IDENTIDADE E DIFERENÇA CONCILIADAS

 

A proposta de conciliar identidade e diferença parece-nos mesmo um tanto ambiciosa, se consideramos os respectivos étimos: ambas originárias do latim, identidade provém de idem (o mesmo, o próprio, na forma neutra) mais o sufixo tardio formador de substantivo –titas, ou seja, aquilo que caracteriza o mesmo, o próprio; enquanto diferença tem sua origem na junção do prefixo dis- (afastamento) com o verbo ferre (transportar, carregar) e, posteriormente, o sufixo –ens formador de particípio presente e, em última instância, substantivo, resultando naquilo que se afasta, que carrega para longe de.

A pós-modernidade, entretanto, permite-nos, dentre outros, esta aproximação de conceitos aparentemente díspares, pela oportunidade (boa ou má) que o momento nos oferece ao evitar paradigmas e referências até então consolidados.

Como a identidade fechada, ou o modelo centrado e auto-suficiente (sem alteridade) da modernidade ocidental gerou um progresso cheio de riscos para o homem ocidental, este busca, na pós-modernidade, a construção de um sujeito que passe pelo ou contenha o objeto. A alteridade é fundamental na constituição do mesmo e não do outro; ela é parte integrante do mesmo. Por isso, o sujeito auto-suficiente, centrado, teve sua morte anunciada. Não se deve fechar a questão da identidade nela mesma. Isto pode nos indicar que a identidade não se opõe à diversidade e, pelo contrário, pode se compor e se fortalecer a partir dela.

Chegamos, assim, à idéia da composição, que nos levará a relacionar o uno com o múltiplo na construção do conhecimento, do sujeito, da memória, do todo.

Não queremos a relação da distância, da separação, da impossibilidade, estabelecida desde Platão. O mundo pós-moderno comporta e precisa de aproximações para constituir-se como unidade. Vivemos um tempo unitário, em que presente, passado e futuro são sempre simultâneos. Participar da pós-modernidade é também aceitá-la desde o étimo e se dispor a operar com o desconhecido, com aquilo que está à frente (post) do costume (mos) atual (hodiernum), entregando-se a limites e fronteiras em busca de encontros, de aprendizagens, que acabam por constituir o sujeito.

Para Jacques Derrida, vive-se inclusive do transbordamento, daquilo que ultrapassa o sujeito que se vai aos poucos constituindo, conforme o trecho abaixo, retirado de uma entrevista do filósofo ao jornal Le Monde, em abril de 2004:

Vous savez, apprendre à vivre, c'est toujours narcissique : on veut vivre autant que possible, se sauver, persévérer, et cultiver toutes ces choses qui, infiniment plus grandes et puissantes que soi, font néanmoins partie de ce petit "moi" qu'elles débordent de tous les côtés.[1]

 

A aprendizagem se nos afigura narcísica sobretudo diante da consciência de proximidade da morte que já se apoderara de Derrida quando da entrevista. A certeza da finitude impele o homem a buscar o máximo de experiência na vida.

A aproximação de seres, mundos e sensações parece contribuir para a experiência do homem em sua infinita quete ontológica. O homem passa a operar, pois, na comunhão com o outro para se constituir como ser, como aquele que tem consciência de sua finitude e procura se equilibrar no mundo que constrói entre a realidade e a ficção, onde a angústia existencial se torna suportável e, em alguns momentos, até produtiva.

Segundo Agamben,

 

“longe de ser algo irreal, o mundus imaginabilis tem a sua plena realidade entre o mundus sensibilis e o mundus intellegibilis, e é, aliás, a condição de sua comunicação, ou seja, do conhecimento.”[2]

 

É nessa confluência de mundos que encontramos os contos O búfalo e Amor, que passamos a analisar. Clarice expõe suas protagonistas à experiência do encontro e identificação com o outro, para nos surpreender, em seguida, com os efeitos das respectivas comunhões.

 

 NOS JARDINS

 

A protagonista de O búfalo não tem nome: é apenas uma mulher de casaco marrom que vai ao Jardim Zoológico para aprender a odiar com os animais. “Mas era primavera”[3] e a mulher encontra os bichos ocupados em seu viver e impermeáveis à experiência que ela buscava.

