DIALOGANDO COM OS MORTOS: HEINER MÜLLER E O DESENTERRAMENTO DA HISTÓRIA

 

Leonardo Munk (Doutorando em Teoria Literária/UFRJ)

 

 

Pode-se argumentar que, em termos freudianos, muitas vezes o esquecimento de acontecimentos vem a reboque do recalque de lembranças desagradáveis, seja no âmbito íntimo, seja no coletivo. É fato que o resgate da memória, além de um produtivo, porém doloroso, processo de desrecalque, implica, por conseguinte, em uma imprescindível estratégia no sentido de uma tomada crítica de consciência. É, nesse aspecto, que, contrário à cauterização de feridas, ou ao simples esquecimento, o teatro do dramaturgo e poeta alemão Heiner Müller busca a intensificação dos conflitos e das contradições, recusando, com isso, mesmo em nome de algum bem comum desenvolvimentista, o enterramento de conflitos ainda presentes e não resolvidos. Como exemplo disso, reporto-me aqui a relação entre o fenômeno da desnazificação ocorrido na Alemanha do pós-guerra, suas conseqüências reais para a sociedade alemã como um todo, e as investigações de Theodor Adorno acerca da sobrevivência do nazismo na democracia.

Centrada particularmente na análise psicológica das causas que levaram ao surgimento do Terceiro Reich e sua ideologia, a reflexão de Adorno propunha o estabelecimento de uma elaboração do passado, pois, segundo suas palavras, “o encantamento do passado pode manter-se até hoje unicamente porque continuam existindo as suas causas”.[1] Nesse aspecto, o processo de transformação do indivíduo em sujeito refletido da história se constitui na necessária percepção do mundo como um lugar desencantado, suscetível assim de ser analisado através de um distanciamento crítico. Desse modo, o grande trunfo da reflexão adorniana se funda na revelação das contradições presente nos conflitos, possibilitando, dessa maneira, a conversão destes na base de uma experiência formativa, sobre a qual Wolfgang Leo Maar, em seu prefácio ao texto de Adorno, diz o seguinte:

 

O núcleo desta experiência reside na compreensão do presente como histórico e na recusa de um curso pré-traçado para a história, atribuindo-lhe um sentido emancipatório construído a partir da elaboração de um passado, que parece fixado e determinado apenas como garantia de sua continuidade, cujo curso precisa ser rompido em suas condições sociais e objetivas.[2]

 

Para Adorno, a recusa da emancipação crítica se dá, sobretudo, como fruto de uma percepção uniformizadora da sociedade, na qual não há espaço para o diferenciado. É nesse contexto que a reflexão de Adorno se assemelha ao trabalho de Müller, cujo procedimento literário se concentrou em “desenterrar” tragédias pessoais e coletivas, as quais foram recalcadas, a fim de estabelecer as necessárias ligações entre o passado e o presente para, assim, apreendendo toda a complexidade da trama histórica, vislumbrar as possibilidades de futuro.

Através de uma espécie de “processo de desenterramento” (Prozess von Ausgrabung)[3], “método” que pode aqui ser comparado ao termo freudiano da sublimação[4], pois ao trabalhar com a revisão crítica do presente à luz do passado, Müller estabelece com a história a mesma relação investigativa presente nas conclusões de Sigmund Freud acerca do inconsciente. Em ambos os casos, o processo de conscientização e emancipação ocorre por intermédio da memória. No dizer do ensaísta mexicano, Octavio Paz, “a palavra ilumina o ato, torna-o lúcido, faz a história refletir”.[5] A propósito disso, lembro aqui uma passagem interessante de um livro clássico de Hannah Arendt, onde ela afirma que o fracasso do espírito renovador da revolução (francesa) só poderia ser atenuado através da manutenção do “armazém da memória”, cuja tarefa caberia primordialmente aos poetas.

