Margens
de um “eu” – memória e busca de identidade em poemas de Sophia de Mello Breyner
O
presente trabalho pretende interpretar poemas selecionados do livro No Tempo Dividido e Mar Novo (1985), de
Sophia de Mello Breyner Andresen. O olhar lançado sobre os poemas será
direcionado para dois percursos: o da memória e o do feminino. Dois caminhos
aqui entendidos e percorridos através das margens; de um lugar outro,
descentrado, que só se permite entrever, apontando para as próprias lacunas. As
lacunas de que aqui falamos não representam meros vazios, mas vazios
inaugurais, porque inauguram uma inesgotável produção de sentido e invenção.
Os
dois poemas aqui focalizados, Eurydice, e Soneto de Eurydice,
fazem referência direta ao mito de Orpheu. Por isso, consideremos essencial
fazer uma breve exposição sobre a importância do mito
para a compreensão, não somente dos poemas em questão, mas também da própria
existência.
Entendemos, então,
o mito como um relato que revela a pluralidade de sentido do ser, não o conceitua,
ou esgota. De acordo com Emmanuel Carneiro Leão em A Hermenêutica do Mito, a verdade do mito não é mais uma entre
outras verdades, e sim a questão da própria verdade. Ele nos diz: “há
verdades, no plural, correlativas ao sentido das diversas intencionalidades”.
Assim, o mito vai além do relato de uma determinada vivência, ele revela a
dinâmica da vivência numa manifestação de ser como o “sendo” do tempo original
dos deuses e homens. Recordar o mito significa reviver essa dinâmica, fazer
aparecer o desaparecido, enfrentando a morte.
Assim sendo,
vejamos o primeiro poema:
Eurydice
Este
é o traço que traço em redor do teu corpo amado e perdido
Para
que cercada sejas minha
Este
é o canto de amor em que te falo
Para
que escutando sejas minha
Este é o poema – engano do teu rosto
No qual eu busco a abolição da morte.
O título do poema nos
remete para o mito de Orpheu. Mestre de toda criação por virtude de sua poesia,
e neto de Mnemósine, a deusa grega que configura a própria personificação da
memória, ele é capaz de, através de sua música, encantar as plantas, os animais, os homens e os
deuses. De acordo com o relato mítico, Orpheu perde sua amada, Eurydice, que
mordida por uma serpente, morre. O músico, então, faz uso de sua arte e encanta
o mundo das trevas, fazendo com que os deuses concordem em devolver-lhe a
esposa.
No entanto, ao tentar abolir a morte e
recuperar Eurydice, Orpheu não consegue respeitar a única condição que lhe foi
imposta: não olhar para trás. O poeta, então, tomado pela impaciência, pela incerteza, pela saudade, e pelo desejo
grande da presença de uma ausência, não consegue se conter,
e violando o proibido, ousa olhar o invisível. Neste momento, Eurydice
desaparece, e Orpheu perde sua amada para sempre.
Nesse sentido, poderíamos entender o
poema como um canto de amor que é um gesto da memória, na medida em que deseja
presentificar uma ausência, atirando-se tal qual Orpheu numa tentava de olhar o
invisível e de abolir a morte. Pois de acordo com Gaston Bachelard, em A
Dialética do Tempo, “reviver o tempo desaparecido é aprender a
inquietude de nossa morte” (pg 38),
Vejamos os versos : “Este é o traço que traço em redor do teu corpo amado e perdido / Para que
cercada sejas minha”.
O
traço poético que se traça em busca do corpo amado e perdido, constitui o mesmo
gesto de amor que leva Orpheu aos infernos em busca de Eurydice: uma tentativa
de recuperar, presentificar, aquilo que já se encontra perdido. Entretanto, o
próprio traço, em oposição à linha contínua, traz em si a marca da ruptura.
Pois o traço constitui aquilo que permite a ligação, imprimindo uma certa ilusão de continuidade. Nesse movimento, ele não
tem como não deixar a marca da ruptura, ou seja, daquilo que tenta
reconstituir. Assim, falamos de um traço poético paradoxal, pois só é possível,
só existe, na medida em que tenta cercar aquilo que já está perdido.
Esse é o mesmo movimento da memória, que também
poderíamos chamar de desesquecimento. Ao
voltarmos o olhar para o passado, este não retorna como um bloco uniforme e
contínuo. Guardamos apenas aquilo que encontrou ressonância dentro de nós, ou
nas palavras de Ecléa Bosi, só fica o que significa. E esse tecido que fica é
fundamentalmente lacunar. Daí a necessidade de um traço que reconstitua aquilo
que um dia amamos e perdemos.
Além
disso, nos diz Bachelard: “não se pode reviver o passado sem o encadear num
tema afetivo necessariamente presente”. (pg. 37). É o que nos mostra
Deleuze, em Proust e os Signos.
