DIALOGANDO COM OS MORTOS: HEINER MÜLLER E O DESENTERRAMENTO DA HISTÓRIA
Leonardo Munk
(Doutorando em Teoria Literária/UFRJ)
Pode-se argumentar que, em termos
freudianos, muitas vezes o esquecimento de acontecimentos
vem a reboque do recalque de lembranças desagradáveis, seja no âmbito íntimo,
seja no coletivo. É fato que o resgate da memória, além de um produtivo, porém
doloroso, processo de desrecalque, implica, por
conseguinte, em uma imprescindível estratégia no sentido de uma tomada crítica
de consciência. É, nesse aspecto, que, contrário à cauterização de feridas, ou
ao simples esquecimento, o teatro do dramaturgo e poeta alemão Heiner Müller busca a intensificação
dos conflitos e das contradições, recusando, com isso, mesmo em nome de algum
bem comum desenvolvimentista, o enterramento de conflitos ainda presentes e não
resolvidos. Como exemplo disso, reporto-me aqui a relação entre o fenômeno da desnazificação ocorrido na Alemanha do pós-guerra, suas
conseqüências reais para a sociedade alemã como um todo, e as investigações de
Theodor Adorno acerca da sobrevivência do nazismo na democracia.
Centrada particularmente na análise
psicológica das causas que levaram ao surgimento do Terceiro Reich e sua
ideologia, a reflexão de Adorno propunha o estabelecimento de uma elaboração do
passado, pois, segundo suas palavras, “o encantamento do passado pode manter-se
até hoje unicamente porque continuam existindo as suas causas”.[1] Nesse
aspecto, o processo de transformação do indivíduo em sujeito refletido da história
se constitui na necessária percepção do mundo como um lugar desencantado,
suscetível assim de ser analisado através de um distanciamento crítico. Desse
modo, o grande trunfo da reflexão adorniana se funda
na revelação das contradições presente nos conflitos, possibilitando, dessa
maneira, a conversão destes na base de uma experiência formativa, sobre a qual
Wolfgang Leo Maar, em seu prefácio
ao texto de Adorno, diz o seguinte:
O núcleo desta experiência
reside na compreensão do presente como histórico e na recusa de um curso
pré-traçado para a história, atribuindo-lhe um sentido emancipatório
construído a partir da elaboração de um passado, que parece fixado e
determinado apenas como garantia de sua continuidade, cujo curso precisa ser
rompido em suas condições sociais e objetivas.[2]
Para Adorno, a recusa da
emancipação crítica se dá, sobretudo, como fruto de uma percepção
uniformizadora da sociedade, na qual não há espaço para o diferenciado. É nesse
contexto que a reflexão de Adorno se assemelha ao trabalho de Müller, cujo procedimento literário se concentrou em
“desenterrar” tragédias pessoais e coletivas, as quais foram recalcadas, a fim
de estabelecer as necessárias ligações entre o passado e o presente para,
assim, apreendendo toda a complexidade da trama histórica, vislumbrar as
possibilidades de futuro.
Através de uma espécie de “processo
de desenterramento” (Prozess von
Ausgrabung)[3],
“método” que pode aqui ser comparado ao termo freudiano da sublimação[4], pois
ao trabalhar com a revisão
crítica do presente à luz do passado, Müller
estabelece com a história a mesma relação investigativa presente nas conclusões
de Sigmund Freud acerca do inconsciente. Em ambos os casos, o processo de
conscientização e emancipação ocorre por intermédio da memória. No dizer do
ensaísta mexicano, Octavio Paz, “a palavra ilumina o ato, torna-o lúcido, faz a
história refletir”.[5] A propósito disso, lembro
aqui uma passagem interessante de um livro clássico de Hannah
Arendt, onde
ela afirma que o fracasso do espírito renovador da revolução (francesa) só
poderia ser atenuado através da manutenção do “armazém da memória”, cuja tarefa
caberia primordialmente aos poetas.