 

Isto, e provàvelmente muito mais, perdeu-se quando o espírito da revolução – um novo espírito e o espírito de começar algo de novo – não conseguiu encontrar a sua instituição apropriada. Nada há que possa compensar este fracasso ou obstar a que ele se torne definitivo, excepto a memória e a recordação. E, desde que o armazém da memória é mantido e cuidado pelos poetas, cuja função é encontrar e criar as palavras de que vivemos, pode ser prudente voltarmo-nos, (...) a fim de encontrarmos uma expressão aproximada do verdadeiro conteúdo do nosso tesouro perdido. [6]

 

Levando em consideração a reflexão da pensadora alemã e atentando para o fato de que a falta de projetos para o futuro evidenciaria necessariamente um esgotamento das lembranças do passado e o esvaziamento de seus conteúdos, proponho pensar o texto mülleriano como um grito de acusação contra o esquecimento dos horrores da história e um diagnosticador de uma espécie de inércia presente no cotidiano da sociedade contemporânea. Ainda sobre esse tema, Ruth Röhl, autora de um livro dedicado a Heiner Müller, fez a seguinte observação:

 

São muitos os testemunhos de Müller a respeito da necessidade do trabalho de memória; segundo ele a memória de uma nação não deveria ser apagada, pois isso significaria a sua sentença de morte. Mas não é apenas nesse sentido que se faz indispensável dirigir o olhar para o passado: em sua opinião, para se livrar do pesadelo da história é preciso conhecê-la e dar-lhe o devido valor.[7]

 

Dessa forma, em defesa da memória e na contra-mão do tempo amnésico do mundo contemporâneo, o trabalho de Müller propõe, em um primeiro momento, o resgate crítico da tradição cultural alemã, patrimônio comum, portanto, tanto à República Democrática Alemã  (RDA) quanto à sua contrapartida capitalista, a República Federal Alemã (RFA), para, em um segundo momento, inseri-la no contexto da formação do projeto racionalista da modernidade no afã de investigar as ambigüidades inerentes à razão iluminista e suas contradições. Assim, os textos de Müller se contrapõem ao sistemático culto do tempo do agora do mundo capitalista e suas inúmeras tentativas de apagar aquilo que foi decretado como sem valor, projeto perfeitamente pertinente a um sistema econômico que prioriza a produção em detrimento da valorização do ser humano e de seu trabalho, excluindo, de um modo geral, tudo aquilo que não possa ser necessariamente absorvido por um amplo mercado consumidor. Ele trata disso, ainda na entrevista de 1985, no seguinte trecho:

 

Quando você observa o sistema do teatro, por exemplo, especialmente na Alemanha Ocidental, mas aqui também [na Alemanha Oriental], percebe que ele se torna cada vez mais uma espécie de indústria; essa indústria precisa de produtos, de matéria-prima para essa indústria. Não há espaço. Se a questão é dinheiro, mais dinheiro para o teatro, tanto nas duas Alemanhas como em toda parte do mundo, não há espaço para o trabalho experimental.[8]

 

Importante é também observar como, na esfera do cenário teatral europeu, a obra marcadamente experimental de Müller não se constitui apenas, no caso da RFA, em uma tentativa de se opor às leis de consumo – nas palavras do autor: “Temos de estar sempre procurando um jeito de não sermos consumidos[9] –, mas também, em relação à RDA, em uma crítica à censura de um regime político marcado pela estagnação econômica e cultural. A favor dessa proposta, os textos müllerianos se caracterizam por uma estratégia que, empenhada na crítica à coisificação do homem e contestadora do status quo, combate com seu obsessivo retorno à história a subtração da memória em nome de uma glorificação ora do presente, ora do passado, pois o apagamento da memória, alimentando-se de um desejo de dominação, impediria a imprescindível leitura do passado e, por conseguinte, a exata compreensão do homem enquanto uma realidade em contínuo processo.

 

Toda energia dos estados capitalistas está voltada para a exclusão e para o fazer esquecer a exclusão. E é contra esse esquecimento que precisamos trabalhar. Todos os que não estão satisfeitos ou não se identificam com a realidade aqui negociada como verdadeira fazem parte dos excluídos. Esse é o problema-Fatzer, é o tema central do século, e Auschwitz é o modelo do século.[10]

 

