“Aos que perguntam pela arte engajada, eu pergunto: onde está a
matemática engajada?”.
(Autor des-conhecido)
“De um objeto sem nome não sabemos o que fazer”
(Maurice Blanchot)
“Eu
já vi um gato ler
e um grilo sentar escola,
nas asas de uma ema
jogar-se o jogo da bola,
dar louvores ao macaco.
Só me falta ver agora
acender vela sem pavio,
correr pr’a cima a água do rio,
o sol a tremer com frio
e a lua tomar
tabaco!...”
(Guimarães Rosa)
Trecho de A hora e a vez de Augusto Matraga.
PS:
O trecho acima relata o encontro de Nhô Augusto com um cego guiado por um bode
de duas cores. Algum tempo depois da primeira edição de Sagarana, foi
encontrado numa biblioteca no Liso do Sussuarão um manuscrito em Passarim que
indica as origens e o sobrenome do tal cego, era descendente de bugre e
chamava-se Barros.
O triângulo
escaleno é aquele que tem lados e ângulos diferentes. Dentre todos os
triângulos é sem dúvida aquele de maior dificuldade na construção e
entendimento. Talvez, para tornar a vida mais fácil, pudéssemos queimar tudo
aquilo que foi escrito e esquecer tudo que foi dito pelo e sobre o triângulo
escaleno. O triângulo escaleno é desnecessário. Diante da harmonia do triângulo
eqüilátero, do triângulo isósceles e da força do triângulo retângulo há um
esquecimento do escaleno. Manoel de Barros é escaleno.
Ainda que
indesejado, o escaleno faz parte da categoria dos triângulos. Além dos
evidentes três lados, ele possui a mesma fórmula de área de qualquer triângulo:
bxh/2. Essa é sua triangulosidade.
Mesmo que desnecessária e indesejada, o homem faz poesia. Só o homem faz
poesia, essa é sua humanidade. Mesmo que desnecessário e indesejado Manoel de
Barros teima em fazer poesia. Essa é sua teimosia. As parcas linhas que seguem são uma tentativa
de desenhar o escaleno Manoel de Barros, sem régua e compasso. Sem instrumentos
precisos; à mão livre e de pés descalços; talvez nu, coaxando a sombra
de um buriti.
Concordando que estes homens-poetas sejam
descabidos de propósitos na modernidade, eles são de fórmula científica
constatada e de maneira irritante humanos. Ainda que indesejados, eles
vivenciam linguagem. Por que não
incinera-los? Já que segundo a sociologia atual existe um excedente de
população no mundo. Com certeza se forem
bem remexidos os excessos, hão de encontrar os poetas misturados ao lixo da
globalização[1]
que é formado em sua grande maioria por pessoas desnecessárias. O número
aumenta significativamente se pensarmos que estamos diante de um Manoel de
Barros inutensílio-poeta brasileiro!
Mas que campo gravitacional é este que oprime o pobre
poeta tornando-o um inútil? Por que ele não assume seu papel na modernidade[2] e
arruma uma função ou procura um emprego? Que discurso é este permeado de
subjetivismo e alienação? Que linguagem é esta coberta de lama e hera?