 

Sem conseguir – diante da aérea girafa pousada, diante daquele silencioso pássaro sem asas – sem conseguir encontrar dentro de si o ponto pior de sua doença, o ponto mais doente, o ponto de ódio, ela que fora ao Jardim Zoológico para adoecer.”[4]

 

Em carta a Fernando Sabino[5], Clarice lhe conta que escrevera um conto chamado O búfalo que era de uma violência que a fazia tremer. Essa violência era desejada pela personagem, que a procurava, então, fora de seu cotidiano, numa visita ao Jardim Zoológico. “Mas não sabia sequer como se fazia. Como cavar na terra até encontrar a água negra, como abrir passagem na terra dura e chegar jamais a si mesma?”[6] A busca de si mesma se nos afigura como um problema de construção de identidade na protagonista, resíduo da angústia existencial que a levara a querer experimentar um sentimento extremo como o ódio: “e enquanto fugia, disse: Deus, me ensine somente a odiar.”[7]

A necessidade do outro para a concretização do aprendizado é freqüente na obra de Clarice[8] e surge quase sempre como um “interesse da mulher por um estranho que lhe mostra um conhecimento e que, geralmente, a subtrai de um contexto pacato, alienante, confortável[9], segundo Simone Curi, para quem, ainda, “o conhecimento é o inoculador de um olhar perigoso, estrangeiro, acometendo-a, não sem espanto, em seu agir. O saber parece, então, deslocado do cotidiano, do lar, assim como do estereótipo feminino-burguês(...)[10]. Ele se dá no arrebatamento da personagem, que, de repente, descobre-se em outro mundo que não o do seu dia-a-dia, envolvida no processo da aprendizagem.

Em O búfalo a figura do outro aparece nos vários animais que a protagonista observa durante sua visita ao Jardim Zoológico, à procura de uma identificação pelo ódio. “A mulher então experimentou o camelo (...) No estômago contraiu-se em cólica de fome a vontade de matar. Mas não o camelo de estopa. ‘Oh, Deus, quem será meu par neste mundo?’”[11]

Os percursos que levam as personagens à experiência do encontro são muitos, bem como o modo como este se dá, até chegar ao desequilíbrio provocado pelo arrebatamento, pela comunhão com o outro e conseqüente compreensão – ainda que parcial e efêmera – de si.

Assim, o deparar-se da protagonista com o búfalo pode ser considerado um desses instantes de identificação absoluta com o outro, em que nada parece acontecer: “abaixou de novo a cabeça e ficou olhando o búfalo ao longe. Dentro de um casaco marrom, respirando sem interesse, ninguém interessado nela, ela não interessada em ninguém. Certa paz enfim.”[12]

Em Amor Clarice também nos apresenta uma personagem arrebatada de seu cotidiano, porém involuntariamente, para experimentar no outro a possibilidade de aprender.

A protagonista Ana afasta-se do perigo de viver dedicando-se às tarefas domésticas com total zelo e amor, evitando ao máximo qualquer desequilíbrio em seu dia-a-dia. A segurança e tranqüilidade domésticas representadas pelo marido, filhos, empregada, compras, refeições, etc. protegem-na dos riscos das possíveis experiências externas.

Para Giorgio Agamben o cotidiano pós-moderno não se traduz em experiências, quando ele afirma que

 

“é esta incapacidade de traduzir-se em experiência que torna hoje insuportável – como em momento algum no passado – a existência cotidiana, e não uma pretensa má qualidade ou insignificância da vida contemporânea confrontada com a do passado (aliás, talvez jamais como hoje a existência cotidiana tenha sido tão rica de eventos significativos).”[13]

 

Concordamos com ele para entender a necessidade de romper com a estabilidade insustentável dos cotidianos das personagens clariceanas. “Porque o cotidiano é essencialmente o espaço onde se encontram os modestos anseios diários, bem como as forças diárias onipresentes que frustram os anseios e impedem a realização de ânsias e necessidades.”[14] Assim, pois, Ana se mantinha imune ao risco de viver enquanto se dedicasse à firmeza do lar. Temia, entretanto, “certa hora da tarde mais perigosa (...) quando nada mais precisava de sua força (...) Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles.”[15] Na tarde da narrativa, então, ao sair para fazer compras para o jantar, Ana vira, de dentro do bonde, um cego que mascava chicletes; esse instante, esse outro que ela nem conhecia, despertaram-na da tranqüilidade de seu cotidiano, lançando-a vertiginosamente de encontro à violência de seus sentimentos então adormecidos.