            O não esquecimento de Auschwitz se faz imprescindível na medida em que a lógica desumana que produziu a violência nazista ainda permanece em vigor, provando, com isso, a atualidade da percepção adorniana e seus ecos na voz de um importante autor alemão da segunda metade do século XX. Para Adorno, Auschwitz representou a dominação do coletivo objetivado sobre o individual. É nesse sentido que Müller se empenha na construção de uma poética empenhada no resgate do indivíduo como sujeito da história. Desse modo, imbuído de um olhar crítico frente às violências de seu tempo, ele assumiu o papel de um incansável interlocutor da história. Não apenas da alemã, como também da européia, pensando e repensando fatos e obras da história recente e antiga. Deste modo, ele engendra seus textos tendo como base o estabelecimento de uma relação de crítica radical com a tradição, servindo-se para isso do confronto com os grandes autores do passado, pois como ele próprio afirmou, em uma outra entrevista de 1985, desta vez concedida a Olivier Ortolani, “a condição humana mudou muito pouco nos últimos séculos”.[11]

Deste modo, no teatro de Muller, o diálogo com nomes como Eurípides, William Shakespeare, Choderlos de Laclos, Georg Büchner, e mesmo com contemporâneos do autor, como Walter Benjamin, Bertolt Brecht, Samuel Beckett e Anna Seghers, reveste-se da imperativa necessidade de se conhecer a parcela de futuro que subjazeria em suas obras. Essa relação com os grandes autores da tradição cultural européia e seus textos, contudo, não se constitui em uma relação de subserviência, mas sim na construção de uma nova escritura que se traduz necessariamente por intermédio da leitura e citação de outros textos literários. Nesse aspecto, seu “diálogo com os mortos” (Dialog mit Toten), metáfora que, mencionada durante uma conversa com Urs Jenny e Hellmuth Karasek em 1983, implica na consciência de que nenhum texto prescinde da influência de outros, legitimando por sua vez a recorrência de Müller ao acervo literário do passado.

 

Cada novo texto se relaciona a uma grande quantidade de textos antigos, de outros autores, e também modifica o olhar sobre aqueles. Minha relação com materiais e textos antigos é uma relação com a posteridade. É, se os senhores assim quiserem, um diálogo com os mortos ”[12]

 

Diálogo esse que, segundo essa perspectiva, também teria sido praticado por William Shakespeare se considerarmos que o autor inglês nunca desprezou a utilização de outras fontes, concebendo uma obra, que a despeito disso, adquiriu um vigor e relevância que permanecem até hoje. A ele, inclusive, Müller se referiu certa vez como “um mestre na escolha das fontes e das modalidades de roubo”.[13] Muito distante de um sentimento depreciativo, esse julgamento de Müller se assemelha à percepção de Walter Benjamin sobre as transformações da técnica de escritura nas primeiras décadas do século XX. Servindo-se do jornalista soviético Sergei Tretiakov como exemplo, Benjamin, em seu texto O autor como produtor, expressou o seguinte posicionamento:

 

Os trabalhos que ele realizou, direis, são os de um jornalista ou de um propagandista, e pouco têm a ver com literatura. Ora, escolhi o exemplo de Tretiakov deliberadamente para mostrar-vos como é vasto o horizonte a partir do qual temos que repensar a idéia de formas ou gêneros literários em função dos fatos técnicos de nossa situação atual, se quisermos alcançar as formas de expressão adequadas às energias literárias do nosso tempo. Nem sempre as formas do comentário, da tradução e mesmo da chamada falsificação tiveram um caráter literário marginal: elas ocuparam um lugar importante na Arábia e na China, não somente nos textos filosóficos como literários.[14]

 

O mesmo pode ser dito acerca das obras dos gregos e de outros povos do passado, nenhum deles comprometidos com o conceito de originalidade defendido no ocidente moderno. Consciente disso, Müller questionou a concepção de originalidade, a qual passou a vigorar principalmente a partir da ascensão da burguesia como classe social dominante, através do resgate de uma escritura pré-burguesa baseada na cópia de textos alheios, o que, segundo ele, representava a inserção de sua poética em uma longa tradição de reescritura que compreenderia tanto os clássicos gregos, quanto o teatro de Shakespeare. Essa inserção na tradição, no entanto, não se deu simplesmente por intermédio de uma continuidade do passado, de sua confirmação, mas sim através de uma estratégia desestabilizadora, violenta mesmo, constituindo-se em uma verdadeira experiência de choque, a única compatível com uma época anestesiada pelo excesso de informação e pelo esquecimento dos horrores perpetrados pelo homem ao longo do século XX. A retomada de Shakespeare, nesse caso, só se justificaria mediante o confronto com um novo tipo de escritura.