Sua língua era um depósito de sombras
retorcidas,
com versos cobertos de hera e sarjetas
que abriam asas sobre nós[3]
A
funcionalidade é a marca da modernidade. Houve durante o avanço do século XX,
uma gradativa supervalorização de todo o conhecimento que está atrelado a
utilidade. Predominam sobre a modernidade o triângulo eqüilátero, o quadrado, a
circunferência e o hexágono. Aboliram com o escaleno, os trapezóides e a
espiral[4],
figuras sem uso. Uma predominância de “ismos” nos movimentos artísticos durante
boa parte do século, atrelados a manifestos corroborou para uma “ciência” da
arte, com seus padrões estéticos e motivos. Até chegarmos ao Dadaísmo[5]
que revelou aos incautos a inaptidão da arte para a funcionalidade, sem deixar
de reificar a função a partir da negação, o que temos de herança histórica das
vanguardas é a possibilidade para um novo fazer na arte. Resultado de uma
sucessão de formas experimentadas nas primeiras décadas do século que
abandonaram cânones estabelecidos como perspectiva e métrica. Por outro lado
todos os movimentos de vanguarda fracassaram na sua busca por uma transformação
da sociedade porque entraram em conflito com a questão básica da obra de arte
que é o inominável. Quando no pensamento moderno o Absoluto perde o caráter
divino e passa a ser ocupado pela Ciência, o fetiche do artista passa a ser a
ocupação deste Absoluto pela arte. O que acabou com o sonho das vanguardas é
que na metafísica uma questão essencial é o ser pertencer ao pensamento,
naquele momento o manifesto ou a nova estética respondendo pela arte. Isso
naturalmente se mostrou um erro porque a arte não coube no manifesto. A poesia[6] é
um salto no abismo e deve ser assim, caso contrário seria uma repetição de
palavras desgastadas pelo uso cotidiano. O abismo leva a essência da Técnica
(criação) com “T” maiúsculo de ação inaugurante, mas não garante sobrevida ou
estabilidade ao artista, se assim fosse os manifestos responderiam pela arte, o
que já foi discutido. Quando o próprio Picasso, sem dúvida o artista mais
importante do século, massifica o Cubismo em temas como Guernica, ele cai na
armadilha que Benjamin tinha descrito: a reprodutibilidade técnica. Ele cai no
jogo metafísico onde o ser (obra) passa a pertencer ao pensamento. Aqui ocorre
a esterilidade, a vitória do permanente em detrimento da aparência. O que é a
aparência? O aparente é aquilo que resguarda o silêncio da obra, o que assegura
sempre a possibilidade de uma nova experiência e que impede uma conclusão para a
mesma. Que horizonte podemos estabelecer para a aparência? Onde começa o céu e
onde termina o mar diante de uma obra de arte?
É essencial reproduzir aqui uma parábola encontrada na Biblioteca
Pública de Nova York, quando um poeta brasileiro de Corumbá enfrentou a cidade:
A verdadeira história de
Sócrates.
Caminhando pela modernidade, podemos encontrar nos
becos da madrugada os excessos ou ainda os excessivos poetas debatendo sobre a
questão do horizonte. Que importância monetária apresenta este horizonte?
Aparentemente nenhuma Foi dito: “Prenderam na rua um homem que entrara na
prática do limbo”.
Prenderam tal homem diante de sua aparência macabra.
Prenderam um estorvo que lia nestes tempos Marx? Que aparência poderia ter? Que
posição política poderia exercer? Um sujeito sem cartão de crédito? Risada na
platéia.
A experiência na modernidade é redutora; não existe
tempo hoje para dúvidas essenciais, quem pode querer debater ou questionar
novos espaços? A arquitetura moderna é indubitável. O homem preso morava no parque, fazia arte com a
borra. Diante das certezas modernas prenderam o homem pela sua aparência. E
estão completamente certos os que prenderam tal homem. O espaço aparente do
homem é indigno para a modernidade. A sujeira e a velhice do homem preso produz
espetáculo para os incrédulos:
- Chamem a rainha de Copas para
cortar a cabeça!
Perguntado no interrogatório se durante a
ditadura ele teve alguma atividade subversiva, se era de esquerda ou mesmo
torturador, ou ainda se autodeclarava alienado, o homem respondeu: “Sou apenas
um encantador de palavras”. Bateram no sujeito até a manhã. Quando o sol surgiu no horizonte, o homem
chamou o torturador chefe e disse: “Sou o desaparecido irmão de Chopin”.
Estrangularam-no até a morte. A cidade amanheceu limpa[7].
O
vigor da obra de arte está adiante da questão “social”, mas é essencial para
uma restauração da natureza social. Ainda que pareça um contra-senso
entende-se: Toda produção artística vinculada diretamente à mudança da
sociedade ficou presa na história no pior sentido do termo, o da propaganda
política partidária. É farto o repertório de uso da linguagem como propaganda
no século XX. Algumas extremamente grosseiras, outras engajadas quando
supostamente estariam apresentando a fuga ao repressor[8]. A poesia é a impossibilidade de falar sobre a
linguagem[9];
tanto quanto Matisse é a impossibilidade de falar sobre a cor. A dificuldade de entender poesia se justifica
no próprio horizonte que é feita a pergunta. Não é só o como, mas de onde. Que
referência é usada para se fazer à pergunta? Se estivermos impregnados de
modernidade, se estivermos perfumados com o modismo do século XX, a poesia e
Manoel de Barros podem ser pensado nas próprias palavras do autor:
Tudo aquilo que a nossa civilização rejeita, pisa em
cima.[10]
Neste
momento do ensaio é necessária uma discussão mais direta com nosso autor. Para
esta análise da poesia de Manoel de Barros, vamos concentrar nossa intenção no
poema Sabiá com trevas que faz parte do livro Gramática expositiva do
chão (Poesia quase toda). O título do poema, uma referência direta a idéia
romântica de se fazer poesia, demonstra um sabiá distante da luz solar da Idéia
platônica que caracteriza o mundo da metafísica. O sabiá de Manoel de Barros
gorjeia nas trevas, é um canto que pertence à penumbra e conta com o silêncio.