Isto, e provàvelmente muito mais, perdeu-se
quando o espírito da revolução – um novo espírito e o espírito de começar algo
de novo – não conseguiu encontrar a sua instituição apropriada. Nada há que
possa compensar este fracasso ou obstar a que ele se torne definitivo, excepto a memória e a recordação. E, desde que o armazém da
memória é mantido e cuidado pelos poetas, cuja função é encontrar e criar as
palavras de que vivemos, pode ser prudente voltarmo-nos, (...) a fim de
encontrarmos uma expressão aproximada do verdadeiro conteúdo do nosso tesouro
perdido. [6]
Levando em consideração a reflexão
da pensadora alemã e atentando para o fato de que a falta de projetos para o
futuro evidenciaria necessariamente um esgotamento das lembranças do passado e
o esvaziamento de seus conteúdos, proponho pensar o texto mülleriano
como um grito de acusação contra o esquecimento dos horrores da história e um diagnosticador de uma espécie de inércia presente no
cotidiano da sociedade contemporânea. Ainda sobre esse tema, Ruth Röhl, autora de um livro dedicado a Heiner
Müller, fez a seguinte observação:
São muitos os testemunhos de Müller a respeito da necessidade do trabalho de memória;
segundo ele a memória de uma nação não deveria ser apagada, pois isso
significaria a sua sentença de morte. Mas não é apenas nesse sentido que se faz
indispensável dirigir o olhar para o passado: em sua opinião, para se livrar do
pesadelo da história é preciso conhecê-la e dar-lhe o devido valor.[7]
Dessa forma, em defesa da memória e
na contra-mão do tempo amnésico do mundo
contemporâneo, o trabalho de Müller propõe, em um
primeiro momento, o resgate crítico da tradição cultural alemã, patrimônio
comum, portanto, tanto à República Democrática Alemã (RDA) quanto à sua contrapartida capitalista,
a República Federal Alemã (RFA), para, em um segundo momento, inseri-la no
contexto da formação do projeto racionalista da modernidade no afã de
investigar as ambigüidades inerentes à razão iluminista e suas contradições.
Assim, os textos de Müller se contrapõem ao
sistemático culto do tempo do agora do mundo capitalista e suas inúmeras
tentativas de apagar aquilo que foi decretado como sem valor, projeto
perfeitamente pertinente a um sistema econômico que prioriza a produção em
detrimento da valorização do ser humano e de seu trabalho, excluindo, de um
modo geral, tudo aquilo que não possa ser necessariamente absorvido por um
amplo mercado consumidor. Ele trata disso, ainda na entrevista de 1985, no
seguinte trecho:
Quando você observa o sistema
do teatro, por exemplo, especialmente na Alemanha Ocidental, mas aqui também
[na Alemanha Oriental], percebe que ele se torna cada vez mais uma espécie de
indústria; essa indústria precisa de produtos, de matéria-prima para essa
indústria. Não há espaço. Se a questão é dinheiro, mais dinheiro para o teatro,
tanto nas duas Alemanhas como em toda parte do mundo,
não há espaço para o trabalho experimental.[8]
Importante é também observar como,
na esfera do cenário teatral europeu, a obra marcadamente experimental de Müller não se constitui apenas, no caso da RFA, em uma
tentativa de se opor às leis de consumo – nas palavras do autor: “Temos de
estar sempre procurando um jeito de não sermos consumidos”[9] –,
mas também, em relação à RDA, em uma crítica à censura de um regime político
marcado pela estagnação econômica e cultural. A favor dessa proposta, os textos
müllerianos se caracterizam por uma estratégia que,
empenhada na crítica à coisificação do homem e
contestadora do status quo, combate com seu obsessivo retorno à história a
subtração da memória em nome de uma glorificação ora do presente, ora do
passado, pois o apagamento da memória, alimentando-se de um desejo de
dominação, impediria a imprescindível leitura do passado e, por conseguinte, a
exata compreensão do homem enquanto uma realidade em contínuo processo.
