo recupera a lembrança nostálgica da ausência de seu
pai e de sua infância. Porém, o que fica mais evidente nesta perspectiva do
romance não é a memória individual, mas sim a memória social, recuperada
principalmente, através das descrições espaciais, uma vez que Arturo, criança,
não teria condições de expressar em palavras os conceitos de decadência moral e
espiritual da sociedade de sua época, pintada através das cores e da
caracterização tanto da casa como de seus personagens.
Embora, segundo Bachelard, interior e exterior remetam a
conceitos diferentes, em L’Isola di
Arturo estes dois tipos de espaços se associam para formar um conceito
único. Na verdade, um só serve para corroborar as características expressas
pelo outro. Interior e exterior da casa trazem os signos da corrosão e da
sujeira moral e, no que diz respeito à oposição casa x ilha, os dois espaços
têm os mesmos indicativos de limitação e de exclusão.
Bibliografia
BACHELARD,
Gaston. A poética do espaço. Rio de
Janeiro, Eldorado, 1988
CASTELO
BRANCO, Lúcia. A tradição de Penélope.
São Paulo
Amnablume, 1994
CHEVALIER,
J. & GHEERBRANT, A Dicionário de símbolos (mito, So-
nhos, costumes, gestos, formas, figuras,
cores, números) Rio
de
Janeiro, José Olimpio, 1988
MORANTE,
Elsa. L’Isola di Arturo. Torino
Einaudi, 1956
NASCIMENTO,
Dalma. A deusa grega protetora dos
artistas. Artigo
publicado no Correio de Niterói
TEIXEIRA,
Élson A. & MACHADO, Andréa M. de Barros. Leitura dinâ-
mica e memorização.
São Paulo, Makron Books, 1993.