Revisando a teoria de Bergson, ele considerou um fator importante da rememoração:
sua capacidade de interiorizar o contexto, isto é, tornar o contexto antigo
inseparável da sensação presente, envolvendo os dois contextos um no outro, e
fazendo da relação dos dois algo interiorizado. Assim o canto de amor busca
falar ao ser amado, para possuí-lo, como nos mostram os versos: Este é o canto de amor em que te falo /
Para que escutando sejas minha. Este canto tenta fazer com que o ser
amado regresse através da rememoração, numa reconstrução poética da
memória que é como uma reconquista, um traçado em redor daquilo que já não é
mais. Pois, ainda de acordo com Bachelard, só podemos reter algo se o
reconquistamos; só podemos manter, retomando.
Dessa forma, lançar um olhar do presente
em direção ao corpo amado e perdido do passado significa deparar-se com o
abismo do esquecimento, com a morte. Um tecido descontínuo, e lacunar, onde as
lembranças se perdem irreparavelmente, mas que é também inaugural porque
permite que o eu poético enfrente a morte, traçando a imagem do rosto amado e
perdido. Um engano, como vemos nos versos: Este é o poema – engano do teu rosto / No qual eu busco a abolição da morte. por que o eu poético percebe que não pode reproduzir o já
desaparecido, mas sim reconstruí-lo, não como esteve presente, mas como
passado. E não como passado que repete o presente que foi, mas como uma imagem
relativa ao presente em que agora é enunciado. Gesto que só é possível na
medida em que se lança para o futuro, para a possibilidade de criação. Engano
porque novo, rememorado, recriado.
Portanto, trata-se de um processo de construção que está mais próximo do esquecimento do que propriamente da reminiscência, no qual o tecido da rememoração ocupa lugar central, em detrimento do passado vivido e irrecuperável. Este tecido é, precisamente, o tecido artístico de Orpheu, aquele que ousa olhar o invisível, desafiando a morte. Uma urdidura feita sobre os fios do esquecimento, que são, também, os fios da criação, os fios da arte do poeta por excelência.
Assim, é desse mesmo lugar
descentralizado, das margens, que surgem as possibilidades da criação, da
invenção. E é nesse mesmo movimento que o recordador feminino, explicitado no poema a seguir, busca apossar-se de si mesmo,
se constituir enquanto sujeito; do lugar inventado, sempre inacabado, traçado e
retraçado num canto de amor transversal, e não paralelo, que constrói e se
reconstrói em meio às diferenças:
Soneto de Eurydice
Eurydice perdida que no cheiro
E nas vozes do mar procura Orpheu
Ausência que povoa terra e céu
E cobre de silêncio o mundo inteiro
Assim bebi manhãs de nevoeiro
E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que eram o meu
O meu rosto secreto e verdadeiro
Porém nem nas marés,
nem na miragem
Eu te encontrei. Erguia-se somente
O rosto liso e puro da paisagem
E devagar tornei-me
transparente
Como morte nascida à tua margem
E no mundo perdida esterilmente
No
poema em questão, o eu poético feminino se lança numa busca por seu rosto secreto e verdadeiro, tal qual Eurydice no cheiro e nas vozes do mar
procura por Orpheu.
Ao falar na procura por
um rosto, tocamos, finalmente, na questão da identidade da mulher. E é
importante lembrar que esse processo de constituir-se enquanto sujeito é um
processo sempre inacabado, pois pautado pela presença ambígua e contraditória
do inconsciente, e também, pelas relações intersubjetivas, o que significa
construir a identidade a partir do diálogo com o outro.
A busca de
identidade pelas mulheres, nas sociedades falocêntricas, esteve historicamente
permeada pela hegemonia do homem, tendo se constituído sempre pelas margens do
paradigma masculino. Assim, as diferenças femininas, quando submetidas ao
sistema sexo-gênero, se instituem a partir do que não é masculino. De acordo com Toril Moi, nesse sistema, o feminino corresponderia às
características, qualidades ou aparências ligadas diretamente ao sexo feminino,
porém, não como um destino biológico, e sim como uma prática
social em consequência da visão dominante do homem branco no ocidente. Segundo
Virginia Woolf, em Um Teto Todo Seu, durante séculos, as mulheres teriam
servido de “espelhos dotados do mágico e delicioso poder de refletir a
figura do homem com o dobro de seu tamanho natural”. Provar a inferioridade
da mulher era também parte da construção da autoconfiança, da segurança, e da
força, que calcaram a identidade masculina, sempre em oposição à feminina:
frágil, passiva e incapacitada intelectualmente.
Assim,
encontramos, no poema, uma busca por identidade que é marcada por este lugar à
margem, gravitando ex-cêntricamente em torno de um centro identitário
patriarcal. Em uma busca por seu rosto secreto e verdadeiro que é como um vagar
pelo mundo, por lugares incertos, pelas marés, por paisagens, e que
atravessa miragens e manhãs de nevoeiro.
E em meio a
essa busca incerta por si mesma, esse sujeito recordador encontra-se perdido,
como podemos observar nos versos: E deixei de estar viva e de ser eu / em
procura de um rosto que eram o meu.