 

“Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de um a mulher com ódio.(...)Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgira-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível.(...)O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.(...) O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente.(...)O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam(...) O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.”[16]

 

Imersa num turbilhão de pensamentos e sensações que a identificação com o cego fizera surgir, Ana passa do seu ponto de descida e encaminha-se, meio perdida ainda, para o Jardim Botânico, onde “tudo era estranho, suave demais, grande demais (...) fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.”[17] Descobre, assim, guiada por um cego, que a vida que levara até aquele momento era “um modo moralmente louco de ser”, um esconder-se de si própria, numa fuga constante que parecia ter chegado ao fim. “Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava.(...) É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver”[18].

Retomamos aqui a abordagem de Simone Curi, quando ela afirma a presença de um mediador, quase sempre do sexo masculino, que irrompe na personagem como uma visão de si mesma. Assim o cego que emerge como estrangeiro, em seu espaço de origem, coloca em crise a identidade de Ana. O horror é o que resulta desse olhar, talvez por aquilo visto e constatado como normalidade (norma) ou, talvez, pela impossibilidade de real movimento, de mudança (trangressão). “Ela, então, retorna ao familiar, mas só depois de ter visto de muito perto uma ferida grande demais. Esquecer é impossível, as marcas permanecem no corpo”.[19]

Novamente a aprendizagem se dá a partir do encontro com o outro, e, pela diferença, deslinda-se a identidade. Uma outra Ana desponta, procurando equilibrar a experiência da tarde com seu cotidiano impermeável. “O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? (...) Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara(...)”[20].  

 



[1] Consultado na versão online do jornal Le Monde, em 9 de agosto de 2005. Mantivemos o trecho no original para não lhe quebrar o tom ou o ritmo franceses. Apresentamos, ainda, nossa tradução: O senhor sabe, aprender a viver é sempre narcísico: a gente quer viver o máximo possível, se salvar, perseverar e cultivar todas essas coisas que, infinitamente maiores e mais poderosas que a gente, fazem entretanto parte deste pequeno “eu” que elas ultrapassam de todos os lados.

[2] AGAMBEN, Giorgio. Op.cit.p.33

[3] LISPECTOR, Clarice. O búfalo. In: Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.p.126. Todas as citações dos contos foram retiradas desta edição.

[4] Idem.ibidem.p.126

[5] SABINO, Fernando. LISPECTOR, Clarice. Cartas perto do coração. 5ed. Rio de Janeiro: Record, 2003. p.128. Carta de 7 de maio de 1956.

[6] LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Op.cit.p.127

[7] Idem.ibidem.p.127

[8] Além do búfalo e do cego, dos quais tratamos no presente estudo, vejam-se, por exemplo, as personagens Joana (Perto do coração selvagem), Lóri (Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres) e Sofia (Os desastres de Sofia), dentre outras, que procuram aprender – a viver, a amar, a sofrer, a odiar, etc.- com o outro, sobretudo com uma figura masculina.

[9] CURI, Simone. A escritura nômade em Clarice Lispector. Chapecó: Argos, 2001.p.153

[10] Idem.ibidem.p.153. Ambos os grifos são de Simone Curi, que destaca, assim, a participação do externo na construção do eu conhecedor.

[11] LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Op.cit.p.128

[12] LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Op.cit.p.132

[13] AGAMBEN, Giorgio. Op.cit.p.22

[14] JAMESON, Frederic. Op.cit.p.125

[15] LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Op.cit.p.19/20

[16]  Idem.ibidem.p.22/23

[17]  Idem.ibidem.p.24

[18]  Idem.ibidem.p.27

[19]  CURI, Simone. Op.cit.p.155. Os grifos são da autora e o texto foi levemente modificado, afora o trecho em itálico.

[20]  idem.ibidem.p.29