Toda energia dos estados
capitalistas está voltada para a exclusão e para o fazer esquecer a exclusão. E
é contra esse esquecimento que precisamos trabalhar. Todos os que não estão
satisfeitos ou não se identificam com a realidade aqui negociada como
verdadeira fazem parte dos excluídos. Esse é o problema-Fatzer,
é o tema central do século, e Auschwitz é o modelo do
século.[10]
O não esquecimento de Auschwitz se faz imprescindível na medida em que a lógica
desumana que produziu a violência nazista ainda permanece em vigor, provando,
com isso, a atualidade da percepção adorniana e seus
ecos na voz de um importante autor alemão da segunda metade do século XX. Para
Adorno, Auschwitz representou a dominação do coletivo
objetivado sobre o individual. É nesse sentido que Müller
se empenha na construção de uma poética empenhada no resgate do indivíduo como
sujeito da história. Desse modo, imbuído de um olhar crítico frente às
violências de seu tempo, ele
assumiu o papel de um incansável interlocutor da história. Não apenas da alemã,
como também da européia, pensando e repensando fatos e obras da história
recente e antiga. Deste modo, ele
engendra seus textos tendo como base o estabelecimento de uma relação de
crítica radical com a
tradição, servindo-se para isso do confronto com os grandes autores do passado,
pois como ele próprio afirmou, em uma outra entrevista de 1985, desta vez
concedida a Olivier Ortolani, “a condição humana mudou muito pouco nos últimos
séculos”.[11]
Deste modo, no teatro de
Muller, o diálogo com nomes como Eurípides, William Shakespeare, Choderlos de
Laclos, Georg Büchner, e mesmo com contemporâneos do autor, como Walter
Benjamin, Bertolt Brecht, Samuel Beckett e Anna Seghers, reveste-se da
imperativa necessidade de se conhecer a parcela de futuro que subjazeria em
suas obras. Essa relação com os grandes autores da tradição
cultural européia e seus textos, contudo, não se constitui em uma relação de
subserviência, mas sim na construção de uma nova escritura que se traduz
necessariamente por intermédio da leitura e citação de outros textos
literários. Nesse aspecto, seu “diálogo com os mortos” (Dialog mit Toten), metáfora que, mencionada durante uma conversa com Urs Jenny e Hellmuth
Karasek em 1983, implica na consciência de que nenhum texto prescinde da
influência de outros, legitimando por sua vez a recorrência de Müller ao acervo
literário do passado.
Cada novo texto se relaciona a
uma grande quantidade de textos antigos, de outros autores, e também modifica o
olhar sobre aqueles. Minha relação com materiais e textos antigos é uma relação
com a posteridade. É, se os senhores assim quiserem, um diálogo com os mortos ”[12]
Diálogo esse que, segundo essa
perspectiva, também teria sido praticado por William Shakespeare se
considerarmos que o autor inglês nunca desprezou a utilização de outras fontes,
concebendo uma obra, que a despeito disso, adquiriu um vigor e relevância que
permanecem até hoje. A ele, inclusive, Müller se referiu certa vez como “um
mestre na escolha das fontes e das modalidades de roubo”.[13]
Muito distante de um sentimento depreciativo, esse julgamento de Müller se
assemelha à percepção de Walter Benjamin sobre as transformações da técnica de
escritura nas primeiras décadas do século XX. Servindo-se do jornalista
soviético Sergei Tretiakov como exemplo, Benjamin, em seu texto O autor como produtor, expressou o
seguinte posicionamento:
Os trabalhos que ele
realizou, direis, são os de um jornalista ou de um propagandista, e pouco têm a
ver com literatura. Ora, escolhi o exemplo de Tretiakov deliberadamente para
mostrar-vos como é vasto o horizonte a partir do qual temos que repensar a
idéia de formas ou gêneros literários em função dos fatos técnicos de nossa
situação atual, se quisermos alcançar as formas de expressão adequadas às
energias literárias do nosso tempo. Nem sempre as formas do comentário, da
tradução e mesmo da chamada falsificação tiveram um caráter literário marginal:
elas ocuparam um lugar importante na Arábia e na China, não somente nos textos
filosóficos como literários.[14]
O mesmo pode ser dito acerca
das obras dos gregos e de outros povos do passado, nenhum deles comprometidos
com o conceito de originalidade defendido no ocidente moderno. Consciente
disso, Müller questionou a concepção de originalidade, a qual passou a vigorar
principalmente a partir da ascensão da burguesia como classe social dominante,
através do resgate de uma escritura pré-burguesa baseada na cópia de textos
alheios, o que, segundo ele, representava a inserção de sua poética em uma
longa tradição de reescritura que compreenderia tanto os clássicos gregos, quanto
o teatro de Shakespeare. Essa inserção na tradição, no entanto, não se deu
simplesmente por intermédio de uma continuidade do passado, de sua confirmação,
mas sim através de uma estratégia desestabilizadora, violenta mesmo,
constituindo-se em uma verdadeira experiência de choque, a única compatível com
uma época anestesiada pelo excesso de informação e pelo esquecimento dos
horrores perpetrados pelo homem ao longo do século XX. A retomada de
Shakespeare, nesse caso, só se justificaria mediante o confronto com um novo
tipo de escritura.