Podemos
perceber, então, que é através do dinamismo da rememoração, que esse sujeito
recordador de si mesmo percebe-se plural. Pois é o trabalho da memória, de
infinitas incursões naquilo que foi, o que permite um constante processo de
construção e reconstrução desse “eu” perdido de si mesmo. E exatamente por
encontra-se perdido, às margens de si próprio, é que ele pode iniciar uma busca
por si mesmo. É também importante observar o verso deixei de estar viva e de
ser eu, na medida em que este já demosntra a estreita relação desse
processo de construção de identidade através da memória poética, com a morte.
Pois esse eu
expresso no feminino, que, como esperado, nem marés, nem na miragem encontra seu rosto secreto e verdadeiro, e
que procura e recria a si mesmo através do ato de rememoração, se apresenta
como lugar da transparência. Transparência não como inexistência, ou
vazio, mas como algo que se furta à visão, e que está associada a idéia de
morte, como podemos ver no verso: E devagar tornei me transparente, como
morte nascida à tua margem. Um sujeito que fala de um lugar outro, de uma
vertente que se abre a partir da margem, onde só é permitido se entrever, por
meio de rupturas e descontinuidades, e mais ainda, através da morte de si
mesma. E entretanto, é essa morte que permite que o eu poético nasça novamente,
e novamente à margem de si mesma, perdida
esterilmente, e exatamente porque perdida, passível de buscar a si mesma, e se
encontrar.
Assim é
também a procura de Eurydice por Orpheu, como podemos ver nos primeiro versos
do poema: Eurydice perdida que no cheiro /E nas vozes do mar procura Orpheu
/ Ausência que povoa terra e céu/ E cobre de silêncio o mundo inteiro.
Dessa vez,
é ela mesma a procurar por seu amado, como quem procura o próprio rosto, como
quem procura a si mesma. É Eurydice que, descobrindo-se perdida, toma a
iniciativa, e procura por Orpheu no cheiro e nas vozes do mar, revelando
uma visão de mundo de um eu que se exprime no feminino que através dela se
concebe e se realiza enquanto voz de mulher que procura pela sua própria voz,
dissonante e transversal. Nesse sentido, a imagem do eu poético acaba por
confundir-se com a imagem de Eurydice, e a busca de identidade acaba por
entrelaçar-se à memória poética, na medida em que ambos se voltam para o que foi, recriando-se a partir das margens.
Como
vemos, é na escrita literária que memória e identidade se encontram, onde o eu cindido do discurso memorialista se
aproxima de um sujeito expresso no feminino e desapropriado de si mesmo. Ambos
se constroem ao mesmo tempo em que se dilaceram: são bordados pelo
esquecimento, por um tecido lacunar e descontinuo, porém inaugural e
estruturante, e que é o fator paradoxal que permite que os dois enveredem para
a criação, para a invenção, para o futuro, para a reconstrução.
Referências Bibliográficas
Alves, Moreira Branca e Pitanguy, Jaqueline. O que é Feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1985.
Bachelard, Gaston. A Dialética da Duração. São Paulo: Ática, 1998.
BARBOSA, Myriam Estellita Lins. A Memória no Processo de Criação Literária. Dissertação de mestrado em Literatura Brasileira. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 1993.
Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
Bergson, Henry. Matéria e Memória. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
Bosi, Ecléa. Memória e Sociedade – Lembranças de Velhos. 2.ed. São Paulo, T. A. Queiroz/Ed. Universidade de São Paulo, 1987.
BRANCO, Lucia Castello. A Traição de Penélope. São Paulo: Annablume, 1994.
Castro, Antonio J. Jardim. Música: Vigência do Pensar Poético. Tese de doutorado em poética. Rio de Janeiro, UFRJ. Faculdade de Letras, 1997.
Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1994.
De Lauretis, Tereza. A Tecnologia do Gênero. Trad, Suzana B. Funck. In: __ . Hollanda, Heloisa Buarque de, org. Tendências e Impasses; O Feminismo como Critica da Cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.206 – 242.
Deleuze, Gilles. Proust e os Signos. Trad. Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
Gagnebin, Jeanne Marie. História e
Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994.
Leão, Emmanuel Carneiro. A Hermenêutica do Mito. In: Aprendendo a Pensar. 3. ed., Petrópolis: Vozes, 1991.
Moi, Toril. Feminists,
Female, Feminine. In: __. Et Alii. The Feminist Reader.
Oliveira, Rosiska Darcy de. A Cicatriz do Andrógino. In: Elogio da Diferença; O Feminismo Emergente. São Paulo: Brasiliense, 1991.
Showalter, Elaine. A
Literature of Their Own. Eagleton.: Feminist Literary Theory
Network, 1996.
Soares, Angélica. Memória e Poesia: Interrogando a Identidade em Lya Luft, Helena Parente Cunha, Hilda Hilst, e Marly de oliveira. In: Cadernos de Letras. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, 1999, p.106- p. 111.
WOOLF, Virginia. Um Teto Todo Seu. Trad. Vera Ribeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1929.
XAVIER,
Elódia. Identificações em curso e as relações de gênero do novo milênio no
Brasil. In: Mujer,
Cultura y Sociedad en América Latina. 1 ed. Caracas: La Galaxia, 2001.