 

No meio disso, jaz para a minha geração, a longa marcha pelos infernos do Iluminismo, pelo lamaçal de sangue das ideologias. O lapso geográfico de Hitler: genocídio na Europa, em vez de, como hábito e praxe hoje como ontem, na África Ásia América. (...) O olhar sem pálpebra sobre a realidade dos campos de trabalho e extermínio. (...) Não teremos chegado a nós enquanto Shakespeare escrever nossas peças.[15]

 

Desta forma, o “diálogo” proposto por Müller se notabiliza por uma interferência crítica na transmissibilidade do passado, e não por sua simples continuidade. É preciso que se diga, inclusive, que, em um cenário de ruptura profundamente acentuado pela sensibilidade pós-moderna, essa reavaliação crítica da tradição não implicaria naturalmente no esquecimento de eventos já ocorridos, característica intrinsecamente contrária à idéia de elaboração do passado, como vimos com Adorno, mas sim na busca de alternativas no sentido de efetuar uma necessária ligação entre o presente e o passado.

No caso de Müller, essa ligação, convergindo para uma estreita interlocução com as idéias de Walter Benjamin, faz-se pela definição por uma escritura citacional. Nesse contexto, não é escusado lembrar aqui a definição utilizada por Benjamin ao se referir ao uso de citações em suas obras, a saber, a de ladrões de beira de estrada que aliviam os passantes de suas convicções. Para aquele, no entanto, o poder das citações não residia na intenção de reviver o passado, mas sim no desejo de investi-lo de um “potencial de negação”, obtendo, com isso, o estranhamento advindo da colocação de um fragmento fora de seu contexto original. Giorgio Agamben, em um texto presente em seu livro O homem sem conteúdo, compara esse potencial de negação com a estratégia crítica desenvolvida pelos movimentos artísticos do “ready-made” e da “pop-art”, onde o uso cotidiano de um objeto perderia sua inteligibilidade ao ser deslocado de seu correspondente contexto.

 

É fácil observar que a função do potencial de negação (extranéation) das citações é o exato correspondente crítico do “potencial de negação” (extranéation) efetuado pelo ready-made e pela pop-art. Aqui também um objeto cujo sentido está garantido pela “autoridade” de seu uso quotidiano perde bruscamente sua inteligibilidade tradicional por se ocupar de um inquietante poder traumatogênico. [16]  

 

Em uma entrevista a Rainer Crone, datada de 1988 e republicada na revista Théâtre/Public, no ano de 2005, Müller confirmaria seu interesse pelo estranhamento produzido como decorrência do isolamento de um objeto de seu contexto, dando a pintura do italiano Giorgio De Chirico como um impressionante exemplo desse efeito[17]. Na visão de Benjamin, a citação de um texto implica na interrupção do contexto no qual ele se situa, promovendo, assim, a privação do valor de uso de um determinado objeto, o que acarreta, deste modo, um desconforto dentro do processo de produção e uso implantado pelo sistema capitalista. Tem-se, dessa maneira, um questionamento da significação social atribuída a esses objetos pela tradição, sendo o valor de uso substituído pelo valor dado pelo amador. Trata-se aqui do questionamento de duas entidades que se tornaram o tema central nas discussões sobre arte e sociedade ao longo dos últimos dois séculos e que se acentuou drasticamente a partir da segunda metade do século XX. Refiro-me a duas das leis básicas da sociedade capitalista, a saber, a produção e o consumo.

O próprio século XX, contudo, impulsionado por vozes dissonantes, também testemunhou o surgimento de uma reflexão sobre o processo em detrimento da valorização do produto, proporcionando ao artista a possibilidade de discutir a feitura da obra, não mais se concentrando, pois, no produto final. Dessa forma, a participação do espectador adquire relevante significado político, o qual pode ser posto em xeque a partir do momento em que as sensibilidades contemporâneas, incapacitadas de compreender o processo histórico, resignam-se frente à anestesia resultado de um bombardeio indiscriminado de informações. Deste modo, menos em nome de uma tentativa de resgate de uma tradição perdida, embora seus textos mais comprometidos com um viés messiânico possam pôr em dúvida tal percepção, a estratégia citacional proposta por Benjamin, entendida aqui como um instrumento de desordem contextual, definiu-se, sobretudo, pelo elogio da destruição. A esse respeito, reporto-me a um ensaio de Hannah Arendt, publicado nos anos 60, no qual ela teceu a seguinte observação sobre a escritura benjaminiana:

 

Essa descoberta da função moderna das citações, segundo Benjamin, que a exemplificava com Karl Kraus, nascera do desespero – não o desespero de um passado que recusa “lançar sua luz sobre o futuro” e deixa a mente humana “vaguear na escuridão”, como em Tocqueville, mas o desespero do presente e o desejo de destruí-lo; daí que seu poder seja “não a força para preservar, mas para limpar, arrancar do contexto, destruir” (Schriften, vol. II, p. 192)[18]

 

Do mesmo modo que, para Müller, o pressuposto da arte dramática consiste na limpeza (na destruição) dos destroços que entulham a alma – ou seja, em “vomitar tudo para fora“ –, a destruição prefigurada por Benjamin significava, nesse sentido, o desejo de destruir as formas falsas de experiência a fim de restabelecer as condições para a construção de uma nova relação com os objetos.

 

O problema com uma política cultural repressiva – tanto naquela época no Leste como hoje em toda a Alemanha, de outra maneira, devido à pressão comercial – é que ninguém pode vomitar tudo para fora. E esse é o pressuposto para uma obra dramática, ter pelo menos uma vez a oportunidade de liberar o Brilho e o Lixo da alma.[19]

 

Nesse aspecto, em um momento de uma entrevista concedida a Sylvère Lotringer, onde Müller, respondendo sobre a relação entre a história e sua escritura, admite suas obsessões pela história alemã e por Hamlet, encontra-se uma forte declaração sobre o caráter eminentemente destrutivo de seu teatro.

 

A primeira preocupação que eu tenho quando escrevo para o teatro é destruir as coisas. Durante trinta anos, Hamlet foi uma obsessão real para mim. Procurei destruí-lo, escrevendo um texto curto, Hamletmaschine. A história da Alemanha foi uma outra obsessão e eu tentei destruir essa obsessão, todo esse complexo. Eu acho que o impulso principal é desnudar as coisas até o seu esqueleto, libertá-las de sua carne e superfície. Então você termina com elas.[20]

 

Como observou Müller, o caso do Hamletmaschine é paradigmático. Segundo a rubrica do texto, em um cenário apocalíptica, pelo qual passam peixes, ruínas, cadáveres e pedaços de cadáveres, a personagem de Ofélia, que se encontra em uma cadeira de rodas, diz, incorporando a voz de Electra, o seguinte:

 

Aqui fala Electra. No coração das trevas. Sob o sol da tortura. Para as metrópoles do mundo. Em nome das vítimas. Rejeito todo o sêmen que recebi. Transformo o leite dos meus peitos em veneno mortal. Renego o mundo que pari. Sufoco o mundo que pari entre minhas coxas. Eu o enterro na minha buceta. Abaixo a felicidade da submissão. Viva o ódio, o desprezo, a insurreição, a morte. Quando ela atravessar os vossos dormitórios com facas de carniceiro, conhecereis a verdade.[21]

 

Ao “desenterramento” de recalques coletivos e individuais se associa esse ambivalente desejo de destruição, que propondo a subversão frente à institucionalização das coisas (leia-se: valores artísticos, políticos, econômicos e religiosos) e engendrando, com isso, novas formas de expressão e percepção, calcadas no uso de uma montagem citacional, busca um teatro comprometido com a própria implosão da cena teatral, produzindo fragmentos que, dessa forma, remeteriam às ruínas da Europa, estabelecendo aqui, mais uma vez, um profícuo diálogo entre o passado e o presente. Nesse sentido, ao negar a linguagem convencional, pois refém do estado das coisas, caberia ao artista contemporâneo a construção de sua crítica negativa do real por intermédio de “uma outra linguagem”. Uma linguagem construída por intermédio da escolha de elementos extraídos de outros textos e reduzidos a cenas lacunares, as quais deveriam ser preenchidas pelo espectador a fim de estabelecer uma conexão entre fragmentos aparentemente desconexos. Desse modo, a dramaturgia de Müller, dialogando com a tendência contemporânea do work in progress e a crítica do discurso lógico cooptado pela sociedade capitalista, caracteriza-se por um não acabamento que só pode vir a ser desenvolvido em cena e em sua co-autoria com o trabalho do encenador, desenvolvendo, com isso, um diagnóstico crítico sobre uma sociedade que se encontraria sob o signo da falta.