No meio disso, jaz para a
minha geração, a longa marcha pelos infernos do Iluminismo, pelo lamaçal de
sangue das ideologias. O lapso geográfico de Hitler: genocídio na Europa, em
vez de, como hábito e praxe hoje como ontem, na África Ásia América. (...) O
olhar sem pálpebra sobre a realidade dos campos de trabalho e extermínio. (...)
Não teremos chegado a nós enquanto Shakespeare escrever nossas peças.[15]
Desta forma, o “diálogo”
proposto por Müller se notabiliza por uma interferência crítica na
transmissibilidade do passado, e não por sua simples continuidade. É preciso
que se diga, inclusive, que, em um cenário de ruptura profundamente acentuado
pela sensibilidade pós-moderna, essa reavaliação crítica da tradição não implicaria
naturalmente no esquecimento de eventos já ocorridos, característica
intrinsecamente contrária à idéia de elaboração do passado, como vimos com
Adorno, mas sim na busca de alternativas no sentido de efetuar uma necessária
ligação entre o presente e o passado.
No caso de Müller, essa
ligação, convergindo para uma estreita interlocução com as idéias de Walter
Benjamin, faz-se pela definição por uma escritura citacional. Nesse contexto,
não é escusado lembrar aqui a definição utilizada por Benjamin ao se referir ao
uso de citações em suas obras, a saber, a de ladrões de beira de estrada que
aliviam os passantes de suas convicções. Para aquele, no entanto, o poder das
citações não residia na intenção de reviver o passado, mas sim no desejo de
investi-lo de um “potencial de negação”, obtendo, com isso, o estranhamento
advindo da colocação de um fragmento fora de seu contexto original. Giorgio
Agamben, em um texto presente em seu livro O
homem sem conteúdo, compara esse potencial de negação com a estratégia
crítica desenvolvida pelos movimentos artísticos do “ready-made” e da
“pop-art”, onde o uso cotidiano de um objeto perderia sua inteligibilidade ao
ser deslocado de seu correspondente contexto.
É fácil observar que a
função do potencial de negação (extranéation) das citações é o exato
correspondente crítico do “potencial de negação” (extranéation) efetuado pelo
ready-made e pela pop-art. Aqui também um objeto cujo sentido está garantido
pela “autoridade” de seu uso quotidiano perde bruscamente sua inteligibilidade
tradicional por se ocupar de um inquietante poder traumatogênico. [16]
Em uma entrevista a Rainer
Crone, datada de 1988 e republicada na revista Théâtre/Public, no ano de 2005,
Müller confirmaria seu interesse pelo estranhamento produzido como decorrência
do isolamento de um objeto de seu contexto, dando a pintura do italiano Giorgio
De Chirico como um impressionante exemplo desse efeito[17].
Na visão de Benjamin, a citação de um texto implica na interrupção do contexto
no qual ele se situa, promovendo, assim, a privação do valor de uso de um determinado
objeto, o que acarreta, deste modo, um desconforto dentro do processo de
produção e uso implantado pelo sistema capitalista. Tem-se, dessa maneira, um
questionamento da significação social atribuída a esses objetos pela tradição,
sendo o valor de uso substituído pelo valor dado pelo amador. Trata-se aqui do questionamento de duas
entidades que se tornaram o tema central nas discussões sobre arte e sociedade
ao longo dos últimos dois séculos e que se acentuou drasticamente a partir da
segunda metade do século XX. Refiro-me a duas das leis básicas da sociedade
capitalista, a saber, a produção e o consumo.
O próprio século XX, contudo,
impulsionado por vozes dissonantes, também testemunhou o surgimento de uma
reflexão sobre o processo em detrimento da valorização do produto,
proporcionando ao artista a possibilidade de discutir a feitura da obra, não
mais se concentrando, pois, no produto final. Dessa forma, a participação do
espectador adquire relevante significado político, o qual pode ser posto em
xeque a partir do momento em que as sensibilidades contemporâneas,
incapacitadas de compreender o processo histórico, resignam-se frente à
anestesia resultado de um bombardeio indiscriminado de informações. Deste modo, menos em nome de uma tentativa
de resgate de uma tradição perdida, embora seus textos mais comprometidos com
um viés messiânico possam pôr em dúvida tal percepção, a estratégia citacional
proposta por Benjamin, entendida aqui como um instrumento de desordem
contextual, definiu-se, sobretudo, pelo elogio da destruição. A esse respeito,
reporto-me a um ensaio de Hannah Arendt, publicado nos anos 60, no qual ela
teceu a seguinte observação sobre a escritura benjaminiana:
Essa descoberta da função
moderna das citações, segundo Benjamin, que a exemplificava com Karl Kraus,
nascera do desespero – não o desespero de um passado que recusa “lançar sua luz
sobre o futuro” e deixa a mente humana “vaguear na escuridão”, como em
Tocqueville, mas o desespero do presente e o desejo de destruí-lo; daí que seu
poder seja “não a força para preservar, mas para limpar, arrancar do contexto,
destruir” (Schriften, vol. II, p.