As trevas aqui são determinantes para o sabiá enquanto poeta. Seu canto não
pode se aproximar da linguagem clara, limpa e bem vestida. A linguagem que
conduz a modernidade. O sabiá com trevas é sujo, faz da lama e do caos a fonte
da sua vivência. Vivência essa retratada na experiência poética: o canto do
obscuro[11]. Relevante afirmar que é da natureza do sabiá
o obscuro, mas não o obscuro que se esconde no fundo da caverna e se alimenta
da escuridão. Se o sabiá agisse desta maneira ele seria apenas o oposto do
sabiá de canto iluminado. A experiência do sabiá com trevas em nenhum momento
tem o caráter dialético. O mais importante aqui é entender que o canto do sabiá
com trevas presentifica quando estabelece a relação claro-escuro,
silêncio-canto. Não uma relação dicotômica de claro em seguida escuro, canto em
seguida silêncio. O sabiá com trevas instaura o silêncio no canto, o claro no
escuro. Instauração de mundo que é a essência deste mesmo sabiá:
Mais do que isso, o obscuro é, em sua essência, o
claro, e o claro é em sua essência, o obscuro.[12]
É ínvio e ardente o que o sabiá não diz. E tem
espessura de amor.[13]
Passando
pelo título as duas primeiras partes do poema se aproximam em demasia do conto O
Imortal de Jorge Luis Borges[14]:
Antes de perder-me outra vez no sonho e nos
delírios, inexplicavelmente repeti algumas palavras gregas: Os ricos teucros de
Zeléia que bebem a água negra do Esepo.
Neste
momento do conto, o protagonista Marco Flamínio, protótipo do herói romano,
está diante da desejada Cidade dos Imortais, objeto de sua obstinada procura e
nu repete palavras que teriam origem
Meu canto reboja
Não tem margens com a palavra
Sapo é nuvem neste invento.
Minha voz é úmida como restos de comida.[16]
Nos
dois casos existe uma apaixonada procura pela origem, pelo primeiro canto,
aquele que ainda se pretende encontrar a salvo. A diferença marcante é que
Borges parece ainda acreditar no humanismo, enquanto Manoel de Barros se
aprofunda na natureza(physis)[17].
Caminhando
no poema Manoel de Barros agora parece atingir um momento kafkiano. Quem seria
esse besouro afinal senão Gregor Samsa? Chutado, escondido, olhar
doído.Invisível para a maioria tira sua subsistência ironicamente das sobras da
modernidade, talvez em livros de poesia. Passaria incólume se não quisesse o
destino encontra o poeta, aquele catador de coisas despretensiosas, que o
encara, reconhecendo com alguma dificuldade o seu interlocutor e oferece
algumas páginas para seu banquete:
Parou no ralo do bueiro, olhoso, como um boi que
botaram no sangradouro dele.[18]
O
pierrô, a quarta parte do poema, tem uma dedicatória a Pablo Picasso, um
Picasso ainda indomado, um Picasso muito próximo aos touros das touradas que
tanto freqüenta e admira. Uma pintura que discute com a história da arte na sua
origem, que bate com força, que inaugura mundo e reorganiza a ordem, para se
aproximar das palavras de T.S.Eliot[19].
Que traz para frente da tela e empurra para dentro do museu as discussões de um
universo que causa mal-estar à modernidade. Tais discussões o levam a sua
grande obra que será o pilar da arte moderna: Les Demoiselles
d´Avignon:
Pierrô é desfigura errante,
Andarejo de arrebol. [20]
Nos
três próximos trechos do poema a discussão envereda para a linguagem poética.