 

 



[1] ADORNO, T. Educação e emancipação. P. 49.

[2] MAAR, Wolfgang Leo. “À guisa de introdução: Adorno e a experiência formativa”, in ADORNO, T. Educação e emancipação. P. 12-13.

[3] Interessante expressão usada pelo encenador alemão Christoph Nel por ocasião de uma discussão sobre a montagem de uma peça de Müller chamada Mauser, esta por sua vez uma releitura da peça A Decisão, de Brecht. NEL, C., TROLLER, U., BILABEL et alli. Über die Schwierigkeit zu sagen, was die Revolution ist. Der Beginn der Arbeit an Mauser am Schauspiel Köln im Januar 1980. In: STORCH, Wolfgang (org.). Explosion of a Memory Heiner Müller DDR: ein Arbeitsbuch. P. 122-33.

[4] FREUD, Sigmund. Os pensadores. P. 35. “Exatamente os componentes do instinto sexual se caracterizam por essa faculdade de sublimação, de permutar o fim sexual por outro mais distante e de maior valor social. Ao reforço de energia para nossas funções mentais, por essa maneira obtido, devemos provavelmente as maiores conquistas da civilização. A repressão prematura exclui a sublimação do instinto reprimido; desfeita aquela, está novamente livre o caminho para a sublimação.”

[5] PAZ, O. Signos em rotação. P. 74.

[6] ARENDT, H. Sobre a revolução. P. 275.

[7] RÖHL, R. “ Heiner Müller na Pós-Modernidade”, in: KOUDELA, I.Heiner Müller: o espanto no teatro. P. 34  

[8] SANTOS, L. Tempo de ensaio. P. 102-3.

[9] Ibidem. P. 104.

[10] MÜLLER, H. „Necrofilia é amor ao futuro: entrevista concedida a Frank Raddatz“, in: Vintém: Companhia do Latão. P. 33.

[11] MÜLLER, H. Gesammelte Irrtümer: Interviews. P. 149. “... die condition humaine sich in den letzten Jahrhunderten ganz wenig verändert hat.” (tradução  minha)

[12] MÜLLER, H. Gesammelte I rrtümer: Interviews. P. 138: „Jeder neue Text steht in Beziehung zu einer ganzen Menge älterer Texte, von anderen Autoren, und verändert auch den Blick auf sie. Mein Umgang mit alten Stoffen und Texten ist auch ein Umgang mit einer Nachwelt. Es ist, wenn Sie so wollen, ein Dialog mit Toten.” (tradução minha)

[13] RÖHL, R. O teatro de Heiner Müller. P. 28.

[14] BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. P. 123-4.

[15] MÜLLER, H., “Shakespeare eine Differenz”, in: HÖRNIGK, F. Heiner Müller Material. P. 105-6. „Dazwischen liegt, für meine Generation, der Lange Marsch durch die Höllen der Aufklärung, durch den Blutsumpf der Ideologien. Hitlers geografisches Lapsus: Genocid in Europa statt, wie gewohnt und Praxis heute wie gestern, in Afrika Asien Amerika. (…) Der lidlose Blick auf die Wirklichkeit der Arbeits- und Vernichtungslager. (…) Wir sind bei uns nicht angekommen, solange Shakespeare unsre Stücke schreibt.“

[16] AGAMBEN, G. L’homme sans contenu. P. 150. “Il est facile d’observer que la fonction d’extranéation des citations est l’exact correspondent critique de l’extranéation effectuée par le ready-made et le pop-art. Ici aussi, un objet dont le sens était garanti par l’ “autorité”  de son usage quotidien, perd brusquement son intelligibilité traditionnelle pour se charger d’un inquiétant pouvoir traumatogène”.

[17] MÜLLER, H. “Cinq minutes d’écran noir”, in: Théâtre/Public no 176. P. 82.

[18] ARENDT, H. Homens em tempos sombrios. P. 166.

[19] MÜLLER, H. Guerra sem batalha: uma vida entre duas ditaduras. P. 121.

[20] KOUDELA, I., op. cit, p. 98.

[21] MÜLLER, H. Quatro textos para teatro: Mauser, Hamlet-máquina, A missão, Quarteto. P. 32.