192)[18]
Do mesmo modo que, para
Müller, o pressuposto da arte dramática consiste na limpeza (na destruição) dos
destroços que entulham a alma – ou seja, em “vomitar tudo para fora“ –, a destruição prefigurada por Benjamin significava, nesse sentido, o desejo de
destruir as formas falsas de experiência a fim de restabelecer as condições
para a construção de uma nova relação com os objetos.
O problema com uma política
cultural repressiva – tanto naquela época no Leste como hoje em toda a
Alemanha, de outra maneira, devido à pressão comercial – é que ninguém pode
vomitar tudo para fora. E esse é o pressuposto para uma obra dramática, ter
pelo menos uma vez a oportunidade de liberar o Brilho e o Lixo da alma.[19]
Nesse aspecto, em um momento
de uma entrevista concedida a Sylvère Lotringer, onde Müller, respondendo sobre
a relação entre a história e sua escritura, admite suas obsessões pela história
alemã e por Hamlet, encontra-se uma forte declaração sobre o caráter
eminentemente destrutivo de seu teatro.
A primeira preocupação
que eu tenho quando escrevo para o teatro é destruir as coisas. Durante trinta
anos, Hamlet foi uma obsessão real
para mim. Procurei destruí-lo, escrevendo um texto curto, Hamletmaschine. A história da Alemanha foi uma outra obsessão e eu
tentei destruir essa obsessão, todo esse complexo. Eu acho que o impulso
principal é desnudar as coisas até o seu esqueleto, libertá-las de sua carne e
superfície. Então você termina com elas.[20]
Como observou Müller, o caso
do Hamletmaschine é paradigmático.
Segundo a rubrica do texto, em um cenário apocalíptica, pelo qual passam
peixes, ruínas, cadáveres e pedaços de cadáveres, a personagem de Ofélia, que
se encontra em uma cadeira de rodas, diz, incorporando a voz de Electra, o
seguinte:
Aqui fala Electra. No
coração das trevas. Sob o sol da tortura. Para as metrópoles do mundo. Em nome
das vítimas. Rejeito todo o sêmen que recebi. Transformo o leite dos meus
peitos em veneno mortal. Renego o mundo que pari. Sufoco o mundo que pari entre
minhas coxas. Eu o enterro na minha buceta. Abaixo a felicidade da submissão.
Viva o ódio, o desprezo, a insurreição, a morte. Quando ela atravessar os
vossos dormitórios com facas de carniceiro, conhecereis a verdade.[21]
Ao “desenterramento” de
recalques coletivos e individuais se associa esse ambivalente desejo de
destruição, que propondo a subversão frente à institucionalização das coisas
(leia-se: valores artísticos, políticos, econômicos e religiosos) e
engendrando, com isso, novas formas de expressão e percepção, calcadas no uso
de uma montagem citacional, busca um teatro comprometido com a própria implosão
da cena teatral, produzindo fragmentos que, dessa forma, remeteriam às ruínas
da Europa, estabelecendo aqui, mais uma vez, um profícuo diálogo entre o
passado e o presente. Nesse sentido, ao negar a linguagem convencional, pois refém do estado das coisas, caberia
ao artista contemporâneo a construção de sua crítica negativa do real por
intermédio de “uma outra linguagem”. Uma linguagem construída por intermédio da
escolha de elementos extraídos de outros textos e reduzidos a cenas lacunares,
as quais deveriam ser preenchidas pelo espectador a fim de estabelecer uma
conexão entre fragmentos aparentemente desconexos. Desse modo, a dramaturgia de
Müller, dialogando com a tendência contemporânea do work in progress e
a crítica do discurso lógico cooptado pela sociedade capitalista,
caracteriza-se por um não acabamento que só pode vir a ser desenvolvido em cena
e em sua co-autoria com o trabalho do encenador, desenvolvendo, com isso, um
diagnóstico crítico sobre uma sociedade que se encontraria sob o signo da
falta.