Aquilo que é tão evidente no mundo contemporâneo, a linguagem objetiva[21],
é o que Manoel de Barros procura se desvencilhar. Afinal que relação poderia
existir entre a poesia e a evidência? Tornar evidente é tornar explicável. Em
que momento a poesia precisou e bateu à porta da explicação? Em que momento a
poesia precisou agarrar-se a motivos que não fossem os seus mesmos? Que
explicações psicológicas realmente deram conta da Bela da Tarde?[22]
Eu queria procurar não entender: a evidência não
interessava, como em Buñuel.[23]
Toda
tentativa de absorção pela metafísica daquilo que ela não consegue responder,
resultou em “ciência” da forma, da métrica, da rima ou em outros modelos
explicativos. Mais fácil foi chamar a poesia de inutensílio, concluindo que a
poesia é um objeto sem função. Ser inutensílio é não servir pra nada. É estar à
parte da roda da história e não contribuir com o suposto avanço da humanidade
através dos tempos. É como diz Heidegger comentado por Gerd Bornheim(2001,178):
O sistema é expressão metafísica da vontade de poder
e, portanto do subjetivismo que caracteriza de modo especialmente intenso o
pensamento moderno.[24]
Os
poetas são aqueles que não entenderam ou não quiseram entender a importância
que existe na vontade de poder. È esta vontade de poder que viabilizou e
viabiliza o caminho da modernidade. Abandonar tal intento fez com que o poeta
ocupasse o plano do parado.Quem importante permanece parado? Responde Manoel de
Barros: Há um silêncio parado banhando as moscas.[25]
Duas
questões que permanecem pendentes podem agora se fundir numa só: a origem da
poesia e o plano do parado no poeta. No início deste texto foi dito que o poeta
obedece a uma órbita que não comunga com o campo gravitacional da modernidade.
Esta órbita que foge a qualquer tipo de geometria e por conseqüência de
qualquer tipo de definição captura o poeta. No centro, se é que é possível
afirmar um centro temos a força da linguagem, que ainda que atue como
força-fraca nos tempos atuais de forte repressão, fala pelo poeta. Para os
desejosos de ciência, Manoel de Barros explica a origem desta força:
Enquanto existir a força da indigência vegetal em
alguém, essa força comandará a linguagem desse ente para uma poesia sem máquina.[26]
Uma
poesia sem máquina, sem função, que apresente a qualidade de inutensílio e que
acima de tudo garanta a nossa humanidade.
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ROSA, João
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[1] Entrevista do sociólogo Zygmunt Bauman ao jornalista Gustavo Pinheiro do jornal O Globo em 5 de novembro de 2005. Ver biblio.
[2] Ou estaríamos na Pós-modernidade? Pensando como Jameson.
[3] BARROS, Manoel de. Sabiá com trevas. In: Gramática expositiva do chão.
[4] Para o espanto da modernidade, Osman Lins reapresenta a espiral em Avalovara.
[5] Movimento que respondeu a partir de manifesto de maneira radical, ainda que a essência da arte não tenha sido tocada.
[6] Importante destacar que neste texto tanto o termo arte como o termo poesia, oferece o mesmo sentido.
[7] Bernardo da Mata em debate com Manoel de Barros, os dois entre outros assuntos silenciando diante das jias.
[8] O auge da arte propaganda foram os regimes totalitários de Mussolini, Stálin e Hitler.
[9] LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. Ver biblio.
[10] BARROS, Manoel. Gramática expositiva do chão. Ver biblio.
[11] A mesma obscuridade de Heráclito. Uma discussão que poderia surgir seria sobre os limites entre literatura e filosofia. Ainda que falte espaço para algo mais amplo é importante destacar que as duas apresentam na sua origem a mesma natureza.
[12] HEIDEGGER, Martin. Heráclito. Ver biblio.
[13] Ibid.
[14] BORGES, Jorge Luis. O imortal.In: Obras completas. Ver biblio
[15] Como o próprio Borges acreditava no limiar Borges/eu a proposta parece ter algum sentido.
[16] Ibid.
[17] No sentido heideggeriano do termo.
[18] Ibid.
[19] Comentado por Antonio Cícero.
Ver biblio.
[20] Ibid.
[21] A linguagem subjetiva segue o mesmo destino.
[22] BUNUEL, Luis. A bela da tarde.
[23] Ibid.
[24] BORNHEIM, Gerd. Metafísica e Finitude. Ver biblio.
[25] Ibid.
[26] Ibid.