[1] ADORNO, T. Educação e emancipação.
P. 49.
[2] MAAR, Wolfgang Leo. “À guisa de introdução:
Adorno e a experiência formativa”, in ADORNO, T. Educação e emancipação. P. 12-13.
[3] Interessante expressão usada
pelo encenador alemão Christoph Nel
por ocasião de uma discussão sobre a montagem de uma peça de Müller chamada Mauser, esta por sua vez uma releitura da peça A Decisão, de Brecht. NEL, C., TROLLER, U., BILABEL et alli. Über die Schwierigkeit zu sagen, was die Revolution
ist. Der Beginn der Arbeit an Mauser am Schauspiel Köln im Januar 1980. In:
STORCH, Wolfgang (org.). Explosion of a Memory Heiner Müller DDR: ein Arbeitsbuch. P. 122-33.
[4] FREUD, Sigmund. Os pensadores. P. 35. “Exatamente os componentes do instinto sexual
se caracterizam por essa faculdade de sublimação, de permutar o fim sexual por
outro mais distante e de maior valor social. Ao reforço de energia para nossas
funções mentais, por essa maneira obtido, devemos provavelmente as maiores
conquistas da civilização. A repressão prematura exclui a sublimação do
instinto reprimido; desfeita aquela, está novamente livre o caminho para a
sublimação.”
[5] PAZ, O. Signos em rotação. P.
74.
[6] ARENDT, H. Sobre
a revolução. P. 275.
[7] RÖHL, R. “ Heiner Müller na Pós-Modernidade”, in: KOUDELA, I.Heiner Müller: o espanto no teatro. P. 34
[8] SANTOS, L. Tempo de ensaio. P. 102-3.
[9] Ibidem. P. 104.
[10] MÜLLER, H. „Necrofilia é amor ao futuro: entrevista concedida a Frank Raddatz“, in: Vintém: Companhia do Latão. P. 33.
[11] MÜLLER, H. Gesammelte Irrtümer: Interviews. P. 149. “... die condition humaine sich in den letzten Jahrhunderten ganz wenig verändert hat.” (tradução minha)
[12]
MÜLLER, H. Gesammelte I rrtümer: Interviews. P. 138: „Jeder neue Text steht in
Beziehung zu einer ganzen Menge älterer Texte, von anderen Autoren, und
verändert auch den Blick auf sie. Mein Umgang mit alten Stoffen und Texten ist
auch ein Umgang mit einer Nachwelt. Es ist, wenn Sie so wollen, ein Dialog mit
Toten.” (tradução minha)
[13] RÖHL, R. O
teatro de Heiner Müller.
P. 28.
[14] BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. P. 123-4.
[15] MÜLLER, H., “Shakespeare eine Differenz”, in: HÖRNIGK, F. Heiner Müller Material. P. 105-6. „Dazwischen liegt, für meine Generation, der Lange Marsch durch die Höllen der Aufklärung, durch den Blutsumpf der Ideologien. Hitlers geografisches Lapsus: Genocid in Europa statt, wie gewohnt und Praxis heute wie gestern, in Afrika Asien Amerika. (…) Der lidlose Blick auf die Wirklichkeit der Arbeits- und Vernichtungslager. (…) Wir sind bei uns nicht angekommen, solange Shakespeare unsre Stücke schreibt.“
[16] AGAMBEN, G. L’homme sans contenu. P. 150. “Il est facile d’observer que la
fonction d’extranéation des citations est l’exact correspondent critique de
l’extranéation effectuée par le ready-made et le pop-art. Ici aussi, un objet
dont le sens était garanti par l’ “autorité” de son usage quotidien,
perd brusquement son intelligibilité traditionnelle pour se charger d’un
inquiétant pouvoir traumatogène”.
[17] MÜLLER, H. “Cinq minutes d’écran noir”,
in: Théâtre/Public no 176.
P. 82.
[18] ARENDT, H. Homens em tempos
sombrios. P. 166.
[19] MÜLLER, H. Guerra
sem batalha: uma vida entre duas ditaduras. P. 121.
[20] KOUDELA, I., op. cit, p. 98.
[21] MÜLLER, H. Quatro
textos para teatro: Mauser, Hamlet-máquina,
A missão, Quarteto. P. 32.